O golpe na Bolívia tem a ver com a tela que você usa para ler este artigo

22/11/2019
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Apoiador do Evo durante manifestação em Cochabamba
Foto: Ronaldo Schemidt/AFP
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Quando você olha para a tela do seu computador, do seu celular ou de sua televisão, você está olhando para uma tela feita de cristal líquido (LCD). Um importante componente da tela de LCD é o índio (do latim indicum), um elemento metálico raro processado a partir de zinco concentrado.

 

As duas maiores fontes de índio podem ser encontradas no leste do Canadá (Mount Pleasant) e na Bolívia (Malku Khota). Os depósitos do Canadá têm o potencial de produzir 38,5 toneladas de índio por ano, enquanto as minas consideráveis da Bolívia são capazes de produzir 80 toneladas anualmente.

 

A empresa canadense South American Silver Corporation – agora chamada TriMetals Mining – havia assinado um contrato de concessão para explorar e, posteriormente, minerar o Malku Khota. Os trabalhos começaram em 2003, dois anos antes de Evo Morales e o Movimento ao Socialismo (MAS) ganharem sua primeira eleição na Bolívia. A South American Silver conduziu diversos estudos na região, e todos encontraram depósitos substanciais que fariam dessa empresa canadense uma das maiores na indústria de mineração.

 

Um estudo conduzido por Allan Armitage e outros da South American Silver, entregue à companhia em 2011, mostrou que a mina de Malku Khota produziria grandes quantidades de prata, índio, chumbo, zinco, cobre e gálio. “O índio e o gálio”, dizia o estudo, “são considerados metais estratégicos, que dão ao projeto futuros potenciais positivos”. O gálio é usado em termômetros e barômetros, bem como em testes da indústria farmacêutica. O nível de riqueza que esses minerais podem representar é equivalente ao tesouro guardado no Fort Knox dos Estados Unidos.

 

Nacionalismo de recursos

 

Evo Morales venceu a eleição presidencial em 2006 com a promessa de um novo dia para a Bolívia. A chave de sua agenda era controlar os recursos do país e usá-los para melhorar a qualidade de vida das populações empobrecidas da Bolívia. Uma das grandes tragédias da Bolívia é que, desde meados do século 16, as populações indígenas tiveram que trabalhar para remover riquezas preciosas de suas terras e enviá-las para enriquecer as pessoas da Europa e, mais tarde, da América do Norte. Eles não se beneficiaram dessas riquezas.

 

Milhões morreram nas minas de Potosí para arrancar a prata e, mais tarde, o estanho, do solo. Para os povos indígenas que moram perto e na própria montanha, tudo está de cabeça para baixo – uma das mais lucrativas é conhecida como Cerro Rico (Morro Rico), enquanto, em espanhol, há uma frase que brinca com a ideia de que riqueza é equivalente a Potosí (vale un Potosí). A mensagem de Morales durante sua campanha foi enquadrada em torno do conceito de nacionalismo de recursos – usar nossos recursos para melhorar a vida daqueles que são privados de recursos e vida digna.

 

Primeiro, Morales foi atrás da indústria de petróleo e gás. É importante lembrar que seu oponente na eleição deste ano – Carlos Mesa – era o presidente pouco antes de Morales vencer a eleição em dezembro de 2005. Mesa chegou ao poder quando seu antecessor, Sánchez de Lozada, renunciou em meio à desgraça pelas manifestações em massa em 2003, quando os bolivianos exigiram mais controle sobre suas reservas de gás (a repressão estatal foi severa, com pelo menos 70 pessoas mortas nas manifestações). Em maio de 2006, pouco mais de três meses depois de assumir o cargo de presidente, Morales anunciou que a indústria de petróleo e gás havia sido nacionalizada. É importante lembrar que seu índice de aprovação estava bem acima de 80%.

 

A nacionalização não foi fácil, uma vez que o governo boliviano não podia desapropriar ativos, mas apenas aumentar impostos e renegociar contratos. Mesmo aqui, o governo enfrentou problemas, pois carecia de capacidade técnica para entender o setor opaco da energia. Além disso, o problema com o setor de energia é que mesmo petróleo e gás nacionalizados devem ser vendidos para as empresas transnacionais que os processam e comercializam – eles permanecem no controle da cadeia de valor. O que o governo de Morales conseguiu fazer foi garantir que o Estado controlasse 51% de todas as empresas privadas de energia que operavam na Bolívia, o que permitiu que os cofres do Estado se enchessem rapidamente. Foi esse dinheiro que foi investido para combater a pobreza, a fome e o analfabetismo.

 

Vingança das empresas de mineração

 

O Fraser Institute do Canadá – um think tank libertário fortemente financiado pelo setor de energia e mineração – publica uma pesquisa anual sobre empresas de mineração. Essa pesquisa é realizada perguntando aos executivos do setor suas opiniões sobre uma série de questões. O levantamento de 2007-2008 apontou que a Bolívia era o segundo pior país para se investir; o pior foi o Equador. Em 2010, o Índice de Facilidade para Fazer Negócios do Banco Mundial classificou a Bolívia na posição 161, de 183 países. Os diretores das empresas de mineração – de Peter Munk, da Barrick, a Antonio Brufau, da Repsol – fizeram comentários depreciativos sobre o programa de nacionalização. “Se a Bolívia continuar nesse caminho”, um banqueiro de Wall Street me disse na época, “essas empresas vão fazer questão de manter o gás natural boliviano no subsolo”. A Bolívia poderia ser embargada; Morales poderia ser assassinado.

 

Havia pressão diária sobre o governo do MAS, que iniciou um processo para escrever uma nova Constituição que protegesse a natureza e insistisse no uso da riqueza de recursos pelo povo. Havia uma contradição imediata aqui: se o governo do MAS desfizesse séculos de privações, teria que minerar a terra para produzir a riqueza. Uma escolha trágica aconteceu com o governo – ele não podia conservar a natureza e transformar as condições miseráveis da vida cotidiana mantendo igual nível de cautela. Ao mesmo tempo, para levar seus minerais e energia ao mercado, precisou continuar negociando com essas empresas transnacionais; nenhuma alternativa imediata estava presente.

 

Nacionalização

 

Apesar das restrições, o governo do MAS continuou a nacionalizar recursos e insistir em que as empresas estatais fossem parceiras na extração de recursos. As empresas transnacionais imediatamente levaram a Bolívia ao Centro Internacional para Solução de Controvérsias sobre Investimentos (ICSID), parte do sistema do Banco Mundial. O ICSID, formado em 1966, tem sede em Washington e compartilha uma perspectiva de negócios que espelha a do Departamento do Tesouro dos EUA.

 

Em 29 de abril de 2007, os líderes da Bolívia (Evo Morales), Cuba (Carlos Lage), Nicarágua (Daniel Ortega) e Venezuela (Hugo Chávez) assinaram uma declaração para criar uma alternativa ao sistema governo-investidor institucionalizado no ICSID. A Bolívia e o Equador se retiraram formalmente desse sistema dominado pelos EUA, enquanto a Suprema Corte da Venezuela declarou que ele não tinha o poder de intervir nos assuntos soberanos da Venezuela.

 

Em 10 de julho de 2012, o governo de Morales nacionalizou a propriedade Malku Khota da South American Silver. O CEO da empresa, Greg Johnson, disse que ficou “muito chocado” com a decisão. As ações da South American Silver caíram imediatamente; estavam sendo negociadas a US$ 1,02 em 6 de julho e caíram para US$ 0,37 em 11 de julho.

 

O estímulo imediato à nacionalização foi o protesto em torno da mina por garimpeiros indígenas que não queriam que esse megaprojeto abalasse seu sustento. A empresa gastou muito dinheiro para convencer 43 das 46 comunidades vizinhas a aceitar a mina, mas não conseguiu convencer os garimpeiros. “Nacionalização é nossa obrigação”, disse Morales.

 

Todo esse índio não chegaria em quantidades significativas às fábricas para produzir LCDs para aparelhos de televisão, monitores de computador e telefones celulares.

 

A South American Silver levou o governo boliviano ao Tribunal Permanente de Arbitragem, em Haia. Em novembro do ano passado, a corte determinou que a Bolívia pagasse US$ 27,7 milhões à empresa, em vez dos US$ 385,7 milhões exigidos pela TriMetals (o novo nome da South American Silver).

 

Golpe

 

Em julho de 2007, o embaixador dos EUA, Philip Goldberg, enviou um telegrama a Washington, onde destacou que as mineradoras dos EUA haviam procurado sua embaixada para perguntar sobre o clima de investimento na Bolívia. Goldberg achava que a situação das empresas de mineração não era boa. Perguntado se ele poderia organizar uma reunião com o vice-presidente Álvaro García Linera, ele afirmou: “Infelizmente, sem dinamite nas ruas, é incerto se a embaixada ou as empresas de mineração internacionais conseguirão atingir esse objetivo mínimo”.

 

“Sem dinamite nas ruas” é uma frase sobre a qual vale a pena refletir. Um ano depois, Morales expulsou Goldberg da Bolívia, acusando-o de ajudar os protestos na cidade de Santa Cruz. Pouco mais de uma década depois, foi a “dinamite” que tirou Morales do poder.

 

O nacionalismo de recursos não está mais na pauta da Bolívia. O destino de Malku Khota é desconhecido. O destino da sua tela está garantido – ela será substituída pelo índio dos depósitos de Huari Huari e Potosí. E os benefícios dessa venda não serão para melhorar o bem-estar da população indígena da Bolívia. Eles enriquecerão as empresas transnacionais e a antiga oligarquia do país.

 

Edição: Revista Opera | Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera

 

https://www.brasildefato.com.br/2019/11/21/o-golpe-na-bolivia-tem-a-ver-com-a-tela-que-voce-esta-usando-para-ler-este-artigo/

 

https://www.alainet.org/de/node/203430
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