A ferocidade das multinacionales
Muitas transnacionais já estão preparando processos contra alguns dos Estados que implementaram leis de emergência para enfrentar o Covid-19
- Opinión
Berna, Suiça.- As transnacionais não satisfazem seu apetite leonino nem diante da crise pandêmica. Muitas delas já estão preparando processos contra alguns dos Estados que implementaram leis de emergência para enfrentar o Covid-19. Elas argumentam que seus interesses econômicos estão sendo prejudicados.
O impacto da pandemia é mostrado em toda a sua crueza. E é só o começo. Como disse a Unctad (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento), em abril passado, a crise poderia reduzir o investimento mundial em 40%. Em seguida, pediu à comunidade internacional que destinasse US$ 2,5 bilhões para aliviar o efeito disso nos chamados países “em desenvolvimento”.
Nessa situação imprevisível, muitos governos tomaram medidas para apoiar a produção nacional; para apoiar certas empresas -geralmente nacionais-; para neutralizar o efeito do desemprego total ou parcial e, além disso, para fortalecer a saúde pública e o sistema social. Em alguns casos, esse pacote incluiu a suspensão dos pagamentos a empresas privadas ou a recuperação –ou tutela– de empresas especializadas na fabricação de equipamentos básicos médico-sanitários.
Em um futuro próximo, essas decisões exercerão uma pressão sem precedentes sobre os orçamentos públicos, já limitados no Sul Global... “Além disso, poderiam provocar uma onda de ações judiciais por parte das multinacionais e de seus advogados especializados em investimentos”, alertam, em um estudo recente chamado “Os especuladores da pandemia” (https://longreads.tni.org/los-especuladores-de-la-pandemia/) cinco das pesquisadoras do Instituto Transnacional - TNI (Transnational Institute - TNI), com sede em Amsterdã e dedicado à pesquisa sobre grandes temas internacionais (https://www.tni.org/es).
Essas reivindicações aos Estados por parte das multinacionais têm suporte legal: o Mecanismo de Resolução de Disputas entre Investidor-Estados (ISDS, sigla em inglês). Esse instrumento, presente em todos os tratados de proteção de investimentos, permite demandar aos Estados que emitam leis ou decretos que, de uma ou outra forma, afetam as atividades comerciais das multinacionais. Não importa se ditas medidas foram tomadas em condições de emergência, como a atual, e, por exemplo, no marco do cataclismo de saúde mais violento que o planeta já sofreu em sua história recente.
É admissível confrontar os Estados judicialmente -muitas vezes em letras pequenas e quase ilegíveis- em todos os tratados internacionais. Com o agravante, como aponta o TNI, que se estabelece um “sistema paralelo de justiça privada que só opera em uma direção”, uma vez que os Estados não têm o direito de processar, em tribunais de arbitragem, as empresas que não respeitem as normas nacionais ou locais.
Há mais de uma década e com êxitos parciais, setores ativos da sociedade civil global vêm impulsionando a possibilidade de processar as multinacionais, amparando-se nos Princípios Orientadores das Nações Unidas elaborados em 2008 pelo professor austríaco John Ruggie. Na Suíça, por exemplo, uma das questões importantes do debate político se dá em torno da Iniciativa Popular a favor das Multinacionais Responsáveis (https://initiative-multinationales.ch/), a ser votada nos próximos meses. Exige que as transnacionais suíças respeitem os direitos humanos e ambientais em todo o mundo, sem exceção, de acordo com as mesmas condições que estas devem respeitar na Suíça.
Espanha na mira
De acordo com a Unctad, existem atualmente mais de 1000 demandas investidor-Estado em todo o mundo. Número esse que poderia explodir nesse momento da pandemia.
Na segunda-feira, 25 de maio, o jornal online espanhol Público divulgou um artigo intitulado “Espanha exposta a processos milionários por medidas sociais ante a Covid-19” (https://blogs.publico.es/dominiopublico/33087/). Refere-se aos Decretos-Lei de 14 e de 31 de março passado, que impuseram medidas excepcionais devido à pandemia. “Investidores estrangeiros poderiam processar o Estado espanhol em tribunais arbitrais internacionais...” E menciona, como exemplo, que os advogados do escritório espanhol Garrigues chegaram a afirmar que a crise global que está por vir é “uma oportunidade para revolucionar a arbitragem, melhorá-la e fortalecê-la perante a jurisdição estatal”.
Explica ainda que, há poucos dias, a Asociación Española de Empresas Gestoras de los Servicios de Agua Urbana (AGA) alertava que as medidas emergenciais do governo ameaçavam o “risco de insolvência para os operadores do ciclo urbano da água”. Essas decisões governamentais incluem a proibição de fornecedores de água, de gás e de eletricidade de suspender o serviço às famílias mais vulneráveis.
Segundo Público, a Espanha assinou 87 Tratados Bilaterais de Investimento em vigor e 77 Tratados com alguma disposição sobre proteção aos investimentos. “Deve abandonar os Tratados de Proteção aos Investimentos”, dizem eles, através da Campanha Não aos Tratados de Comércio e de Investimento que tem se fortalecido nas últimas semanas. No começo de 2020, somente no caso do Tratado sobre a Carta de Energia foram contabilizadas sentenças de pagamento de 1,08 bilhão de euros. Isso representa 4 vezes o que o governo vai investir para fortalecer os serviços sociais de apoio aos idosos em residência e dependentes.
América Latina, a condenada
O site ISDS Impactos publica um extenso estudo que afirma que a Argentina, a Venezuela, a Bolívia, o Equador, o México e o Peru são passíveis de 206 processos judiciais -73% do total continental- por parte de grandes empresas. (http://isds-americalatina.org/en-numeros/).
De acordo com o estudo, as demandas entre investidor-Estado se multiplicaram nas últimas duas décadas, passando de 6 casos conhecidos em 1995 para 983 na atualidade. Desse total, a América Latina e o Caribe englobam 282 acusações, ou seja, quase 30% do total mundial. Dos casos já resolvidos, em um alto percentual, os Estados foram condenados. 91 processos foram promovidos por empresas estadunidenses. Um número significativo veio de parte de seus pares europeus, e outros pelos canadenses. Os principais setores em ‘conflito’ são a água, a eletricidade, a comunicação, o petróleo, os seguros, bem como a manufatura e a mineração.
Os quatro países latino-americanos mais castigados são a Argentina, a Venezuela, a Bolívia e o Equador. A Argentina foi condenada a pagar 40 vezes em 45 casos arbitrados, representando um montante total de US$ 9,226 bilhões. Enquanto a Venezuela perdeu 22 dos 33 processos, com uma incidência de US$ 18,024 bilhões. A Bolívia, foi condenada por todos os tribunais arbitrais –13 de 13– o que representa um montante de US$ 902 milhões. Enquanto isso, o Equador, que perdeu 15 das 19 acusações, foi condenado em US$ 2,224 bilhões.
Somando os valores a pagar aos investidores, mais de US$ 31 bilhões são contabilizados. O estudo lembra que, com um terço desse valor (cerca de US$ 10 bilhões), as Nações Unidas estimam que a pobreza extrema poderia ser superada em 16 países latino-americanos. O relatório confirma que o maior valor já pago como resultado de um processo são os US$ 5 bilhões que a Argentina deveria à Repsol, em um acordo entre as partes. Esse instrumento, juntamente com a fuga de capitais e a dívida externa, constituem mecanismos brutais contra as economias nacionais.
Justiça paralela
Em 26 de março, um dos dias cruciais para a Itália durante a pandemia e quando o país ultrapassou 8.000 mortes sem saber como frear seu avanço, o escritório de advocacia italiano ArbLit publicou um artigo intitulado “Poderiam as medidas emergenciais do Covid-19 levarem a reclamações de investimento? Primeiras reflexões a partir da Itália”.
Como lembra um documento de 18 de maio passado, divulgado pelo Corporate Europe Observatory (Observatório Europeu sobre as Corporações) https://corporateeurope.org/en/2020/05/cashing-pandemic-how-lawyers-are-preparing-sue-states-over-covid-19-response-measures, a preocupação desse grupo de advogados não estava na Itália real. Em vez disso, focava na avaliação acelerada sobre se as medidas tomadas pelo Governo italiano, devido ao coronavírus, poderiam fornecer os argumentos para que os investidores estrangeiros pudessem processar a Itália, levando em conta os tratados de investimento assinados com outros Estados. E chegavam à conclusão que, quando a emergência acabar, os Estados terão de enfrentar as demandas de arbitragem apresentadas por investidores estrangeiros no marco de qualquer tratado bilateral de investimento aplicável.
Após desenvolver detalhadamente dez “Cenários” ou pistas analíticas sobre o tema, o Observatório argumenta que nunca foi tão importante evitar as demandas ISDS como agora, nesse momento em que a situação de saúde mundial se vê agravada pela explosiva crise econômica. E pede uma “moratória imediata das demandas ISDS em geral”, antecipando que já existe uma proposta para suspender as demandas desses mecanismos relacionados com o Covid-19.
O Observatório Europeu não descarta que certos países se retirem unilateralmente dos acordos existentes, como fizeram a África do Sul, a Indonésia e a Índia. Outros denunciaram unilateralmente alguns de seus acordos bilaterais de investimento.
Recentemente, 23 Estados membros da União Europeia assinaram um tratado que encerrará cerca de 130 tratados bilaterais de investimento intraeuropeus. A Itália se afastou do Tratado da Carta da Energia, que, basicamente, é um grande acordo de ISDS para o setor energético.
Em um recente blog sobre o Covid-19 e o direito do investimento internacional, relata o Observatório, juristas progressistas levantaram duas questões-chave: “Qual é a justificativa para a manutenção de um enclave legal no qual os operadores econômicos mais ricos tenham direito a um tratamento mais favorável do que outros segmentos da sociedade que sofrem de maneira desproporcional como consequência da pandemia e as respostas à mesma? Por que os agravos dos investidores contra os Estados merecem uma proteção mais sólida do que a obrigação de garantir um padrão de vida adequado à população em geral?”.
Estas perguntas chegam ao cerne do problema. Não há espaço para um sistema de justiça paralelo para as corporações! O ISDS tem que acabar! É a conclusão do Observatório Europeu.
Tradução: Rose Lima
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