A fome nos matará antes da covid-19

28/09/2020
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Baasanjav Choijiljav (Mongolia), Promise [Promesa], 2018
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Em abril de 2020, um mês depois da Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar a pandemia do novo coronavírus, o Programa Alimentar Mundial (PAM) da ONU alertou que o número de pessoas que vive com fome aguda no mundo poderia dobrar por conta da covid-19 até o fim de 2020, “a menos que medidas rápidas sejam tomadas”. 

 

Um relatório da Rede Global Contra a Crise Alimentar – formada pelo PAM, a Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) e a União Europeia – afirmou que a pandemia pode causar o maior nível de insegurança alimentar desde 2017.

 

Nenhum desses relatórios estampou a capa dos jornais. Pouco se falou do fato de que não se trata de uma crise de produção de alimentos – já que temos comida suficiente para alimentar todo o planeta – mas uma crise decorrente da desigualdade social.

 

Esta crise, a pandemia da fome, deveria ter ocupado a atenção de todos os países. Mas não foi assim. Com exceção de alguns – China, Vietnã, Cuba e Venezuela – pouco foi feito em termos de criação de programas alimentares voltados para prevenir a fome (como a FAO alertou em maio).

 

Mais de seis meses após o início da pandemia, a questão da fome segue candente. Em setembro, a Rede Global Contra a Crise Alimentar lançou um novo relatório sobre o agravamento da fome.

 

O diretor-geral da FAO, Qu Dongyu, alertou sobre a fome iminente em muitas partes do mundo, particularmente em Burkina Faso, Sudão do Sul e Iêmen. Estima-se agora que uma em cada duas pessoas no planeta passe fome. Ninguém deve ir dormir de barriga vazia.

 

Dois dias depois de Dongyu fazer esses comentários, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, implorou pelo fim da guerra no Iêmen. A guerra “dizimou as instalações de saúde do país”, disse, que não é capaz de fazer frente a quase 1 milhão de casos de covid-19.

 

O conflito, disse ele, “devastou a vida de dezenas de milhões de iemenitas”. O Iêmen enfrentou uma guerra implacável promovida pela Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos (apoiados inteiramente pelo Ocidente e pelos fabricantes de armas), lutou contra a fome e os gafanhotos do deserto, e agora lida com o fardo da pandemia.

 

É importante entender que a população do Iêmen antes do início da guerra Saudita-Emirados, em 2015, era de 28 milhões, ou seja, “dezenas de milhões” significa quase todo o povo iemenita. Um novo relatório da ONU mostra que Canadá, França, Irã, Reino Unido e EUA continuam a alimentar esse conflito com a venda de armas.

 

A pressão sobre o povo saudita e dos emirados, bem como sobre os traficantes de armas ocidentais para que acabem com essa guerra contra o povo iemenita, deve ser o foco das atenções. É uma guerra que leva a fome ao Iêmen.

 

Igualmente ausente da consciência global está a guerra em curso na República Democrática do Congo (RDC), impulsionada em grande parte devido à presença de recursos incomensuráveis ​​no país (como cobalto, coltan, cobre, diamantes, ouro, petróleo e urânio).

 

A guerra, a crise econômica e as fortes chuvas levaram 21,8 milhões de pessoas (de uma população de 84 milhões) à fome aguda em dezembro de 2019, uma situação que foi agravada desde o surgimento da covid-19.

 

Os indicadores sociais na RDC são alarmantes: 72% da população vive abaixo da linha da pobreza, enquanto 95% vive sem eletricidade. Estes são apenas dois números, mas talvez o mais surpreendente seja a riqueza estimada de seus recursos, calculada em 24 trilhões de dólares. Pouco dessa riqueza vai para o povo congolês.

 

Em 30 de junho de 1960, quando o primeiro-ministro Patrice Lumumba pronunciou a independência da RDC da Bélgica, ele disse que “a independência do Congo é um passo decisivo para a libertação de todo o continente africano” e que o novo governo “serviria ao seu país”.

 

Essa foi a promessa do país e do continente; mas Lumumba foi assassinado pelo bloco imperialista em 17 de janeiro de 1961, e o país foi entregue às corporações multinacionais ocidentais. Antes de morrer, Lumumba escreveu um poema, com uma esperança que continua viva:

 

Deixe o forte calor do sol implacável do meio-dia
Queimar sua dor!
Deixe evaporar no sol eterno,
Essas lágrimas derramadas por seu pai e seu avô
Torturados até a morte nestes campos tristes.

 

Muitas vezes é difícil sentir essa esperança, ainda mais quando o norte da Nigéria vê durante a pandemia um aumento de 73% da parcela de sua população que passa fome, ou a Somália tendo um aumento de 67% e o Sudão de 64% (onde um quarto da população está neste momento com fome aguda).

 

Burkina Faso, que significa “terra de pessoas íntegras”, por sua vez, viu um aumento de 300% nos casos de fome aguda. Quando Thomas Sankara liderou Burkina Faso por quatro anos a partir de 1983, seu governo nacionalizou as terras para garantir o acesso a quem trabalhava nelas e lançou projetos de plantio de árvores e irrigação para aumentar a produtividade e combater a desertificação.

 

Depois que o governo aprovou uma lei de reforma agrária em 1984, Sankara foi a Diébougou, onde discursou em um ato para camponeses e prometeu “melhorar nossa terra e cultivá-la em paz. Acabou o tempo em que as pessoas, sentadas em suas salas, podiam comprar e revender terrenos por especulação”. A promessa se desfez quando Sankara foi assassinado em 1987.

 

A fome que assola esses países não é por falta de recursos. A RDC tem 80 milhões de acres de terra arável, que poderia alimentar 2 bilhões de pessoas se fosse cultivada com alimentos de maneira agroecológica; mas, hoje, apenas 10% das terras aráveis ​​do país são cultivadas.

 

Enquanto isso, o país gasta 1,5 bilhão de dólares por ano na importação de alimentos – dinheiro que poderia ser usado para investir no setor agrícola, cujo trabalho principal é realizado por agricultores para subsistência (que possuem menos de 3% das terras cultivadas).

 

A falta de poder entre os trabalhadores agrícolas e os fazendeiros resulta em um sistema desigual que privilegia um punhado de conglomerados do agronegócio em vez de cooperativas e a agricultura familiar.

 

Isso nos leva à Índia. O governo de extrema direita de Narendra Modi aprovou três projetos de lei agrícolas na câmara alta do Parlamento por meio de votos abertos; os deputados gritavam seus votos favoráveis enquanto os problemas dos projetos em questão não puderam ser de fato debatidos.

 

Esses projetos de lei têm nomes que sugerem uma orientação para os pequenos agricultores, mas na prática favorecem o agronegócio: Projeto de Lei de Produção e Comércio (Promoção e Facilitação); Acordo de Preços dos Agricultores (Capacitação e Proteção); Projeto de Lei de Garantia e Serviços Agrícolas e Projeto de Lei de Produtos Básicos (Emenda).

 

As contas colocam todo o sistema agrícola nas mãos de “comerciantes”, ou seja, grandes corporações, que agora definirão os preços e quantidades dos alimentos. A ausência de intervenção governamental deixa as propriedades familiares à mercê de grandes corporações, cujo poder agora não será mais controlado.

 

Isso terá um impacto adverso na produção de alimentos e certamente contribuirá ainda mais para o empobrecimento de pequenos agricultores e trabalhadores agrícolas na Índia.

 

À medida que aumenta a fome, aumenta também o ataque aos que cultivam a terra. Não surpreende que trabalhadores agrícolas em toda a Índia digam que a fome os matará antes do coronavírus. Esta é uma frase conhecida dos agricultores e trabalhadores agrícolas do Brasil, que – como demonstramos em nosso dossiê n. 27 – Reforma Agrária Popular e a Luta pela Terra no Brasil – há muito tempo estão em uma luta para democratizar a terra.

 

Assim como na Burkina Faso de Sankara, os bravos sem terra do Brasil têm seu próprio projeto: reflorestar áreas saturadas pelos agrotóxicos, ocupar terras ociosas e cultivá-las por meio de práticas agroecológicas e forjar “uma ampla demanda por uma nova visão para o país como um todo”.

 

Edição: Leandro Melito

 

https://www.brasildefato.com.br/2020/09/28/a-fome-nos-matara-antes-da-covid-19

 

 

https://www.alainet.org/de/node/209077
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