Um livro de cem autores
Não se tratava apenas de uma ameaça isolada, mas de uma política sistemática de destruição aplicada dia após dia, sem trégua, que até acabou com a vida de alguns detidos.
- Opinión
Terceira edição do livro “Do outro lado do olho mágico”
No dia 18 de março será apresentada em Santa Fé, Argentina, a terceira edição do livro Do outro lado do olho mágico (Del otro lado de la mirilla) , que reúne depoimentos anônimos e coletivos de ex-presos políticos do presídio de Coronda durante a última ditadura. Seis dias depois, em 24 de março, comemora-se o 45º aniversário do golpe militar que abriu naquele país sul-americano uma das páginas mais repressivas, dramáticas e dolorosas da América Latina. “Entendemos esta nova edição de três mil exemplares como mais uma contribuição à luta pela memória e contra o esquecimento”, enfatiza Victorio Paulón.
Paulón, atualmente Secretário de Direitos Humanos da Central de Trabalhadores da Argentina (CTA), era líder sindical metalúrgico na década de 1970, sendo um dos 1.153 presos políticos que passaram por aquele presídio localizado na província de Santa Fé, 450 quilômetros a noroeste de Buenos Aires. “Não nos consideramos vítimas, mas parte de uma geração de resistência”, enfatiza Victorio Paulón no início desta entrevista.
P: O prólogo de Do outro lado do olho mágico apresenta-o como uma obra coletiva, praticamente anônima. Por que tais definições?
R: Refere-se a algo maravilhoso. Quem poderia pensar um livro de setenta, oitenta ou cem autores? E nosso livro não é uma enciclopédia ou um dicionário ilustrado. É uma experiência coletiva, filha de vários anos de convivência em condições horríveis de perseguição e tortura sistemáticas. Conta o cotidiano dos presos políticos da ditadura em condições de isolamento e restrição sem limites. Isolados, sem visitantes, sem recreio, sem poderem falar uns com os outros, espancados fisicamente e assediados psicologicamente, dia e noite, conseguiram suportar resistindo e ultrapassar as regras impostas para se encontrar, comunicar através de paredes, janelas, instalação sanitária. Mantivemos uma resistência coletiva até o limite do impossível. Com algo não menos maravilhoso: uma partilha permanente de humor como suporte essencial para a sobrevivência.
Jogando gato e rato
P: O que significa resistência coletiva neste caso?
R: Uma vontade unitária de centenas de colegas que compartilhamos a mesma ala, a mesma prisão. Sentir o sofrimento do outro como meu. Saber que o companheiro da cela ao lado estava disposto a desistir de sua vida para defender a do outro. Além disso, também penso naquela inteligência coletiva que permitiu a operação em grupo, evitando o controle dos guardas.
Foi inventado o "periscópio", espelho feito com um pedaço de vidro polido nas bordas, escurecido com a fumaça de fósforos de um dos lados, envolto em plástico derretido, preso por uma palha de vassoura. E foi usado como o principal resseguro do grupo para sobreviver. Nós o tiramos através de pequenos orifícios de respiração na parte inferior da porta da cela. O periscópio era usado para ver quando os guardas entravam ou saíam do nosso pavilhão. Em horários diferentes do dia, cada um de nós era responsável por tirar seu próprio periscópio para proteger todos os companheiros nas celas de um setor do pavilhão. Era o apoio de uma constante * brincadeira * de ratos com o gato repressor. Quando constatamos que os carcereiros se encontravam fora do pavilhão, na própria guarita, era o momento propício para estudos, exercícios físicos, trocas com os outros companheiros pelas janelas ou a traves do encanamento do banheiro. Um sofisticado sistema de "pombos" (linhas de plástico do tipo da linha de pesca) permitia o envio de pequenos pacotes de uma cela para outra.
P: Essa é a vida cotidiana que 20 anos depois recriou em O outro lado do olho mágico?
R: Isso mesmo. O roteiro da história se passa entre o final de 1974 e meados de 1979, quando Coronda deixou de abrigar presos políticos que foram transferidos para outras prisões. Junto com seu encerramento, começa a se alimentar a memória daquela maravilhosa história de resistência em uma situação tão brutal quanto desigual.
Todas as experiências ocorreram naquele período e foram resgatadas 20 anos depois em diversos encontros de ex-presidiários. E elas se tornaram papel e tinta de autoria coletiva. Lê-las ajuda a compreender que não nos consideramos vítimas, mas sim resistentes. Ninguém nunca pensou em ser um herói, mas antes fazíamos parte de um coletivo de sobrevivência, luta e solidariedade. Demorou 20 anos para em 2003 aparecer Do outro lado do olho mágico. Nós nos perguntamos, muitas vezes, por que demorou duas décadas. Embora no nosso coletivo haja escritores, sociólogos, historiadores, jornalistas, acho que ninguém se sentiu com autoridade moral e política para escrever como indivíduo, sozinho, aquela história que pertence aos 1.153 presos políticos que passamos por Coronda.
Nova edição com "final feliz"
P: Há alguma diferença entre esta 3ª edição de Do outro lado do olho mágico em comparação com as outras duas anteriores?
R: A versão original é composta por depoimentos dispostos em 38 capítulos que compõem um mosaico de experiências de resistência carcerária. Agora o concluímos com um capítulo final - acompanhado de um livreto com fotos e desenhos coloridos - que trata do julgamento dos comandantes da Gendarmeria que atuavam como diretores penitenciários na época. O julgamento concluiu em 11 de maio de 2018 com penas severas para os dois réus, de 22 e 17 anos de prisão por crimes contra a humanidade. Nesta 3ª edição atualizamos a introdução e o prólogo, adaptando-os ao passar do tempo e pensando nos jovens de hoje como os principais destinatários. Tentamos compartilhar algumas chaves para entender como a resistência coletiva e unitária de ontem pode contribuir para os novos atores sociais de hoje. Além disso, esta 3ª edição é enriquecida pelos resultados extraordinariamente positivos da edição do nosso livro em francês, publicado no ano passado na Suíça com o nome de ‘Ni fous, ni morts’ (Nem loucos nem mortos).
Nem loucos, nem mortos. Memória viva ...
P: Do outro lado do olho mágico e Nem loucos nem mortos: dois títulos, o mesmo conteúdo, um nome muito forte.
R: Coronda durante a ditadura argentina (1976-1983) implementou um regime cotidiano que respondeu à política aplicada em todas as prisões e centros de detenção com o objetivo de aniquilar a todos que pensavam de forma diferente. Essa política se resume naquela frase do diretor da prisão, Comandante da Gendarmaria Adolfo Kushidonchi (posteriormente condenado a 22 anos de prisão): “Vocês não vão mais sair daqui. E se algum dia sairão, estarão mortos ou loucos ”. Não se tratava apenas de uma ameaça isolada, mas de uma política sistemática de destruição aplicada dia após dia, sem trégua, que até acabou com a vida de alguns detidos.
P: Parece que MEMORIA continua a ser uma bússola inegociável para os ex-presos políticos de Coronda ...
R: Sem dúvida. Mas esclareço que não é uma questão essencial apenas para nós. Mas também para muitos outros ex-presos políticos, como as companheiras que foram detidas na Prisão Devoto durante a ditadura e escreveram Nosotras, uma obra exemplar. E que também continuam a elaborar “sua” história coletiva. O trabalho de memória continua a ser essencial para organizações de direitos humanos e para familiares e sobreviventes do Terrorismo de Estado. De que outra forma explicar que, nos últimos quinze anos, em processos tão diversos, mais de 1000 repressores da última ditadura estiveram sentados no banco dos réus? Por isso, é essencial contectar essas iniciativas para que essa onda continue. A MEMÓRIA tem enorme valor político, social, cultural e ideológico na sociedade argentina. Acho que é uma realidade que encontra poucas comparações em outros países que passaram por ditaduras e dramas repressivos. Estamos convencidos de que a memória faz a própria identidade de um povo. E é impossível aspirar a construir uma sociedade efetivamente democrática na base de esquecimento, negação ou impunidade.
Tema universal
P: As experiências e histórias desse campo de destruição física, psicológica e ideológica, como você o descreve, podem ser comparadas a outras realidades? Você acha que é um tema de valor global?
R: Definitivamene. E está intimamente ligado à questão essencial de qual é o limite físico e psíquico em face da tortura sistemática. A resposta ainda está pendente. Os ex-presos políticos de Coronda trilhamos um caminho e deixamos este testemunho. Apresenta uma resposta, a nossa, para resistir a um regime carcerário desumano, durante anos. E também contém uma chave de sobrevivência. De modo geral, a resistência coletiva e organizada segue buscando formas a superar situações extremas e em condições desiguais. Abu Ghraib, Guantánamo e muitas outras prisões no mundo aplicaram e continuam a aplicar esses métodos aperfeiçoados na brutalidade.
A tomada de consciência desta humilhação que não se limita apenas a uma prisão na Argentina, está na base do compromisso pessoal e coletivo com a MEMÓRIA, a justiça, a responsabilização e a reparação. Não é por acaso que muitos dos protagonistas de Do outro lado do olho mágico ainda são militantes ativos em defesa dos direitos humanos, sindicatos, associações, políticos, etc. A brutalidade policial, filha das ditaduras militares, penetrou profundamente nas estruturas das forças armadas que nos controlam em vez de nos proteger. Do outro lado do olho mágico, como uma experiência coletiva, desafia às teorias repressivas que buscam a aniquilação de todos os oponentes. E insisto no valor da nossa experiência. O poder dos poderosos é um tema universal, assim como a resistência dos povos à injustiça. As formas variam ao longo da história da humanidade e de acordo com as características de cada sociedade, mas, essencialmente, trata-se do mesmo tema: a eterna disputa entre quem subjuga os povos e quem anseia por viver em liberdade. Em suma, como questionamos na introdução desta 3ª edição de Do outro lado do olho mágico, qual é a diferença entre ser assassinado em um campo de extermínio europeu ou em um na América Latina; entre morrer enfrentando uma ditadura latino-americana, afogar nas águas do Mediterrâneo tentando escapar de fome e guerras ou como refugiado da mudança climática. Reconstruir a história das lutas pela emancipação dos povos é uma contribuição para a memória universal e um antídoto para a repetição da brutalidade recorrente do poder.
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O poema da vida em resistência
“A verdade mora em um poço… como tirá-la? As histórias não começam, as histórias acontecem e não têm começo. Ou pelo menos aquele princípio não se vê, escapa, porque já estava inscrito em outro princípio, em outra história. Talvez a proximidade da morte nos tenha tornado tão próximos. E não pudemos mais nos separar. O verdadeiro protagonista da história que vivemos, não somos nós, é a história que vivemos”, reflete em voz alta Jorge Miceli, ex-preso político de Coronda, poeta, ator e produtor de teatro de bonecos, quando pensa em Do outro lado do olho mágico. O verbo se transforma em poesia e a memória em verso! No atletismo existe uma corrida em equipe chamada de revezamento. Cada um dos corredores de uma equipe percorre uma certa distância e há um colega esperando por ele a quem deve entregar o bastão chamado “testemunho”. Algo semelhante, embora difícil de visualizar, ocorre na história de um país: cada geração dá seu "testemunho" àquela que segue, para continuar sua carreira sem fim. Corrida de revezamento geracional que tece o tecido político, social e cultural de um povo. Na Argentina dos anos 1970, essa trama foi cortada violentamente por uma baioneta. Trinta mil corredores, camaradas, militantes que carregavam testemunhos valiosos e difíceis de serem substituídos, caíram por aquele buraco negro terrível. Outros se agarraram às arestas da trama, resistindo com raiva, dente e imaginação à cruel tempestade desencadeada por uma ditadura cívico-militar e eclesiástica. E a geração que continuou a corrida de revezamento após a tempestade, estendeu a mão para receber o testemunho, mas suas mãos estavam vazias. Não havia ninguém atrás. O que restou daquela geração dizimada dos anos 1960/70, agarrado às bordas daquela fenda criminosa, foi subindo lentamente tentando unir as bordas, fio por fio, fio por fio. Era preciso consertar a trama, continuar a corrida, entregar o testemunho. Elas e eles são milhares. Centenas deles, "loucos Quijotes de Coronda", resistiram à ditadura em solidariedade e coletivamente, e decidiram coletivamente escrever seu depoimento. Coletivamente, eles escreveram Do outro lado do olho mágico, que se tornou Nem loucos nem mortos em sua tradução para o francês e, agora, é reimpresso novamente de forma ampliada e atualizadas. Lutadores teimosos continuam a dizer "aqui ninguém desiste" e orgulhosamente entregam seu testemunho às jovens mãos que se estendem para recebê-lo.
Tradução Liliana Saro
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