A extraordinária fala de José “Pepe” Mujica na ONU
26/09/2013
- Opinión
O presidente do Uruguai, José “Pepe” Mujica, fez um discurso extraordinário na última terça-feira (24), na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Assistido por uma plateia um tanto esvaziada, Mujica fez um balanço sobre o estado das artes no mundo. Não foi uma análise de conjuntura política tradicional, mas uma fala sobre a vida, sobre como andamos, sobre como estamos regredindo enquanto civilização, presos à religião do mercado que substituiu os velhos deuses imateriais pelos antivalores do consumismo e da acumulação. Estamos criando uma civilização contra a liberdade e contra a vida, alertou:
A nossa civilização montou um desafio mentiroso sempre dirigido pela acumulação e pelo mercado. Essa civilização nos acena uma vida com abundância e esbanjamento, mas produz, na verdade, uma conta regressiva contra a natureza e contra a humanidade como futuro. É uma civilização contra s simplicidade, contra a sobriedade e contra todos os ciclos naturais. Pior ainda, uma civilização que é contra a liberdade que supõe ter tempo livre para viver as relações humanas, a única coisa transcendente que temos: amor, amizade, aventura, solidariedade, família.
Mujica é uma dessas vozes que merecem e devem ser ouvidas por todos aqueles que ainda acreditam que a política é uma condição de sentido para a vida em comum. Ele foi um dos líderes da guerrilha tupamara que pegou em armas contra a ditadura militar que governou o Uruguai de 1973 a 1985. Junto com os principais dirigentes tupamaros, ficou mais de doze anos preso em quartéis uruguaios. Desceu ao fundo do poço, literalmente. Mujica fez parte de um grupo que ficou conhecido como “os reféns”. Os integrantes deste grupo foram submetidos a um regime de destruição física, moral e mental que incluiu dois anos de encarceramento no fundo de um poço. Foram, praticamente, enterrados vivos. Isolamento total.
Neste período, aprendeu a conversar com rãs, ouvir o grito das formigas e a “galopar para dentro de si mesmo”, como forma de não enlouquecer. Sobreviveu. Saiu da prisão, junto com sua companheira de vida e de luta, Lucía Topolansky. Foram morar em um pequeno sítio nos arredores de Montevidéu, onde vivem até hoje, em um regime de comuna, com um pequeno grupo de outras famílias.
Nestes tempos de desencanto com a política e com os políticos, onde a tentação da vala comum paira sobre a sociedade, vale a pena prestar atenção na voz de um homem que esteve no fundo do poço, viu o inferno de perto, conversou com rãs e formigas, sobreviveu e se manteve na luta. Reproduzo aqui algumas das passagens da fala de Mujica na ONU. Para pensar sobre a vida no final de semana (acima está também o vídeo com a íntegra do pronunciamento).
“Tenho angústia pelo futuro que não viverei e pelo qual me comprometo”
Durante quase cinquenta anos o mundo nos viu como uma espécie de Suíça. Na verdade, no plano econômico, fomos filhos bastardos do império britânico. Quando este sucumbiu ficamos estancados, chorando o passado por quase cinquenta anos, recordando o Maracanã, nossa grande façanha desportiva. Hoje ressurgimos neste mundo globalizado, talvez tendo aprendido algo com nossos erros. Minha história pessoal é de um menino – porque certa vez fui um menino – que, como outros, fez mudar sua época e seu mundo, perseguindo o sonho de uma sociedade libertária e sem classes. Meus erros em parte são filhos do meu tempo. Obviamente os assumo. Por vezes, penso com nostalgia quem teria a força que tivemos de abrigar tanta utopia. Mas não vivo para cobrar contas ou reverberar recordações. Tenho angústia pelo futuro que não viverei e pelo qual me comprometo.
“Nossa primeira tarefa é salvar a vida”
Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez hoje nossa primeira tarefa seja salvar a vida. Sou do Sul e venho do Sul para essa Assembleia. Carrego inequivocamente milhões de pessoas pobres na América Latina, carrego as culturas originárias esmagadas, o resto do colonialismo nas Malvinas, os bloqueios inúteis a Cuba, carrego a consequência da vigilância eletrônica, que gera desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida social e a necessidade de defender a Amazônia, nossos rios, de lutar por pátria para todos e que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz. E carrego o dever de lutar por tolerância. Tolerância em relação aqueles que são diferentes de nós e com aqueles com os quais temos divergências e discordamos. Não precisamos de tolerância com quem estamos de acordo. A tolerância é o fundamento da possibilidade de conviver em paz, entendendo que somos diferentes no mundo.
A economia suja, o narcotráfico, a fraude e a corrupção são pragas contemporâneas produzidas por esse anti-valor que sustenta que somos mais felizes se enriquecemos, seja da maneira que for. Sacrificamos os velhos deuses imateriais e ocupamos o templo com o deus mercado, que organiza a economia, os hábitos, a vida e financia a aparência de felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir. E quando não podemos, carregamos a frustração, a pobreza e até a autoexclusão. O certo hoje é que para a sociedade consumir como um americano médio seriam necessários três planetas para poder viver.
“A nossa civilização montou um desafio mentiroso”
A nossa civilização montou um desafio mentiroso sempre dirigido pela acumulação e pelo mercado. Essa civilização nos acena uma vida com abundância e esbanjamento, mas produz, na verdade, uma conta regressiva contra a natureza e contra a humanidade como futuro. É uma civilização contra s simplicidade, contra a sobriedade e contra todos os ciclos naturais. Pior ainda, uma civilização que é contra a liberdade que supõe ter tempo livre para viver as relações humanas, a única coisa transcendente que temos: amor, amizade, aventura, solidariedade, família. É uma civilização contra o tempo livre, que não se paga, que não se compra. Arrasamos as selvas e implantamos selvas anônimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com pílulas e a solidão com eletrônica. E pensamos que somos felizes ao deixar o humano. Entediados, fugimos da nossa biologia, que defende a vida como um valor em si mesmo, como causa superior, e a substituímos pelo consumismo funcional. Funcional para a acumulação.
A política, a eterna mãe do acontecer humano, ficou aprisionada à economia e ao mercado. De salto em salto, a política não pode fazer mais do que se perpetuar e, para isso, delegou o poder ao mercado e se distrai lutando por governos. Seguimos em frente comprando e vendendo tudo, inovando para tentar negociar o que é inegociável. Há marketing para tudo, para cemitérios, para serviços fúnebres, para as maternidades. Marketing para pais, mães, avôs e tios, passando pelas secretárias, pelos automóveis e pelas férias. Tudo é negócio. As campanhas de marketing caem deliberadamente sobre as crianças e sua psicologia para influir sobre os maiores e ter um território assegurado para o futuro.
Temos que mobilizar as grandes economias não para produzir descartáveis com obsolescência programada, mas para criar coisas úteis para a população mundial. Muito melhor do que fazer guerras. Talvez nosso mundo necessite de menos organismos mundiais, destes que organizam fóruns e conferências. E que no melhor dos casos ninguém obedece. O que uns chamam de crise ecológica é consequência da ambição humana, este é nosso triunfo e nossa derrota.
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