Joao Pedro Stedile nos marcos da realização do III FSM
15/01/2003
- Opinión
1. O Fórum Social Mundial deve servir de instrumento para levar a experiência
do MST a outros movimentos similares pelo mundo? É a globalização da luta
pela terra?
Resposta: O FSM é um espaço de debate, de intercâmbio, de oportunidade para
trocar idéias e sonhos. É um Porto cada vez mais alegre e internacional, em
que ancoramos durante uma semana, pessoas do mundo inteiro.
Em relação aos movimentos camponeses, nós temos uma articulação internacional
que é a Via Campesina, e também sempre aproveitamos o FSM, para nos reunir,
trocar idéias. Primeiro, entre nós dos movimentos camponeses e depois também
com outros movimentos sociais, nas assembléias mundiais que temos realizado.
Mas também com outros setores sociais. De certa forma, você tem razão,
estamos produzindo uma globalização da luta pela terra. Porque nos últimos
vinte anos, o capital financeiro internacional e suas multinacionais estão
tomando conta da agricultura, das agroindústrias, do comercio agrícola, em
todo mundo.
Então o capital globalizou as formas de exploração, e trouxe como
contradição, que os movimentos camponeses, antes muito corporativos,
localizados, agora também se internacionalizam, se conhecem, se globalizam.
Agora, na Via Campesina descobrimos que os principais exploradores dos
agricultores do Brasil são os mesmos que estão na Índia, nas Filipinas, na
África do Sul, no México, na Europa, ou seja, a Monsanto, a Nestlé, etc.
2. Quais são, e de que forma se dão, as relações do MST com outros movimentos
de luta pela terra? E a experiência com a causa palestina, quando em 2002 um
integrante do MST foi fotografado ao lado de Arafat com a bandeira do MST,
trouxe algum resultado positivo?
Resposta: Desde o surgimento do MST sempre tivemos uma visão latino-
americanista, sempre nos encontramos com outros movimentos camponeses. Tanto
porque estávamos mais perto, quanto porque os Movimentos camponeses do
México, América Central, América Andina, tinham uma experiência histórica
maior do que a nossa. Desse processo, construímos uma articulação latino-
americana, que troca experiências, intercâmbio, e nos reunimos em congressos
e conferencias. Depois, a partir de 1995 construímos a Via Campesina, que é
internacional e reúne hoje mais de 90 organizações de todo mundo, de todos os
continentes.
Em relação à Palestina, nossa identidade é de solidariedade com a luta do
povo palestino, assim como de qualquer povo do mundo que lute por seus
direitos. Precisamente quando o Mário Lill, esteve em Ramalh, estava
participando de uma comitiva da Via Campesina internacional. O episódio teve
repercussão internacional, porque estando a delegação em Ramalh coincidiu com
o ataque ao Quartel de Arafat, que estava cercado. O resultado daquele
episodio é que a solidariedade internacional impediu que o Exército de Israel
bombardeasse o quartel e até matasse o Presidente Arafat.
Mas esse episódio não é isolado. Participamos de muitas outras atividades de
solidariedade. mesmo com o povo de Israel. Temos intercâmbio com os Kibutzs,
conhecemos, aprendemos com seus erros e acertos. Eu mesmo estive numa missão,
em 1999 de visita a um cientista israelense, Modechai Vanunu, que está preso
há mais de 15 anos, porque denunciou que Israel pode produzir a bomba
atômica. Fomos visitá-lo numa delegação de entidades ganhadoras do Prêmio
Nobel alternativo. Infelizmente não repercutiu no ocidente, ele ainda
continua preso.
Também, gostaria de aproveitar o tema, para denunciar. O governo de Israel do
senhor Sharon proibiu de sair do país, um convidado especial do FSM, para vir
a Porto Alegre. Trata-se do monsenhor Atalla Hanna, bispo da igreja ortodoxa
de Belém, com mais de 70 anos. As autoridades seqüestraram seu passaporte,
pois ele é cidadão de Israel, e não poderá estar conosco em Porto Alegre.
3. De que forma o MST e a Via Campesina podem contribuir para derrubar as
barreiras comerciais aos produtos agrícolas brasileiros na Europa e nos EUA?
Resposta: O MST e a Via Campesina estão discutindo há muito tempo, como as
empresas multinacionais manipulam alguns governos, manipulam a OMC e impõem
suas condições, para obter mais vantagens e mais lucro. Nós defendemos a
idéia de que o comércio internacional dos produtos agrícolas e alimentos não
podem se reger pela regras da OMC. O comércio internacional deve estar
subordinado a soberania alimentar. Ou seja, todo país tem o direito e o dever
de produzir os alimentos necessários para seu povo. E apenas vender o
excedente, e comprar o essencialmente necessário que não consegue produzir.
Somos contra a padronização alimentícia, que é um perigo e um crime contra a
diversidade cultural de nossa civilização, que as multinacionais querem
impor. Hoje, o trigo, soja, milho, e arroz, representam mais de 85% dos grãos
consumidos no planeta. Isso gera uma dependência muito grande da população.
As políticas de subsídios e de protecionismo práticadas nos Estados Unidos e
Europa, não beneficiam seus pequenos agricultores, beneficiam apenas as
grandes multinacionais, que aí obtém vantagens comparativas para competir
justamente contra os países do Terceiro Mundo, e vendendo de forma subsidiada
nos deixam dependentes.
Nós discutimos sempre as muitas formas de se mobilizar e lutar contra essa
política agrícola internacional. E estamos planejando grandes mobilizações em
todo mundo, para o próximo mês de setembro, durante a reunião da OMC em
Cancun, México. A OMC não tem direito nem legitimidade, não pertence ao
sistema da ONU, e não pode ter a pretensão de criar regras para a humanidade.
O mundo está precisando de reorganizar todo seu sistema de organismos
internacionais. Começando pela ONU, que só obedece às ordens dos Estados
Unidos e não consegue fazer que Israel, cumpra suas deliberações
internacionais, só valem quando é contra países pobres. Os Estados Unidos
são os primeiros a desrespeitar regras internacionais, veja o acordo de
Kyoto. Veja o que fizeram com o nosso embaixador Bustani, quando esse tomou
uma atitude independente.
4. A atuação do movimento social deve ser modificada com a chegada ao poder
de um grupo que simpatiza com suas idéias? É intenção do MST manter a trégua
ao governo Lula, ou esta postura pode representar um atraso às conquistas do
movimento? As ocupações vão continuar ocorrendo?
Resposta: Os movimentos sociais de todo mundo e aqui no Brasil, devem manter
total autonomia dos governos, do estado, dos partidos e das igrejas. É daí
que vem sua legitimidade e sua força para organizar o povo de forma
independente. Toda vez que um movimento social ficou dependente de partido,
estado ou governo, acabou. Pode até continuar no papel, no timbre, mas acaba
sua força. O que mudou aqui no Brasil com a eleição e a vitória do Lula é a
correlação de forças, não a forma dos movimentos sociais atuarem. Com a
vitória eleitoral de Lula, o povo disse claramente que quer mudanças. E deu
essa força ao Lula.
Então, agora, no caso da reforma agrária, evidentemente que o latifúndio
perdeu força, e que o governo Lula vai nos ajudar a combater o latifúndio. Da
mesma forma, em relação às formas de luta. Os movimentos sociais têm
autonomia para decidir suas formas de luta. E as formas de luta não são
resultantes da vontade de dirigentes ou de acordos. Elas são expressão apenas
do nível de contradição social que se cria na sociedade, por suas
desigualdades e injustiças. Pode escrever em maiúscula, enquanto no Brasil
houver latifúndios de um lado, e sem-terras de outro, sempre haverá ocupações
de terra. Assim como, enquanto houver especulação imobiliária na cidade e
muita gente sem casa, haverá ocupações de terrenos urbanos.
5. É cada vez maior a pressão para que países pobres adotem alimentos
transgênicos como alternativa para combater a fome. Na opinião do MST, a
resistência a estes alimentos será viável em um futuro próximo?
Resposta: O problema da fome do mundo não é falta de alimentos,. não é falta
de produção de alimentos. É falta de distribuição da comida. Sobra comida na
maior parte dos países. O que falta é o povo ter dinheiro, renda para poder
comprar.
Agora, as pressões que existem para adotar sementes transgênicas provem das
multinacionais, não mais de dez que queremos controlar as sementes em todo
mundo. E como elas controlam a tecnologia dos transgênicos, na
biotecnologia, então querem impor.
O MST e a Via Campesina continuam defendendo com todas as forças, e aumenta
cada vez mais o apoio da sociedade em todo mundo, contra os alimentos
transgênicos. Assim, como fica cada vez mais claro, que as sementes
transgênicas não são mais produtivas, não são mais rentáveis, e continuam
produzindo estrago no meio ambiente. Todos os dias saem noticias nos jornais
sobre essa manipulação.
A propósito, estamos trazendo para depor no FSM um agricultor canadense, o
senhor Percy Shemeister, que tem uma luta histórica contra a Monsanto, que
usa no Canadá de métodos dos mais perversos possíveis para impedir que os
agricultores tenham suas próprias sementes. O que está em jogo, na luta
contra os transgênicos, é o controle ou não das multinacionais sobre os
alimentos e a agricultura. Está em jogo, a sobrevivência dos pequenos
agricultores e camponeses; está em jogo a soberania alimentar dos povos. E
nós lutaremos até o fim e temos certeza de nossa vitória.
A Humanidade se desenvolveu até os dias atuais, porque a produção de sementes
era democratizada, qualquer camponês poderia produzir sua semente. Agora, as
multinacionais querem o monopólio. Não permitiremos. Por isso também,
lançaremos no FSM dia 24, a tarde, no estádio do Gigantinho, uma campanha
internacional, chamada AS SEMENTES SÃO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE. E essa
campanha será levada em todo mundo, para que os agricultores produzam suas
próprias sementes. Depois faremos uma atividade no assentamento de
Charqueadas para lançar a campanha para nossa base, brasileira, com a
presença de diversas personalidades como Noam Chomski, Peter Rosset, Pat
Money, Silvia Ribeiro, Jean Zigler.
6. A ação do MST sempre foi bastante forte e ao mesmo tempo polêmica no RS.
Depois das denúncias da utilização de uma cartilha com instruções aos
integrantes e a mudança do governo, que ações o movimento planeja para 2003
para o Estado e para resgatar a simpatia da sociedade gaúcha?
Resposta: O polêmico na nossa sociedade é como explicar que em pleno terceiro
milênio ainda tenhamos a propriedade da terra concentrada em tão poucas mãos?
Polêmico é, porque um banco precisa ter terra? Porque a VASP precisa ter
fazendas? Porque um burguês qualquer da cidade precisa ter fazendas ? Isso é
polemico. E os pobres do campo têm o direito de denunciar. O MST do RS não é
polêmico, ele é lutador! O que diferencia dos outros estados, é que aqui no
RS, temos o monopólio dos meios de comunicação mais concentrado, aonde uma
empresa como a RBS, manipula, mente freqüentemente, e se transformou num
partido da burguesia. extrapolou completamente suas funções. Durante quatro
anos fez uma campanha clara, explícita, mordaz contra o governo popular e
contra o MST e todos movimentos sociais. Espero que um dia a sociedade gaúcha
se dê conta dos males que esse tipo de comportamento faz para a democracia e
a justiça social.
A sociedade brasileira e gaúcha tem muita simpatia pelo MST e pela reforma
agrária, se não fosse isso, já teríamos acabado. A RBS fez uma campanha
hedionda contra nossa escola de Veranópolis, mas a sociedade de Veranópolis,
que nos conhece, nos defendeu. As pessoas sensatas, e mesmo as autoridades do
novo governo gaúcho sabem, de que enquanto houver tamanhas contradições entre
o latifúndio improdutivo e milhares de famílias sem terra, sempre haverá
conflitos sociais.
7. É o terceiro ano em que você participa do Fórum Social Mundial. Qual é a
sua avaliação sobre a contribuição do evento às causas sociais?
Resposta: Como disse no início, o FSM é um porto. Não é uma articulação, não
é sua função organizar, tirar documentos ou linhas políticas. Mas ele tem
sido um espaço importante para debater idéias. E isso tem sido fundamental
nessa conjuntura internacional e nacional, de hegemonia do neoliberalismo e
da ampliação do monopólio das comunicações. Graças ao FSM, os tema sociais,
as causas do povo voltaram a ter espaço, e foi possível dizer que não é
verdade que o neoliberalismo é o fim da história. O FSM rompeu com a
hegemonia do "pensamento único" que existia nos meios de comunicação, nas
universidades, nos meios políticos. Então, a maior contribuição do FSM, foi
estimular o debate. E espero que com o novo governo Lula, se abra um período
de debate em toda sociedade brasileira. Todos sabemos as limitações para
realizar as mudanças que o novo governo enfrentará. Mas a saída é o debate, é
formar grandes correntes de opinião pública, é a organização das pessoas, é a
participação popular. É a mobilização da sociedade.
* Entrevista com Joao Pedro Stedile, dirigente do MST, nos marcos da realização
do III FSM 23-27 de janeiro 2003. PORTAL TERRA (Porto Alegre-RS, 15 de janeiro 2003)
https://www.alainet.org/en/node/106871
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