A velocidade do sonho (Terceira parte): pés descalços
25/10/2004
- Opinión
O clube das mutuas caricaturas.
Qual é a velocidade do sonho?
Não sei.
"Não sei". Essas duas palavras deveriam estar mais presentes
no repertório de todos, tão obrigados que às vezes nos
sentimos a opinar a respeito de tudo, e a suplantar opiniões
por dogmas e receitas ("verdades", dizem).
No Clube das mutuas caricaturas, ou seja, entre a seleta
intelectualidade que, nos e dos meios de comunicação de
massa de direita (e alguns "de esquerda"), se mantém alheia
("objetiva", dizem) à realidade, faz tempo que a crítica e o
debate foram suplantados pelo escândalo na mídia, por
"neutralidades" (que, no final da edição, são mais
fundamentalistas do que Bush e Bin Laden), e por profecias
que pouco importa se não são argumentadas ou não se cumprem
("afinal, quem se importa com a realidade?").
Cortesãos versáteis da periferia do poder, estes
intelectuais falam de tudo, são especialistas em tudo. Em
sua filosofia instantânea e solúvel ("vamos ao ar - entrego
a minha contribuição em poucos minutos, bom, não há tempo
para pensar no que vou dizer/escrever"), seguindo as modas
que se renovam de tempos em tempos, estes neo-filósofos da
pós-modernidade imitam as poses e o método dos "grandes"
pensadores, ou seja, abstraem e generalizam. Ou seja, supõem
e criam um modelo, e logo o aplicam. As sobras? Pra lixeira
(ou seja, fora da programação ou do índice da matéria).
E tem mais. O intelectual e o comunicador que atuam como
analistas políticos de direita (e não poucos de esquerda),
se erguem a juízes que ditam sentença e esperam, sentados na
academia ou na sala de imprensa, que a realidade seja o
verdugo que executa a sentença. Se o "sucesso" da filosofia
política reacionária, ou seja, a do analista de direita,
está em sua capacidade de "justificar" uma ação, o dos que
pregam a partir do púlpito dos meios de comunicação está em
banalizar a falta de razão. Propondo emoções refletidas e
não razões, os comunicadores abordam a guerra, a pobreza, as
catástrofes naturais, as arbitrariedades governamentais, os
crimes e o cada vez mais freqüente aflorar do
descontentamento popular.
Afinal, os sentimentos podem ser tão fugazes como os temas
"mais importantes" dos noticiários. Assim, se desesperam
pela falta de vídeos.
Mas acontece que muitos deles provocam reflexões, e digamos
que a reflexão profunda não é a fonte da comunicação de
massas.
A velocidade do pesadelo.
E é com a reflexão teórica (que não é sinônimo de
masturbação mental), o debate (que não é pingue-pongue de
adjetivos), a troca de experiências (que não é troca de
receitas), que, se não se pode saber qual é a velocidade do
sonho, se pode, por outro lado, calcular a velocidade do
pesadelo. Da nossa própria experiência e do que vemos do
globalizado andar de cima, aprendemos que é a mesma do
baixar as mãos, do render-se, do resignar-se, do assumir a
cômoda e estúpida posição de espectador, do abandonar ideais
em nome de um pragmatismo que, no fim das contas, se revela
estéril e deformador.
Se o poder mundial presta um culto doentio ao 11 de setembro
e ao 11 de março, não é para trazê-los como argumento do
pesadelo que globalizam, e querem nos "vender" o sonho de
que seu poderio militar e policial evitará que se repitam
outros "onzes" no calendário...semeando seu terror em outras
datas e no mundo todo. Mas, diante dos "11" do terror de um
e outro lado, há, por exemplo, um "15", o de fevereiro de
2003. Nesta data, mais de 30 milhões de pessoas, de mais de
100 nações do mundo, se mobilizaram contra a guerra.
Muitos dirão que foi inútil, que, seja como for, a guerra se
concretizou. Mas esquece-se que as colheitas das semeaduras
de baixo nunca são imediatas.
E nem sempre as mobilizações terminam quando se encerram os
noticiários. Na maioria das vezes resultam em aprendizagem e
organização. O poder pode conviver bem com demonstrações de
repúdio das massas, que acabam quando trocam de canal; mas
não pode se sentir confortável com a organização deste
repúdio, muito menos com seu crescimento.
Porque, em baixo, aprender é crescer.
As mentiras, por mais rating que ostentem, costumam provocar
indigestão e vômito. As verdades, com certeza, provocam dor
de estômago, mas este costuma ser aliviado ao fazer alguma
coisa. Porque, se as mentiras são irremediáveis, as verdades
sim têm remédio.
Diante do pesadelo, não basta despertar. A vigília pode
florescer no sonho. O impreciso sonho zapatista.
Mas, qual é a velocidade do sonho?
Não sei.
Em nosso sonho, o mundo é diferente, mas não porque algum
deux ex machina vai nos dar ele de presente, mas sim porque
lutamos, na permanente vigília da nossa vigília, para que
este mundo amanheça.
Nós zapatistas temos plena consciência de que, nem nós, nem
ninguém, teremos a democracia, a liberdade e a justiça que
precisamos e merecemos, até que, com todos, todos a
conquistemos.
Com os operários, com os camponeses, com os empregados, com
os jovens.
Com aqueles que fazem andar as máquinas, que fazem produzir
o campo, que dão vida às ruas e aos caminhos. Com aqueles
que, com seu trabalho, todo dia, precedem o sol.
Com aqueles que sempre produzem as riquezas e hoje só
consomem as pobrezas.
Nossa luta, ou seja, nosso sonho, não termina.
Contudo, na vigília de todos os dias nos esforçamos para não
deixar em herança, àqueles que virão, um espaço de rancor e
afã de destruição.
Referendamos a cada momento nossa decisão de não impor a
ninguém (nem a nós mesmos) - mesmo que na impunidade da
ausência definitiva (tocados pela varinha mágica da morte,
esta que transforma em perfeição o que não é outra coisa a
não ser um montão de contradições) - uma série de cinismos
disfarçados de "razões políticas" ou de fundamentalismo
disfarçado de "neofilosofia" universal e eterna.
O zapatismo não é um guia para a ação.
A cada minuto de cada hora de cada dia estamos empenhados em
não pregar o culto do "vale tudo", que costuma ser só um
limite para justificar que, no "tudo", está incluído o trair
os princípios. A razão que nos move é ética. Nela, o fim
está nos meios.
Queremos, e por isso lutamos quotidianamente contra tudo
(incluídos nós mesmos), colocar mais uma pedra em nossa
casa, a que queremos toda portas e janelas, pela qual se
possa entrar, se possa sair, olhar e ser olhado, sem outro
limite a não ser a vontade de fazer ambas as coisas. Uma
casa na qual não seja motivo de dor ser mulher, ou criança,
ou ancião, ou indígena, ou jovem, ou gay, ou lésbica, ou
transexual, ou trabalhador do campo e da cidade. Enfim, um
lugar onde pertencer à humanidade não seja uma vergonha.
Queremos continuar lutando com o que somos, como zapatistas.
Assim, o novo mundo não nascerá só do nosso passo, mas
também dele.
Queremos, finalmente, desaparecer. Para isso, e não para
outra coisa, foi que aparecemos. Por isso, nós não estamos
em nosso sonho. Pés descalços.
Qual é a velocidade do sonho?
Não sei.
Mas agora, nesta madrugada de setembro, sem outra companhia
a não ser a do vento gelado, com a chuva batucando
impaciente no telhado da choça, e somando a nuvem que levo a
que lá fora repousa, me ocorreu que, talvez, é a mesma
velocidade com a qual, no meu sonho, a sombra que sou
desvanece na outra e amável sombra entre as pernas dela,
enquanto escrevo com meus lábios promessas impossíveis nas
plantas de seus pés descalços...
Das montanhas do sudeste mexicano
Subcomandante Insurgente Marcos.
México, setembro de 2004, 20 e 10.
P.S. Termina aqui este programa "científico" do Sistema
Zapatista de Televisão Intergaláctica. Depois de um
intervalo anticomercial, continuaremos com nossa
programação. Não mude de canal. (Na tela, ou seja, na
cartolina, aparece: "Sandálias Yepa-Yepa, a única sandália
g-l-o-b-a-l-i-z-a-d-a, lança no mercado seu novo modelo
"Pozól azedo" edição limitada, a preço de sonho! Não se
aceitam cartões de crédito e nem dinheiro. Permissão da
Junta de Bom Governo número 69. Aplicam-se restrições").
https://www.alainet.org/en/node/110764?language=en
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