De sementes, de saberes e de poderes ou de OGMs e OLMs: em busca de precisão conceitual

06/09/2007
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Como a ciência está cada vez mais politizada, como o demonstram os debates acerca dos transgênicos e da mudança climática global (efeito estufa), a exigência da precisão conceitual torna-se, exatamente por isso, ainda mais necessária.  É sabido desde Francis Bacon e reiterado, mais recentemente, por Michel Foucault, que \'saber é poder\'.  Embora não haja consenso na comunidade científica quanto ao tratamento a ser dado a essa complexa relação, o fato é que a história recente vem nos obrigando a dedicarmos mais atenção ao tema.  Desce 1945, com o uso da bomba atômica, que a ciência tem se tornado um assunto sério demais para ficar nas mãos dos cientistas, se me permitem me apropriar da máxima de Clausewitz, o teórico da guerra.  No caso da bomba atômica, a relação entre o conhecimento científico e poder, por meio da guerra, ficou por demais explícita.  Entretanto, mais recentemente, essa relação entre conhecimento científico e poder vem se tornando mais banal, ao chegar mais perto do nosso cotidiano por meio de questões como nossos alimentos, remédios e das mudanças climáticas (que embora global, atinge de modo desigual as diferentes regiões e os diferentes grupos sociais no mundo, vide ilhas ao longo dos Oceanos Pacífico e Índico). 

Considerar a relação entre ciência e poder é uma exigência da própria ética científica, na medida em que essa relação está implicada na própria natureza da produção do conhecimento científico, sobretudo, mas não exclusivamente, diante das condições materiais e de financiamento.  As parcerias, cada vez mais comuns, entre o Estado e as empresas, têm colocado novas e complexas questões como, por exemplo, a do caráter público do conhecimento científico que se traduz na exigência de publicação (publicar é tornar público) e o caráter privado que caracteriza a instituição empresarial que exige a proteção sigilosa do conhecimento.  Os seminários, colóquios, simpósios, congressos e encontros científicos já não vêm mais as comunicações abertas de conhecimento, haja vista a preocupação cada vez maior com o patenteamento. 

É com a intenção de contribuir para o debate acerca dos OGMs - Organismos Geneticamente Modificados, também chamados OTMs - Organismos Transgenicamente Modificados - que, em nome da precisão conceitual, sugiro a recusa do conceito de OGMs que, rigorosamente falando é tudo que existe na evolução das espécies.  O processo de especiação se dá na natureza, sempre, por modificação genética, enquanto processo inintencional.  Já os cultivares são, desde sempre, criações humanas co-evoluindo com processos naturais durante tempos longos.  A língua portuguesa tem, sobretudo entre os camponeses, uma expressão rica para entender isso quando se referem ao sucesso ou o insucesso de uma semente selecionada e plantada dizendo que a semente vingou ou não vingou.  Assim, lançam à natureza uma semente e espertam que ela opine, ou seja, que a natureza a assimile numa relação dialógica e não unilateral. 

 O que está em debate, hoje, não são os OGMs e, sim, os OLMs, qual seja, organismos cujo processo de criação não se dá de modo livre na relação da sociedade com a natureza, mas sim a partir dos laboratórios cada vez mais ligados ao mundo financeiro, industrial e midiático.  Já não estamos mais diante de agri-CULTURA e, sim, NEGÓCIOS que operam no agro, agro-NEGÓCIO, aliás, como o complexo técnico-científico-empresarial gosta de se autodenominar (respeito, aqui, a boa norma antropológica de respeitar ao máximo as autodenominações. 

Com os OLMs muda o lugar da produção de conhecimento num setor fundamental para a existência humana, posto que diz respeito à reprodução energético-alimentar da nossa espécie, a agricultura e a criação de animais.  Assim como o conhecimento é, tanto como alimento, condição necessária para a reprodução social - aliás, todo modo de produção de alimento é um modo de produção de conhecimento -, o que estamos assistindo com o deslocamento da produção de cultivares para os OLMs é o deslocamento do locus de poder que passa dos campos e dos camponeses e dos mais variados povos originários para os grandes laboratórios do complexo técnico-científico-empresarial.  Enfim, mais que revolução tecnológica, estamos diante de uma mudança nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia

Com a recente onda pela expansão dos monocultivos de espécies de plantas visando a produção de combustível (etanol e diesel de origem vegetal) um novo complexo de poder técnico-científico-industrial-financeiro-midiático vem se configurando com a fusão de empresas automobilísticas se associando com empresas do ramo da biotecnologia, industrializando a agricultura e submetendo, cada vez mais, o destino das plantações e dos povos originários e camponeses, mas também toda a humanidade, aos desígnios de meia dúzia de empresas.  A Dupont de Nemurs se associou à Pionner Hibred (sementes) e á British Petroleum.  A Toyota se associou à British Petroleum no Canadá para produzir etanol.  A Volkswagen acaba de se associar a ADM (alimentos).  A Royal Dutch Shell se lança na produção de óleo carburante e a Cargill na produção de óleo diesel.  O melhor exemplo disso é a aliança dos agronegociantes brasileiros com o setor do complexo dos combustíveis fósseis estadunidense recentemente consagrada com a criação da Associação Interamericana de Etanol que tem o Sr.  Jeb Bush e o Sr.  Roberto Rodrigues (ex-ministro do governo Lula e membro da Associação Brasileira de Agronegociantes) seus principais dirigentes[1].  São graves as conseqüências do que está em curso, haja vista que desde o século XIX, sobretudo, os combustíveis fósseis foram colocados à disposição da produção de alimentos (máquinas a vapor nos tratores e nas colheitadeiras, por exemplo) e, agora, é a agricultura (ou o negócio do agro?) que se coloca a serviço da máquina a vapor para dar sobrevida a um modo de vida sabidamente insustentável do ponto de vista ecológico e que tende a agravar a injustiça social.

A diversidade cultural tende a ser ameaçada.  Tudo indica que o destino da humanidade e do planeta dependerá da solução dessa luta que cada vez mais vem exigindo a atenção de todos.

- Carlos Walter Porto-Gonçalves é Doutor em Geografia pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense e Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000).  É autor de diversos artigos e livros publicados em revistas científicas nacionais e internacionais, sendo os mais recentes: - “Geo-grafías: movimientos sociales, nuevas territorialidades y sustentablidad”, ed.  Siglo XXI, México, 2001; “Amazônia, Amazônias”, ed.  Contexto, São Paulo, 2001; “Da Geografia às Geo-grafias: um mundo em busca de novas territorialidades” – “Da Geografia às geo-grafias: um mundo em busca de novas territorialidades” in “La guerra Infinita: hegemonía y terror mundial” Sader, E.  e Ceceña, Ana Esther (orgs.), Clacso, Buenos Aires 2002. 
“A Geograficidade do Social” in “Movimientos sociales y conflicto en América Latina” Seoane, José (org).  Clacso, Buenos Aires, 2003; “Geografando – nos varadouros do mundo”, edições Ibama, Brasília, 2004.



[1] É do Sr.  Jeb Bush a frase “da Alca ao álcool”, com isso explicitando os objetivos geopolíticos da Associação Interamericana de Etanol.

https://www.alainet.org/en/node/123087
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