Há um ano do 30 de setembro (30S): o dia em que a cidadania parou o golpe
29/09/2011
- Análisis
Em memória de Juan Pablo Bolaños, jovem assassinado absurdamente no dia 30S
O 30S marcou um antes e um depois na história recente do Equador. A mobilização cidadã, a solidariedade internacional e o respaldo dos militares à ordem democrática impediram a ruptura do fio constitucional. Setores populares comemoraram este aniversário com mobilizações.
Há um ano da insubordinação policial do 30 de setembro de 2010 (30S), a polêmica continua: foi uma simples revolta ou se tratou de uma tentativa de golpe de Estado?
As oposições - midiática, de direita e de um setor de esquerda - de forma consciente, apontam que no dia 30 de setembro nunca houve uma tentativa de golpe de Estado. Argumentam que se tratou de um simples protesto policial provocado por um veto presidencial à Lei do Serviço Público que eliminava os bônus por condecorações aos uniformizados (mas que lhes compesava economicamente). Dizem que o presidente Correa nunca esteve sequestrado e que ele é o único culpado pelos acontecimentos violentos, por ter "provocado" o quartel onde estavam os policiais insurgentes no noroeste de Quito e ter gerado o caos. Ainda mais, o acusam de ter ordenado disparar no hospital da polícia (onde estava preso) e ameaçam julgá-lo na Corte Penal Internacional por supostos "crimes de lesa humanidade".
Se nos remetemos aos fatos, é possível afirmar que esse dia, desde cedo, os policiais e um grupo de militares protagonizaram uma revolta que estava longe de ser um "simples protesto sindical". Uma primeira consideração é que os insurgentes pertenciam a um corpo armado cuja paralização acarreta - em qualquer sociedade - graves consequências para o funcionamento do Estado e para a população que fica desprotegida.
Vários analistas concordam que a revolta do 30S tinha todos os aspectos de uma tentativa de golpe de Estado. Mario Ramos e Alexei Páez, uma semana depois do 30S, escreveram: "diferente de outros setores, que concordam com a racionalização e a reinstitucionalização do Estado, os militares e os policiais têm capacidade de pressão porque têm as armas. Por isso, a ciência política latino-americana contemporânea, por causa das terríveis ditaduras do cone sul, aponta que uma greve de policiais e militares é, por si só, um golpe de Estado. Não há espaço para interpretá-lo como um ato imprevisto".
Os policiais não apenas tomaram os quartéis e saíram às ruas para fechar as vias e sim fecharam a Assebleia Nacional, lançaram bombas de gás lacrimogênio e bateram em ministros, congressistas, jornalistas, portadores de necessidades especiais e cidadãos, tanto que militares do Exército faziam manifestações no Ministério da Defesa e membros da Força Aérea fechavam o Aeroporto Mariscal Sucre de Quito. Pela tarde, um grupo de direita invadiu o canal público e se pronunciava pela saída do presidente. Entre os grupos políticos que apoiaram a sublevação policial estiveram, segundo o governo, o Sociedade Patriótica, dirigido pelo ex-presidente Lucio Gutiérrez, o Movimento Popular Democrático, um setor do Pachakutik, entre outros.
Depois que Rafael Correa comparecesse no Regimento Quito (o foco da revolta) atentaram contra a integridade física dele: ele foi humilhado e tentaram bater no seu joelho (estava convalescente de uma operação), lhe lançaram bombas de gás lacrimogêne e gás de pimenta, prenderam ele durante várias horas no interior do hospital onde tinha se refugiado, e ao ser resgatado pelos corpos de elite do exército e da polícia, tentaram matá-lo disparando contra o carro em que saía. Há várias evidências como vídeos, fotografias, depoimentos de jornalistas, vozes de policiais, que mostram a tentativa de magnicídio.
Não houve os típicos proclames golpistas para tomar o poder, como se faz tradicionalmente, mas dirigentes políticos da oposição se pronunciaram pela saída do Presidente e um grupo de congressistas de direita pediu anistia para os insurgentes. A intentona golpista foi articulada progressivamente sobre a marcha do dia 30 de setembro.
Sobre as causas da revolta, o historiador Juan Paz y Minó, no seu livro "Insubordinación o golpe", aponta que a aprovação da Lei Orgânica de Servidores Públicos (Losep) pela Assembleia Nacional, que eliminou o antigo sistema de condecorações e benefícios correspondentes, seria apenas a "gota d'água".
As outras motivações estiveram relacionadas com investigações sobre violações dos direitos humanos: o governo apoiou a criação de uma Comissão da Verdade que identificou 459 agentes policiais e militares (vários deles em serviço) como supostos responsáveis de violações dos direitos humanos no período de 1984 - 2008. O governo cortou o vínculo que existia entre os serviços de inteligência policial e militar equatorianos com os Estados Unidos, país que os controlava; promoveu o desaparecimento do Grupo de Apoio Operacional, acusado de cometer torturas e desaparecimentos forçados (integrantes deste organismo estavam presos em setembro de 2010 e um dos seus integrantes supostamente dirigiu a revolta). Mas, além disso, o governo adotou medidas para subordinar a polícia ao poder civil, transferir a responsabilidade do trânsito aos municípios, ao mesmo tempo que promoveu um forte programa de investimento para proporcionar quartéis, moradias, coletes à prova de balas e armas e, para melhorar significativamente suas remunerações. Essas mudanças causaram mau-estar na polícia que, segundo Juan Paz y Miño, não foi bem processado pelo governo.
O resultado da revolta policial foram cinco mortos em Quito (o estudante Juan Pablo Bolaños, os policiais Froilán Jiménez e Edwin Calderón, os soldados Jacinto Cortez e Jairo Panchi Ortiz) e mais de 250 feridos. As Forças Armadas informaram que 7 oficiais e 35 elementos de tropa foram feridos.
Na cidade de Guayaquil, a notícia de que a polícia não ia sair para fazer patrulha se espalhou como pólvora e se produziram saques e roubos. Se calculam as perdas em cinco milhões de dólares, mas o mais grave foram os cinco mortos e 28 feridos que houve nessa cidade.
As oposições apresentam os carracos como vítimas e passam por cima do papel desempenhado pela cidadania que pagou um preço alto por defender a democracia. Enquanto nos encontrávamos nesse 30 de setembro próximo do hospital da polícia, Ángel Navarrete, de 55 anos, nos contava: batiam nas pessoas e os policiais chutavam as mulheres, policiais vestidos de civil e outros encapuzados; lançavam pedras e bombas, me deixaram inconsciente, me chutaram e por todo corpo estou machucado".
A Omar Mosquera, enquanto se encontrava próximo do lugar onde estava preso o Presidente, um policial lhe disparou uma bomba de gás lagrimogêneo que lhe desfigurou o rosto. Desde então recebe tratamento médico e cirúrgico. A José Luis Caicedo lhe reconstruíram o rosto que também foi atingido com uma bomba de gás lacrimogêneo. Jorge Cisneros ainda carrega no seu corpo 60 balas, duas bem próximas ao coração. O portador de necessidades especiais, Julio Flores, apanhou no chão. Juan Pablo Bolaños, estudante de Economia da Universidad Central, recebeu dois tiros na cabeça próximo ao hospital da polícia. Bolaños era simpatizante de Correa e morreu com apenas 24 anos. Este crime não foi esclarecido nem julgado, assim como o de Froilán Jiménez, o policial que serviu de escudo humano quando o presidente saia do hospital, e todos os outros casos.
O 30S deixou dezenas de vítimas que sofreram a dor da morte dos seus familiares, maus-tratos, golpes e humilhações, e que agora se organizaram para pedir justiça. Eles apontam que estes fatos não podem ficar na impunidade, palavra que marca até agora os acontecimentos porteriores ao 30S. Muitas provas foram apagadas, a grande imprensa e o juízes declararam alguns envolvidos inocentes e se ainda estão abertos 18 processos judiciais que envolvem policiais, militares e civis. A justiça avançou pouco para esclarecer e sancionar sobretudo os responsáveis materiais e intelectuais.
A mobilização cidadã - sobretudo em Quito - foi fundamental para impedir que a situação caótica criada pelos policiais se tornasse uma ruptura constitucional. Milhares de pessoas cercaram o hospital da polícia onde Rafael Correa estava preso e exigiram a sua libertação. Se enfrentaram desarmados com os policiais que lhes responderam com golpes, bombas, gases e balas. Depois da sua libertação, o acompanharam ao Palácio de Governo. O dia 15 de outubro de 2010, em Quito, se reuniram milhares de pessoas das diversas províncias do país, manifestação que foi ignorada pela grande imprensa privada.
Na linha de defender a democracia apontou a imediata reação dos governos latino-americanos. Não se podia tolerar a reedição de um golpe como o de Honduras. Em poucas horas, 6 presidentes se reuniram em Buenos Aires e aprovaram uma declaração em nome da UNASUL em que "condenam a tentativa de Golpe de Estado e o posterior sequestro do Presidente Rafael Correa", pedem que se julgue os responsáveis e anunciam severas medidas no caso das rupturas da ordem constitucional. Uma condenação menos contundente aprovou a Organização dos Estados Americanos (OEA).
O 30S marcou um antes e um depois no governo de Rafael Correa. A mobilização cidadã, a solidariedade internacional e o respaldo do alto comando militar à ordem democrática impediram a ruptura do fio constitucional no Equador. Uma nova Honduras não pode ser reeditada na região.
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