Caracas também é aqui
05/03/2015
- Opinión
A prisão de Antonio Ledezma é uma manobra do governo de Nicolás Maduro para distrair os venezuelanos da crise econômica ou o prefeito oposicionista de Caracas esteve de fato envolvido em uma conspiração golpista? Não se descarte qualquer das hipóteses nem uma combinação de ambas. A realidade não permite visões simplistas.
A acusação não foi até agora comprovada de forma a satisfazer observadores externos, mas é tudo menos inverossímil. O prefeito participou de pelo menos um golpe, o de 11 de abril de 2002, e sempre integrou a linha-dura da oposição, aquela que julga sua pretensão ao poder inegociável, urgente e acima de considerações constitucionais. Durante as 48 horas de poder do empresário Pedro Carmona, Ledezma comandou a tomada da prefeitura de Caracas ao chavista Freddy Bernal, para o qual perdera a eleição dois anos antes.
Derrotados os golpistas, participou das manifestações em apoio ao locaute que paralisou por meses a PDVSA para novamente tentar derrubar o governo. Em 2004, lançou seus militantes “heroicamente” contra uma cúpula dos países não alinhados em Caracas e em uma marcha que acabou na depredação e incêndio da sede do partido chavista e acusou de fraude o referendo que manteve Hugo Chávez no poder, cuja legitimidade foi reconhecida até por George W. Bush. No ano seguinte, liderou um boicote da oposição às eleições legislativas para deslegitimar o governo, erro crasso que deixou a Assembleia sem oposição nos anos de maior popularidade do bolivarianismo. Em fevereiro de 2014, no cargo de prefeito, apoiou os protestos violentos contra Maduro liderados por Leopoldo López, que deixaram 43 mortos e milhares de feridos. Na ocasião, essa exigência do “saia já” foi condenada pelo próprio candidato presidencial derrotado Henrique Capriles, que advertiu: “É preciso entender que, se o povo humilde não sai às ruas, não há maneira de promover mudanças”.
Segundo o governo, o novo plano envolvia o bombardeio do palácio presidencial, do Ministério da Defesa e da sede da emissora bolivariana Telesur por aviões, enquanto estudantes sairiam às ruas e seria divulgado um manifesto convocando os militares à rebelião, assinado pelos três principais líderes do movimento “La Salida” de fevereiro de 2014, Ledezma, López (preso desde então) e a ex-deputada María Corina Machado, cassada no ano passado depois de aceitar um cargo de “embaixadora alternativa” do Panamá, hostil a Caracas, na Organização dos Estados Americanos. Sete generais e tenentes da Aeronáutica foram detidos em 12 de fevereiro, data prevista para o ataque e aniversário dos protestos. Os demais comandantes militares reafirmaram a lealdade ao governo de Maduro.
Por outro lado, há motivos reais para insatisfação. Se não se combinasse com uma gestão voluntarista, a queda do preço do petróleo e a má vontade de empresários privados não bastariam para explicar a deterioração de uma economia que há poucos anos distribuía ajuda a vários países latino-americanos e até aos pobres dos Estados Unidos.
Há quatro taxas de câmbio para racionar a escassez de dólares. A taxa oficial, de 6,30 bolívares, converte a maior parte da receita petrolífera em importação de alimentos básicos e remédios. A taxa Sicad (Sistema Complementar de Administração de Divisas), para turismo e importações não prioritárias, funciona em regime de leilões, refere-se a 20%-25% da receita oficial e gira em torno de 12 bolívares. Uma terceira taxa, Simadi (Sistema Marginal de Divisas) aplica-se a 5% a 10% das divisas do petróleo, funciona em regime de livre-mercado e está em 172 bolívares, e ainda existe o câmbio paralelo, que desde a morte de Hugo Chávez subiu de 20 para 195 bolívares. Assim, o litro da gasolina, que custa 9,7 cêntimos de bolívar, equivale a 4,4 centavos de real pelo câmbio oficial ou a 0,14 centavo de real pelo paralelo.
São sintomas de desequilíbrios graves. O custo real de produção da gasolina é de pelo menos 2,7 bolívares sem se somar o preço internacional do petróleo bruto, que acrescentaria outro tanto, mas Maduro não ousa aumentar o preço na bomba. Foi um reajuste como esse que provocou o Caracazo de 1989, cuja repressão violenta (2 mil mortos) iniciou a instabilidade que derrubou Carlos Andrés Pérez e pôs Chávez a caminho do poder. Para evitar o aumento dos bens de primeira necessidade, o câmbio oficial é mantido artificialmente baixo, mas a inflação subiu para compensar a insuficiência da arrecadação de impostos. Tais condições desencorajam a agricultura e a indústria nacionais e põem em risco a manutenção da própria infraestrutura petrolífera, a julgar pela frequência dos acidentes em refinarias. O chavismo não criou esse círculo vicioso, mas também não o rompeu e comprometeu com programas sociais uma fatia cada vez maior da receita do petróleo quando o preço subia, o que tornou o orçamento vulnerável à queda inesperada.
Chávez cogitava um ajuste e talvez seu carisma tivesse facilitado a absorção de uma medida tão impopular, mas o adiou para depois das eleições de 2012 e então sua doença se agravou. Ficou ainda mais difícil na conjuntura de assédio pela oposição na qual Maduro assumiu, concorreu à Presidência e continua a governar. Seria necessário um diálogo racional para se chegar a um consenso sobre mudar os rumos da economia sem prejudicar os menos favorecidos, mas como debater de maneira razoável com uma oposição cujo único horizonte é negar e desmantelar o chavismo e todos os avanços conquistados? Na erupção de protestos de há um ano os alvos preferenciais da violência eram não só casas de governistas como emissoras comunitárias, mercados populares, conjuntos habitacionais, creches e centros de saúde, tudo que representa o Estado social. Se medidas autoritárias pareceram se multiplicar nos últimos tempos, foi também um imperativo do instinto de sobrevivência.
Se em tempos melhores, interesses de classe opostos podem, até certo ponto, ser conciliados por meio de certa astúcia política, nas vacas magras alguém tem de perder e quem pode mais faz o possível para chorar menos. Versões pouco menos agudas do mesmo impasse se observam em outros países latino-americanos com governos de centro-esquerda diante de problemas devidos à combinação do aumento de gastos sociais com a queda dos preços de commodities, casos do Brasil de Dilma Rousseff e da Argentina de Cristina Kirchner. Mesmo se o país acaba de encerrar um governo de direita e o novo ciclo de reformas mal começou, como no Chile de Michelle Bachelet, onde pais de alunos de escolas particulares se enfurecem contra as medidas que permitirão reconstruir o ensino gratuito.
Independentemente da seriedade das dificuldades econômicas ou de atitudes autoritárias contra a mídia ou as oposições, os três governos são alvo de protestos de classe média, indignação seletiva e desproporcional da mídia nacional e estrangeira e processos judiciários conduzidos com rigor incomum, quando não com parcialidade óbvia. Em alguns casos, inclusive no Brasil, as reivindicações da oposição conservadora são um disfarce precário para um ódio visceral e nada civilizado a mudanças ameaçadoras a velhos privilégios. Há protestos populares, mas não a mesma fúria das elites em paí-
ses igualmente afligidos por crise econômica, corrupção e problemas sociais ainda piores, mas com governos conservadores. Assim o papa Francisco, por ver o continente por seus próprios olhos e não os dos analistas da tevê, chocou o presidente Enrique Peña Nieto ao se confessar preocupado com o risco de mexicanização da Argentina – não o de argentinização (ou brasilianização) do México.
ses igualmente afligidos por crise econômica, corrupção e problemas sociais ainda piores, mas com governos conservadores. Assim o papa Francisco, por ver o continente por seus próprios olhos e não os dos analistas da tevê, chocou o presidente Enrique Peña Nieto ao se confessar preocupado com o risco de mexicanização da Argentina – não o de argentinização (ou brasilianização) do México.
Seria ingênuodesprezar a priori a hipótese de uma articulação internacional de oposições conservadoras para reforço mútuo em uma conjuntura difícil para todos os governos populares, nem a da participação de agências dos EUA desejosas de reconfigurar as partes da América Latina que pareciam domesticadas nos anos 1990, mas roeram a corda na virada do milênio. A convergência desses interesses é tão mais óbvia quanto mais Washington sente sua hegemonia ameaçada. A divergência entre Aliança do Pacífico, Mercosul e Alba é em grande parte reflexo da disputa por influência entre Washington e Pequim. Indício disso é o recente início de construção de um canal rival do Panamá na sandinista e bolivariana Nicarágua.
Para os governos assediados e quem mais acredite em desenvolvimento independente e justiça social, a resposta possível é também a articulação, para a qual a Unasul tem se mostrado um fórum útil. A pressão dos vizinhos teve sucesso em ajudar a estabilizar a Bolívia após os violentos protestos separatistas de 2008 e mesmo na própria Venezuela de 2002. Entretanto, não há como mediar a crise em Caracas se não houver um mínimo de disposição de ambas as partes para fazer concessões, do governo para viabilizar o direito de defesa e o julgamento transparente dos acusados e da oposição para esperar a oportunidade legal de disputar o poder nas urnas. E, desta vez, é preciso planejar uma saída viável para o impasse econômico, cuja gravidade não permite mais panos quentes e improvisações.
05/03/2015
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