O papel da política externa na restauração do neoliberalismo tardio

18/05/2016
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
 politica
-A +A

A política mais danosa é a de ser pequeno.

Charles de Gaulle

 

A nomeação de José Serra para conduzir a política externa do governo ilegítimo não é algo casual. Não se trata de mera acomodação de interesses partidários ou prêmio de consolação pela perda da condução da economia.

 

Não. A nomeação obedece a uma calculada estratégia destinada à restauração do neoliberalismo tardio no Brasil.

 

Não se trata apenas de desconstruir a chamada política externa “ativa e altiva” implantada nos governos do PT, reorientando a inserção internacional do país para os interesses das potências hegemônicas tradicionais.

 

Trata-se, na realidade, de criar as condições para tornar perene e sólida a pretendida restauração do neoliberalismo tardio no Brasil.

 

Como?

 

É simples. Todos sabem que as políticas internas influenciam a condução da política externa.  Mudanças no governo produzem, com frequência, câmbios significativos na inserção internacional do país. Ao contrário do algumas vezes que se diz, a identificação dos “interesses nacionais” que conduzem a política externa se dá, numa democracia, com base em eleições, não em castas burocráticas. Mudando-se as condições internas, a política externa muda também, até mesmo porque, num país e num mundo em transformação, políticas externas imutáveis seriam extremamente ineficientes. Isso é bastante óbvio.

 

O que não é óbvio é o outro lado da moeda: a política externa e a inserção internacional do país também condicionam fortemente a condução das políticas internas. Na realidade, em alguns casos, a política externa pode criar balizamentos estreitos e irreversíveis para a condução das políticas internas. Pode até impedir, ou tornar muito difícil, a implantação de políticas autônomas relativas ao desenvolvimento científico e tecnológico, ao desenvolvimento industrial e ao desenvolvimento econômico como um todo. Pode criar novas formas de dependência relativas ao capital financeiro internacional. Pode até mesmo criar obstáculos intransponíveis à implementação de algumas políticas de cunho social, como as relativas à saúde pública.

 

Em síntese, a política externa e a forma de inserção no cenário mundial podem contribuir fortemente para tornar o Brasil, de novo, um país periférico, deitado eternamente no leito de Procusto das políticas neoliberais amigáveis ao capital mundializado, que geram mecanismos de dependência de difícil reversão, uma vez sedimentados em tratados internacionais.

 

Assim como golpes de Estado substituem a soberania do voto popular pela vontade de maioria parlamentares circunstanciais, uma política externa de país periférico pode substituir a soberania do Estado-Nação pelos interesses de nações hegemônicas e pelos ditames do capital internacional.

 

O grande golpe contra a democracia pode ser construído no cenário externo, pelos mecanismos aparentemente neutros e “técnicos” dos compromissos internacionais.

 

Em caso extremo, não haveria mais espaços para decisões políticas internas importantes que se mostrassem contrárias a esses interesses, e os pleitos democráticos seriam, na prática, mero exercício fútil de cumprimento de formalidades.

 

Na Europa, a crise atual de muitas democracias representativas está diretamente relacionada ao fato de que os sistemas políticos são incapazes de oferecer alternativas soberanas às imposições da Troika. Na Grécia, por exemplo, o voto no Syriza foi mero voto de protesto.

 

Nesse sentido amplo, José Serra, por suas posições conhecidas em temas de política externa, é o “homem certo no lugar certo” para criar as condições que tornem o neoliberalismo tardio não uma opção a ser escolhida em eleições livres e diretas, mas em imposição a ser cristalizada em acordos internacionais e numa inserção subalterna do Brasil nas “cadeias internacionais de valor”.

 

Dessa forma, o golpe menor, o golpe parlamentar, poderia agora ser complementado pelo golpe maior, o golpe da inserção periférica no cenário mundial, que tenderia a eternizar o neoliberalismo tardio no Brasil.

 

Além por fim à União Aduaneira do Mercosul, reduzir a relevância da integração regional e da cooperação Sul-Sul, bem como diminuir politicamente a participação do Brasil no BRICS, a estratégia de Serra e demais conservadores para reconduzir a política externa brasileira ao seu suposto “leito natural”, isto é, à órbita estratégica das potências tradicionais é simples: aderir, o mais rapidamente possível, a acordos de livre comércio multilaterais ou bilaterais com esses países, em especial com os EUA.

 

Com a escusa de fazer o Brasil participar das “cadeias globais de valor” e romper com o “isolamento imposto pelo Mercosul”, a ideia é firmar acordos comerciais de “nova geração”, como a TPP (Parceria Transpacífica) e a TTIP (Parceria Transatlântica para Comércio e Investimentos).

 

Tanto a TPP quanto a TTIP são propugnados essencialmente por iniciativa dos EUA, com idênticos objetivos. São dois mega-acordos que colocam os EUA no centro das iniciativas econômicas e comerciais, objetivando maior projeção de seus interesses no mundo. Ambos conformariam uma espécie de Super-NAFTA global, ou semiglobal, pois englobariam cerca de metade do comércio e mais da metade do PIB mundial, com cláusulas muito semelhantes às que já vigoram naquele acordo da América do Norte, além de instituírem outros dispositivos mais “avançados”.

 

No que tange aos objetivos geoestratégicos, a ideia é reconstituir e aprofundar a hegemonia da antiga Tríade (EUA, União Europeia e Japão), ameaçada pela emergência da China e outros países em desenvolvimento e, particularmente, pela articulação dos interesses desses países emergentes nos BRICS.

 

Não é coincidência o fato de que a China, grande polo dinâmico da região do Pacífico, e mesmo mundial, tenha ficado excluída do TPP. Também não é coincidência o fato de nenhum membro do BRICS tenha sido convidado a participar tanto do TPP quanto do TTIP. Os membros do BRICS, aliás, também não foram convidados a participar do TiSA (Trade in Services Agreement-Acordo sobre Comércio de Serviços), acordo que pretende abrir esse setor estratégico da economia mundial.

 

No que se relaciona aos objetivos econômicos e comerciais, ou geoeconômicos, o objetivo maior é submeter boa parte da economia internacional a regras mais condizentes com os interesses atuais das grandes companhias transnacionais norte-americanas, e também europeias e japonesas. Busca-se, sobretudo, harmonizar as legislações internas dos Estados nacionais, conforme os interesses dos grandes investidores e as necessidades dos capitais, inclusive dos capitais voláteis, em um ambiente de grandes incertezas ocasionado pela crise mundial.

 

Nesse ambiente de incertezas, baixo crescimento, aumento das desigualdades em países desenvolvidos, contração ou estagnação de mercados internos, profundas mudanças e disputas geoestratégicas e geoeconômicas, torna-se imperativo criar, em âmbito externo, espaços políticos e econômicos mais amigáveis à afirmação dos interesses das firmas internacionais, ameaçados pela crise, e da única superpotência planetária, cuja hegemonia se vê, até certo ponto, contestada pela emergência de novos atores globais.

 

Assim, as novas regras que o TPP e o TTIP, assim como o TiSA, pretendem instituir têm por finalidade facilitar uma nova expansão capitalista, associada aos interesses geoestratégicos dos EUA e aliados.

 

O problema, além da assimetria óbvia entre as partes em negociação, está no fato de que esses acordos não são simplesmente acordos de livre comércio. Eles contêm cláusulas que vão muito além dessa dimensão.

 

No caso do TPP, dos 29 capítulos, apenas 5 dizem respeito a comércio de mercadorias.

 

A bem da verdade, tais acordos não pretendem incidir significativamente sobre tarifas comerciais de bens. Isso porque os países desenvolvidos envolvidos nessas negociações, bem como seus parceiros menos desenvolvidos, praticam, há bastante tempo, tarifas comerciais de importação muito reduzidas. Com efeito, a média das tarifas sobre bens na grande maioria desses países já é extremamente baixa, oscilando, em muitos casos, entre 3% e 4%. Portanto, a simples eliminação de tarifas de importação tão baixas teria efeito desprezível sobre o comércio e a economia mundiais.

 

Na realidade, as novas regras inseridas nesses acordos já negociados ou em negociação visam promover os seguintes grandes objetivos.

 

O primeiro é abrir o comércio internacional de serviços, o setor econômico mais importante no mundo de hoje.

 

No âmbito da OMC, o GATS (General Agreement on Trade in Services) não produziu abertura significativa do comércio de serviços, contrariando, dessa forma, os interesses de grandes companhias que fornecem esses bens imateriais, como os bancos que atuam internacionalmente, por exemplo.

 

Observe-se que, em países desenvolvidos, os serviços respondem por um montante que oscila entre 70% e de 80% do PIB, e as firmas desse setor que lá existem são bastante competitivas. No entanto, em muitos países emergentes e mesmo em alguns países desenvolvidos, tal setor é ainda bastante protegido, pois lida com atividades estratégicas e muitas vezes públicas.

 

A ideia presente no TPP, no TIPP e, obviamente, também no TiSA, é reduzir tal proteção e abrir esse setor à concorrência internacional.

 

Assim, serviços relativos à saúde, à educação, à cultura, ao meio ambiente, à construção civil, ao provimento de energia, a consultorias diversas, as comunicações e, sobretudo, a bancos e finanças, bem como a vários outros, poderiam ficar expostos à concorrência de grandes supridores internacionais de serviços.

 

No caso específico do TiSA, análise do draft vazado permite inferir que as instituições financeiras internacionais seriam as grandes beneficiárias do acordo.

 

Pelas cláusulas reveladas, os Estados nacionais poderiam ficar impedidos de impor restrições ou condicionantes a bancos e outras instituições financeiras que queiram instalar-se em seus territórios. Também ficariam impedidos de controlar o livre fluxo de capitais, de acordo com suas necessidades. Isso poderia impedir, por exemplo, que países que estivessem submetidos a ataques especulativos contra suas moedas pudessem impor controle efetivo contra a fuga de capitais.

 

Obviamente, esse cerceamento imposto aos Estados nacionais não se coaduna com a necessidade, detectada após a grande crise de 2008, de se controlar, com rigor, o sistema financeiro internacional e impor medidas prudenciais que evitem novas bolhas especulativas.

 

O segundo grande objetivo impor normas mais rigorosas de proteção à propriedade intelectual.

 

A ideia aqui é impor aos Estados nacionais cláusulas TRIPS+, de modo a proteger de forma mais rigorosa, e por mais tempo, os chamados direitos de propriedade intelectual.

 

O TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, da OMC) procurou estabelecer um equilíbrio entre os direitos dos detentores de propriedade intelectual e os direitos dos Países-Membros, especialmente no que tange à capacidade de promoverem políticas públicas em prol de suas sociedades. Assim, o artigo 8(1) reza que os Países-Membros podem adotar, entre outras, medidas necessárias para proteger a saúde e a alimentação públicas, desde que tais medidas sejam compatíveis com as normas gerais e obrigatórias do Acordo.

 

Ademais, o artigo 31, que dispõe sobre Outro Uso Sem Autorização do Titular (ou seja, licenciamento compulsório), estipula que tal uso não autorizado pode ser efetuado por Membro (País), em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência, ou ainda em casos de uso público não comercial.

 

É essa flexibilidade do TRIPS que permite que o Brasil, entre outros países, possa desenvolver uma política de medicamentos genéricos, inclusive com quebra de patentes, para sustentar importantes vertentes da saúde pública, como o programa de combate a AIDS, por exemplo.

 

Ora, pelas informações disponíveis, tanto o TPP quanto o TTIP pretendem acabar com essa flexibilidade, impondo normas mais rigorosas que, se implantadas, poderiam limitar ou mesmo impedir tais políticas de saúde pública.

 

Pretende-se aumentar a proteção de patentes de medicamentos de 20 anos para 80 anos, ou mesmo para 120 anos. Pretende-se também limitar os casos previstos para licenciamento compulsório. Ademais, há o intuito de se ampliar a matéria patenteável, nela incluindo coisas que hoje, pelas regras do TRIPS, não podem ser objeto de patente e monopólio, como plantas e outros seres vivos, métodos de diagnóstico e de tratamento, técnicas cirúrgicas, recursos genéticos etc.

 

Outra vertente de política pública que poderia ser comprometida por essas normas bem mais rígidas seria à afeta à ciência, tecnologia e inovação. Paradoxalmente, o excesso de rigor na proteção à propriedade intelectual desestimula a inovação, especialmente em médias e pequenas empresas, pois incide negativamente sobre o acesso materiais de pesquisa, muitos dos quais são objeto de patente e, portanto, objeto de monopólio.

 

Assim, a possibilidade do Brasil desenvolver uma indústria competitiva se tornaria, no caso de adesão a acordos desse tipo, bastante remota. Teríamos maquiladoras, não indústrias. Saliente-se que nossa Lei de Propriedade Intelectual, feita por imposição da nossa adesão ao TRIPS da OMC, não deu nenhuma contribuição ao desenvolvimento de tecnologia e inovação no país.

 

O ministério da ciência, tecnologia e inovação já foi extinto. Só falta extinguir o pouco da nossa ciência e tecnologia.

 

No campo do copyright, o intuito é obrigar os Estados signatários a implantar legislações mais duras contra a chamada “pirataria” e penas mais severas contra indivíduos que compartilhem, principalmente pela internet, filmes, música, softwares, livros etc.

 

Em suma, a finalidade aqui, prevista explicitamente na Trade Promotion Authority (TPA) norte-americana, é a de tornar as legislações internas dos outros países sobre o tema, notadamente as menos rigorosas, o mais próximas possível da lei de patentes dos EUA, a qual é bastante abrangente e rígida, refletindo os interesses de grandes multinacionais do setor.

 

O terceiro objetivo é abrir o setor de compras governamentais.

 

No que se refere às compras governamentais, o objetivo último e fundamental é o de abrir esse importante setor econômico à concorrência internacional.

 

Desse modo, grandes empresas, em especial norte-americanas, europeias e japonesas, poderiam participar de concorrências promovidas pelo setor público em seus diversos níveis (nacional, estadual e local) para fornecer bens e serviços.

 

Governos de países menos competitivos, com toda razão, resistem a este objetivo, pois sabem que as compras governamentais são de grande importância para aumentar a demanda interna e estimular empresas locais e nacionais.

 

Além disso, a suposta reciprocidade nesta área, assim como em todas as outras, não se concretizaria, uma vez que empresas desses países não teriam condições de concorrer com firmas norte-americanas, europeias e japonesas para fornecer bens e serviços na área militar e espacial, a qual representa o grosso das compras governamentais nos EUA, Europa, em parte, Japão.

 

No caso do Brasil, a abertura desse setor poderia inviabilizar a atual política de conteúdo nacional praticada pela Petrobras, que sustenta a recuperação da nossa indústria naval, entre outros setores relevantes.

 

O quarto e principal objetivo visa instituir um direito dos investidores, em detrimento das prerrogativas dos Estados Nacionais de controlarem os fluxos de capitais.

 

Com efeito, o tema investimentos representa o “coração” de um futuro Super-NAFTA, assim como já o é no caso do NAFTA e como teria sido na caso da ALCA.

 

Trata-se de construir, em âmbito praticamente mundial, um MAI (o famigerado e malogrado Acordo Multilateral de Investimentos), o qual foi negociado, em vão, no âmbito da OCDE, na segunda metade da década de 1990.

 

Um acordo desse tipo daria aos investidores estrangeiros vários privilégios, como o de exigir do Estado nacional reparações financeiras, caso as suas expectativas de lucro sejam diminuídas ou frustradas por ações governamentais, e o de poder acionar unilateralmente o Estado receptor dos investimentos em tribunais internacionais, passando ao largo dos tribunais locais, na eventualidade de surgirem quaisquer conflitos relativos aos seus investimentos.

 

Muitos governos, de maneira correta, resistem a tais objetivos, pois querem preservar a sua prerrogativa de definir políticas de investimentos, de gestão de recursos naturais, de meio ambiente, de defesa comercial e de outras que condicionam o desenvolvimento econômico e social.

 

No caso do Brasil, deve-se mencionar que, ao longo dos governos do PSDB, na década de 1990, foram firmados 16 Acordos Bilaterais de Promoção e Proteção Recíproca de Investimentos (APPIs), com países como Alemanha, França, Itália, Suíça, Reino Unido, Finlândia, Países Baixos, Portugal, Chile, etc.

 

Pois bem, tais acordos bilaterais continham cláusulas muito semelhantes às do finado MAI e às do capítulo 11 do NAFTA, que trata da proteção aos investimentos estrangeiros.

 

Todos esses acordos continham, entre outras, cláusulas danosas, como a da definição demasiadamente abrangente de investimentos, que não permite distinguir capitais especulativos de investimentos diretos; a da livre transferência dos resultados dos investimentos, a qual impede os Estados nacionais de imporem controle sobre a saída de capitais, mesmo no caso de crise extrema; a referente à imposição de arbitragens internacionais, sempre que solicitadas unilateralmente pelo investidor estrangeiro, que retira dos judiciários nacionais o controle jurídico dos investimentos externos.

 

Felizmente, o Congresso Nacional brasileiro, liderado por iniciativas do PT, rejeitou esses acordos, tal como foram formulados originalmente.

 

Outros países tiveram menos sorte. A Argentina, na época de Menem, ratificou dezenas de acordos desse tipo. Como resultado, após a crise do início dos anos 2000, quando aquele nosso vizinho foi forçado a impor controle de saída de capitais, à margem das cláusulas de livre transferência contidas nos seus APPIs, a Argentina tornou-se ré, em tribunais arbitrais instaurados por iniciativa unilateral de empresas/indivíduos estrangeiros que lá investiram, com processos que somavam mais de 50 juízos, a custos estimados de cerca de 15% do PIB argentino. É o que dá renunciar à soberania jurídica sobre investimentos estrangeiros. Até hoje a Argentina paga caro por isso.

 

Canadá, México e Austrália, entre outros, também já tiveram problemas com esse privilégio jurídico conferido a investidores estrangeiros. No caso da Austrália, a Phillip Morris, grande empresa de tabaco, contestou na justiça decisão do governo australiano de incluir, nos maços de cigarros, advertências contra os malefícios do fumo. Perdeu na justiça australiana, mas, com base numa cláusula de proteção aos investimentos inscrita num acordo bilateral com Hong Kong, forçou a realização de uma arbitragem internacional.

 

No Canadá, a Lone Pipe, uma empresa norte-americana de extração de petróleo por fracking, abriu processo, em 2013, contra a província canadense do Quebec. Exige indenização de 250 milhões de dólares porque o governo do Quebec decidiu suspender a exploração petrolífera no subsolo do Rio São Lourenço, considerando-a nociva ao meio-ambiente, às fontes de água e à própria saúde da população. A ação da Lone Pipe só é possível porque o NAFTA inclui, em seu Capítulo 11, dispositivo que permite aos investidores acionarem os Estados em tribunais internacionais, sempre que se julgarem prejudicados.

 

Observe-se, finalmente, que acordos de promoção e proteção recíproca de investimentos, assim como acordos regionais do mesmo tipo, não são importantes para atrair investimentos. Na realidade, o que atrai investimentos externos são fatores como economia em crescimento, mercado interno atraente, mão de obra disponível e qualificada, infraestrutura adequada, inexistência de conflitos etc.

 

Portanto, esses acordos, bilaterais ou regionais (NAFTA, TPP, TTIP, APPIs etc.), apenas conferem privilégios abusivos a investidores estrangeiros, em detrimento da capacidade de Estados nacionais de promoverem políticas de desenvolvimento, de industrialização, de inovação, etc. Por isso mesmo, a Índia, que ratificou mais de 40 acordos desse tipo, reclamava, há cerca de 10 anos, que não conseguia atrair novos investimentos e que tinha dificuldades para implantar a política industrial que desejava.

 

Ademais desses grandes objetivos, o TPP e o TTIP também procuram reduzir um série de barreiras não tarifárias ao comércio, que afetam, em especial, a agricultura. Na realidade, são essas barreiras não tarifarias, como as barreiras sanitárias e fitossanitárias, os volumosos subsídios à agricultura, as barreiras referentes à normatização técnica, a imposição de cotas, etc., que representam, hoje em dia, os principais entraves a um fluxo comercial mais fluido, notadamente entre países mais desenvolvidos. Duvidamos, no entanto, que, dado o caráter politicamente sensível da questão agrícola em países como Japão, França e mesmo nos EUA, haja concessões substantivas nessa área, nos dois grandes acordos propostos.

 

O TPP e o TTIP estão preocupados, da mesma forma, em normatizar novos temas que ainda não foram “convenientemente enfrentados”, como comércio eletrônico, serviços ambientais, mudanças climáticas, cláusulas relativas à competição, normas trabalhistas etc.

 

Em suma, esses dois mega-acordos tendem a instituir as mesmas cláusulas já vigentes no NAFTA, e que estavam também presentes na finada ALCA, e a implantar outras novas que não estavam presentes na época da negociação daquele acordo. Se ratificado e se contar com um bom número de adesões extras, esse Super-NAFTA global praticamente definirá a falência definitiva da OMC como espaço de negociações multilaterais de comércio, com grande prejuízo para países emergentes como o Brasil, que lá negociam em condições mais simétricas e com correlação de forças mais igualitárias.

 

Ademais, eles poderão ajudar a redefinir ou mesmo reverter tendências geoestratégicas e geoeconômicas que beneficiavam a ascensão de países emergentes no cenário mundial, configurando um novo padrão de dependência e de acumulação do capital em nível global.

 

E o Brasil, como ficaria num cenário como esse?

 

A adesão acrítica a esses acordos ou mesmo a acordos bilaterais de livre comércio com os EUA, que têm cláusulas muito semelhantes, implodiria o Mercosul e a integração regional, tornaria inútil a nossa participação no BRICS e inviabilizaria a vertente Sul-Sul da nossa política externa. Voltaríamos a ter uma política externa dependente, periférica, que orbitaria em torno dos interesses da única superpotência do planeta e de seus aliados tradicionais.

 

No plano geopolítico, perderíamos protagonismo regional e, principalmente, mundial, revertendo o ganho diplomático evidente que obtivemos, nos últimos 13 anos.

 

No plano econômico e comercial, após uma provável euforia inicial causada pela abertura irrestrita da economia, teríamos o esfacelamento de vastas parcelas de nosso setor produtivo, principalmente em nossa indústria e nosso setor de serviços, déficits comerciais crescentes e, sobretudo, incapacidade do Estado em implantar políticas relativamente autônomas de desenvolvimento, de industrialização e de ciência e inovação, entre outras.

 

O dano maior, contudo, seria à democracia, pois, uma vez que a opção pelo neoliberalismo tardio ficar cristalizada em acordos internacionais, será difícil revertê-la por iniciativas internas emanadas do nosso sistema político. Ficaríamos dependentes dos “direitos” e interesses dos investidores internacionais.

 

Ficaríamos numa posição parecida à do México, que aderiu a todos os acordos de livre comércio existentes.

 

Nos últimos 20 anos, o México apresentou superávit anual em sua balança comercial em apenas três. O déficit acumulado do período 1994-2013 ascende a US$ 109 bilhões. Ademais, os inevitáveis efeitos negativos da integração tão assimétrica com a maior economia mundial e com outras economias de ponta se tornaram cada vez mais evidentes.

 

Houve substancial esfacelamento da estrutura produtiva nacional. Muitas empresas mexicanas não conseguiram sobreviver à concorrência da produção industrial dos EUA, muito mais moderna e eficiente. Outras tantas foram compradas a baixos preços por grupos econômicos norte-americanos. Na área agrícola, o NAFTA gerou insegurança alimentar. O México, que era exportador de grãos, no período pré-NAFTA, passou a importá-los dos EUA em sua quase de totalidade. Tal processo de destruição das culturas agrícolas familiares se deu inclusive no que tange ao milho, base da alimentação e culinária mexicanas. Hoje em dia, o milho utilizado no México é quase todo colhido nos EUA, que subsidia fortemente a sua produção.

 

A renda per capita mexicana cresceu a uma taxa de apenas 1,2% ao ano, um número muito inferior ao de outros países da América Latina, como o Brasil, Colômbia, Peru e Uruguai. Nos primeiros 10 anos deste século, o PIB per capita (PPP) do México cresceu somente 12%, bem abaixo do que cresceu o do Brasil (28%). A produtividade da economia mexicana permaneceu praticamente estacionária, tendo oscilado levemente em torno de 1,7%, ao longo desses últimos 20 anos. As famosas “maquiladoras” criaram somente 700 mil empregos em duas décadas anos, ou cerca de 35 mil ao ano, um número ridículo, quando se leva em consideração que, nesse período, ao redor de 1 milhão de mexicanos entraram todos os anos no mercado de trabalho. O resultado é que os salários dos mexicanos não aumentaram.

 

Cerca de 75% das exportações mexicanas são compostas por insumos importados. Dos US$ 400 bilhões que o México exporta anualmente, cerca de US$ 300 bilhões são meras exportações de importados, o que explica a falta de geração de empregos no setor manufatureiro e o desestímulo a novos investimentos. Ou seja, trata-se de exportações que não têm um impacto significativo na cadeia produtiva nacional. É uma espécie de enclave econômico, que gera pouco valor, poucos empregos, e nenhuma tecnologia.

 

Para completar 51% da população mexicana vive hoje abaixo da linha da pobreza, segundo algumas estimativas.

 

O México subiu no trem da História.  Só que no vagão da segunda classe. O México também se inseriu nas cadeias produtivas globais, mas somente como maquilador e montador.

 

O golpe parlamentar nos transformou numa grande Honduras ou num grande Paraguai. O golpe contra a democracia que poderia ser promovido pela política externa de país periférico nos transformaria num grande México.

 

Razão tinha De Gaulle, nacionalista convicto, defensor da grandeza da França, que afirmou que a “política mais ruinosa é a de ser pequeno”.

 

Quem pratica política de país pequeno acaba ficando pequeno. E quem pratica golpe é golpista.

 

O Brasil está seriamente ameaçado de ser um país golpista e pequeno.

 

- Marcelo Zero é sociólogo, especialista em Relações Internacionais e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

 

Crédito da foto: O Sul

 

18/05/2016

http://brasildebate.com.br/o-papel-da-politica-externa-na-restauracao-do-neoliberalismo-tardio/#sthash.7tz5ywfZ.dpuf

 

https://www.alainet.org/en/node/177539
Subscribe to America Latina en Movimiento - RSS