Notas sobre a velhice

07/07/2017
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Então, de repente, a velhice mostra sua cara. E não é aquela dos folhetos da previdência privada, nem da Unimed. É velhice real, que chega e toma conta daqueles que amamos, com doenças e esquecimentos. Pode ser o pai, ou a mãe, ou um avô. E, no contrapé, pega de surpresa, afinal, as pessoas até percebem o velho, mas não notam que ele está perdendo a autonomia. Assim, sem manual e sem qualquer experiência anterior, por vezes é preciso enfrentar uma situação nova, cheia de desafios e surpreendentes ensinamentos.

 

Foi assim com Nelson. Sempre ativo e tomando conta de tudo, um belo dia foi surpreendido pela filha rasgando documentos importantes. Ela perguntou o motivo daquilo. E ele negou veementemente que o havia feito. Não se lembrava. Acendeu a luz vermelha e lá se foi a família buscar um médico. Um dos melhores de Porto Alegre. Ele fez uma consulta padrão e em poucos minutos já dava o diagnóstico: Alzheimer. Essa doença tão temida, que provoca o esquecimento. A filha fica meio sem chão, mas, seguindo as receitas médicas começa a medicar o pai.  

 

O remédio logo mostra a que veio. Nelson estava como um bobo. Já não conseguia articular as palavras, não controlava as necessidades físicas, a boca entortava, não queria comer. Foi um baque, porque ele sempre fora o arrimo da casa. Vivendo no meio do mato, sem muitos recursos, a filha, atarantada com a mudança drástica de comportamento, decidiu suspender a medicação. Talvez tenha sido o que o salvou. A bobeira passou e ele começou de novo a atinar as ideias. A outra filha decidiu buscar outro médico. Trouxe para Florianópolis. Nova consulta, um médico capaz de olhar a pessoa e não a doença. Ele chegou à conclusão de que o que Nelson precisava era de uma boa nutrição, cuidado e atenção. O demais, como a perda de memória, ficaria monitorando. Poderia ser o esquecimento normal da velhice. Aos 85 anos isso não era algo tão fora da realidade.  

 

E assim foi feito. Alimentação saudável, música, cuidado e paciência. Muita paciência. Mas, essa não é uma jornada fácil. Os velhos precisam de atenção durante 24 horas. Porque eles podem esquecer um fogão ligado, um cigarro aceso, meter a mão onde não devem. Aí vem o drama: como cuidar 24 horas, se é preciso sair para trabalhar? A vida vira de pernas para o ar. E quando o velho precisa ser trocado, usar fraldas e tudo mais, torna o cuidado ainda mais difícil. Afinal, é preciso força para erguer, virar, movimentar. Ter uma pessoa idosa em casa, exigindo atenção permanente, é uma virada radical. Poucas famílias conseguem segurar essa barra.

 

Na verdade, ninguém está preparado para essa tarefa. Não há conhecimento sobre como proceder, o que fazer. A pessoa velha, doente e fora de sua casa, fica irritadiça, nervosa, rebelde. Não se sabe o que fazer. E a única saída é ir tateando no escuro. Ler sobre o tema, buscar relatos de outras pessoas que enfrentam o mesmo drama, buscar amparo. Algumas famílias são maiores, podem dividir as tarefas, construir tabelas de horários para um e para outro, constituindo turnos, rotinas, afinal, o cuidado é permanente. Ainda assim, é difícil conciliar estudo e trabalho. Agora, e quem não tem família, faz o quê?

  

Quem pode cuidar um velho?

 

Cuidar de uma pessoa velha e doente é difícil demais. Não existe nenhum lugar onde se possa buscar ajuda. Cada família que se vire. Existem os cuidadores particulares, mas o preço a pagar é muito alto. Para uma família de trabalhadores fica inviável. Possivelmente é por isso que uma das opções mais buscada é colocar os velhos num asilo. Não é por descaso ou desamor. É justamente o contrário. Sem condições de cuidar e tendo de prover a família, a pessoa fica sem saída.

 

Em Florianópolis já existe uma casa, no bairro Santa Mônica, um bairro nobre, que funciona como creche. A família leva o velho e ele fica lá enquanto o povo trabalha. No fim do dia vão buscar e ele vive em família, sem ser privado da companhia dos parentes. Mas, igualmente, é uma opção privada e caríssima.

 

Há algumas pessoas que já discutem em grupos na internet a possibilidade de criar um movimento pró-creches públicas para velhos. Mas, lendo mais sobre o assunto, surgem muitas dúvidas sobre se esse é um caminho saudável. No geral os velhos não gostam de sair de seus lugares habituais, mesmo os que estão sem memória. Eles têm suas próprias rotinas e andar com eles pra lá e prá cá, todos os dias, pode ser motivo de estresse. E teriam de sair da cama muito cedo para acompanhar quem vai ao trabalho. Um sacrifício total.

 

E, depois, o velho não pode ser tratado como se fosse uma criança. Esse é um dos erros mais comuns que se comete. Eles já passaram por essa fase, e ainda que não tenham lembrança de várias coisas, de alguma maneira sabem que não são bebês. Então nada de guti, guti, nem de tutelagem. É fundamental que o velho tenha alguma autonomia. Que possa decidir sobre o que comer, o que fazer, como passar o dia. A família que cuida precisa ficar de longe, a cuidar e, vez em quando, propor um passeio, uma distração. Mas, isso, como já vimos, não é uma opção para muita gente.

 

Fui buscar na internet sobre a experiência de cuidar velhos em Cuba, que é um país com uma proposta socialista, e percebi que lá eles têm discutido bastante essa questão. Porque também estão vendo sua população viver bem mais. Esse é um assunto novo, afinal, a longevidade não era coisa que fazia parte da nossa vida. No Brasil, entre 2005 e 2015, a proporção de idosos de 60 anos ou mais, passou de 9,8% para 14,3%. E há estimativas de que em 2050 esse número triplicará. Esses são números do Brasil, mas o envelhecimento da população é uma tendência mundial. Não é sem razão que o sistema capitalista aponta para reformas de Previdência em todos os países. Querem os velhos trabalhando até a última gota de energia.  

 

Mas, voltando a Cuba. Lá, a população já tem uma experiência de 60 anos de socialismo, a ideia de solidariedade é uma coisa que vive no cotidiano das gentes e assim como com as crianças, é comum numa rua ou numa comunidade específica, todos cuidarem de todos, prestando atenção em quem saiu, quem está doente. Ainda assim, podem-se ler muitos artigos sobre a necessidade de um cuidado mais específico para com os velhos. Também há debates sobre a criação de creches públicas para esses casos. É um tema em discussão. Enquanto isso, o estado orienta as comunidades a se ajudarem uns aos outros no cuidado com os velhos, principalmente com os doentes.

 

No mundo capitalista já não temos essa sorte. Nem da solidariedade, nem da preocupação. No geral, quem tem um velho que se vire com ele. É comum as pessoas ficarem sozinhas na estrada, inclusive com o sumiço dos amigos. Na vizinhança também pouco se consegue de solidariedade. As pessoas se preocupam, perguntam, mas não estão dispostas a uma ajuda concreta. O máximo que se tem é mirada do pessoal da padaria ou do mercadinho, que é avisado sobre a doença do esquecimento, porque as famílias colocam ali um telefone para o caso de a pessoa aparecer sozinha ou se perder.

 

A logística do cuidado, dentro de casa, tampouco é coisa fácil. A vida de todos fica afetada. Uns mais, outros menos. Há muito estresse, pois é preciso respeitar religiosamente os horários de cuidado, para que ninguém fique prejudicado. Alguém tem uma aula fora do horário, uma reunião, uma festa, e toda a família precisa se reacomodar. E, em Florianópolis, onde o transporte é um drama à parte, garantir isso é dureza. Uma pessoa que mora no sul da ilha, como eu por exemplo, leva mais de duas horas para fazer o percurso entre a casa e o trabalho, e qualquer atraso numa parte do caminho pode significar que alguém ficou na mão. Haja maracujina.

 

Mas, ainda há outros tropeços, como enfrentar a tristeza de ver alguém perdendo a memória ou a rotina incessante das repetições. Há momentos em que os velhos ficam irascíveis e até violentos. Porque não conseguem verbalizar uma palavra, ou porque não se lembram de algo, ou porque não querem tomar banho. É doloroso. A velhice pode ser um momento bonito se o velho tiver saúde e pessoas que o amam a sua volta. Mas, isso não é válido para todos. Até porque, hoje, as famílias são pequenas e muitas não conseguem estabelecer uma rotina de cuidados. Outras há que não encontram outra forma senão asilar. E sofrem com isso também.

 

Assim que a propaganda da previdência privada sobre a melhor idade é uma enganação. Somos uma geração que precisa aprender como fazer para cuidar dos nossos pais, ou tios, ou avós, porque eles estarão aí. E nós, os trabalhadores, não temos muitas escolhas. Por isso não é bom tatear às cegas, abrindo a mata à facão. Dá muito trabalho e cometem-se muitos erros.

 

Então, esse é um tema sobre o qual precisamos falar mais, aprender juntos, como sociedade. Termos mais solidariedade real. Afinal, já existem estudos que mostram que no caso dos que optam por cuidar dos velhos em casa, boa parte acaba morrendo primeiro que eles, por conta do tremendo estresse a que ficam submetidos, seja pela logística, seja pela tristeza de ver os pais ou avós definharem.

 

Hoje, eu estou nessa missão de cuidar do meu pai - conto com meu companheiro e dois sobrinhos - o que ajuda bastante. E quando caminho na minha rua meus olhos procuram os velhos. Não os vejo. Mas se os vir, vou fazer como os cubanos: oferecer o conhecimento que estou construindo, oferecer ajuda no cuidado. Creio que esse pode ser um caminho. Se cuido do meu pai, posso cuidar do pai ou da mãe de alguém no mesmo período. Quem sabe a gente não começa, por aí, a constituir uma solidariedade por rua. Enfim, são coisas que me acometem, pensamentos, ideias, utopias.

 

E por aí vamos... 


 

https://www.alainet.org/en/node/186663
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