A tragédia da comunicação

19/07/2017
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Sou jornalista. Eu confesso. Então, por essa deformação profissional, sou obrigada a ficar sempre ligada naquilo que os grandes meios produzem. Afinal, são eles os que ainda conformam o consenso na sociedade brasileira. Assim, assisto o Jornal Nacional, o da Band, o da Record e o do SBT. Neles, mudam os apresentadores, mas o modelo é o mesmo. A velha fórmula funcionalista do jornalismo estadunidense. E, no campo ideológico, todos eles produzem propaganda do sistema. Falam mal dos inimigos do capital. Falam bem dos amigos. Afirmam haver um ditador na Venezuela, mas não dizem o mesmo do Brasil ou dos Estados Unidos. A diferença é que na Venezuela o presidente foi eleito por milhões, enquanto no Brasil ocupa a cadeira por um golpe e nos EUA, por eleição indireta. Mas ditador mesmo é o Maduro.

 

Isso é só um exemplo, das tantas barbaridades que se dizem pelas noites e dias a fio, nos horários nobres da TV. A usina de produção ideológica é pródiga. A política brasileira, com políticos corruptos, deputados comprados, votações manipuladas, distribuição de dinheiro público para compra de votos, tudo é mostrado como se fosse um céu azul. Nada de errado passa. A não ser se o acusado for do PT. Aí é um deus nos acuda de opiniões e especialistas. Um desavisado, que ligasse a TV inadvertidamente pensaria que apenas o PT congrega tudo o que há de ruim na política. Os demais são santos. Ah, e a corrupção começou ontem. Uma coisa extraordinária.

 

Mas os noticiários não são os únicos a moldar a consciência nacional. A programação da TV é inteirinha uma fábrica de mentiras, capaz de tornar belo o que há de mais terrível e transformar em demônio o que há de mais belo. Isso também vai se configurando através dos chamados programas de entretenimento, que igualmente se repetem em todas as emissoras, no mesmo modelito. Esmolas e humilhações para o povo pobre, doação de casa, arrumação de carros velhos, e a recorrente alienação com as histórias dos famosos, que ora dançam, ora mostram suas mansões, ora contam suas vidas. Pedaços de uma única “colcha” que, ao final, produz um consenso sobre a realidade. A TV ainda é uma janela poderosa. Chega em 97% dos lares nacionais, e 68% das pessoas dizem acreditar no que passa ali, na telinha. Logo, não pode ser subestimada, nem negligenciada.

 

Quando o PT assumiu o governo em 2004 havia uma grande expectativa de que iria mexer nesse vespeiro. Afinal, o espectro da TV é público e o estado teria todo o direito de, junto com a população organizada, rever todo o processo de concessões e criar uma lei de comunicação capaz de permitir a ascensão das produções comunitárias, das redes públicas, da comunicação popular. Não aconteceu. Desgraçadamente, o presidente recém-eleito - Lula – fez foi dar uma exclusiva para a Rede Globo e, depois, relaxar. Acreditava, talvez, que se não cobrasse as dívidas da emissora, ela usaria seu poder para apoiá-lo. Errou feio. A Globo tem hábitos alimentares difíceis de mudar. A lua de mel não durou muito e quando ela teve de agir para respaldar o golpe, agiu.

 

O governo petista optou por outra estratégia de comunicação, sem mexer na oligarquia midiática. Preferiu atuar pelas beiradas, fortalecendo alguns veículos alternativos, apoiando projetos e figuras carimbadas do eixo Rio/São Paulo/Brasília. E foi só. É certo que conseguiu, de alguma forma, fazer circular outra narrativa sobre os fatos, afinal, no Brasil, o colonialismo mental se espraia em todos os níveis, não apenas na ponte Europa/Brasil, EUA/Brasil, mas também nas pontes internas São Paulo/ Rio Grande, São Paulo/Santa Catarina e assim por diante. Assim, jornalistas do eixo central como Paulo Henrique Amorim e Luís Nassif passaram a ser lidos e ouvidos como se fossem as vozes críticas da mídia. E eram. Mas, não eram, nem são, vozes da esquerda. Apoiavam as iniciativas petistas como bons liberais. Nesse ínterim, com o crescimento da internet, surgiram também alguns coletivos de mídia alternativa, de cunho mais à esquerda, que igualmente prestaram um bom serviço no sentido de trazer as informações sob outro viés, que não o hegemônico, dos grandes meios.

 

Mas, na hora decisiva,  na Conferência Nacional de Comunicação, que, depois de muita batalha, finalmente aconteceu em 2010, portanto seis anos depois de o PT assumir o governo, em vez de se alinhar com as entidades mais progressistas ou à esquerda, o governo preferiu compor com os grandes meios. Colocou os empresários na parada e as demandas geradas em centenas de reuniões preparatórias pelo Brasil afora foram para o saco. De maneira clara, o PT assumia a sua política de negociação, tentando equilibrar-se entre os amigos do passado – a esquerda – e os amigos do presente, a direita e o capital. A lógica do paz e amor também triunfou no campo da comunicação. Não veio a lei para regular as concessões, não veio lei de comunicação, não veio nada.

 

Quando em 2013 começou a reação da direita contra a política do PT, que se para a esquerda era pífia, para a elite local já assumia o pódio de “a mais perigosa”, a sociedade brasileira estava ainda refém dos grandes meios. E quando começou a campanha de ódio ao PT, aos trabalhadores e a tudo que aparecesse como esquerda, os exércitos midiáticos do lado dos trabalhadores seguiam mirradinhos. É certo que coletivos do eixo central como Mídia Ninja, Jornalistas Livres e as figuras então emblemáticas como  Amorim e Nassif cumpriram uma importante missão de levar a outra informação, de noticiar corretamente sobre os fatos. E, a partir da força coletiva gerada pelas redes sociais conseguiram mobilizar milhões seja no combate das ruas em 2013, seja na luta contra o golpe. Mas, ainda assim foi insuficiente.

 

Além disso, a única rede pública que o PT conseguiu criar, que era a TV Brasil, se comportou de maneira muito tímida durante o processo. Sem contar que nunca foi uma rede aberta, capaz de ser vista em qualquer casa, como a rede Globo, por exemplo, que entra em 97% dos lares. A Rede Brasil só chegava por satélite ou por cabo. Um erro abissal. A TV pública brasileira já tinha de ter nascido com sinal aberto e sendo o melhor sinal do país.  

 

Assim, perdemos a guerra midiática na saída. O leque de opções que o governo petista conseguiu criar nos 13 anos de governo não teve forças para enfrentar a avalanche ideológica dos grandes meios. Eles venceram em 2013 e venceram na narrativa do golpe. O espectro alternativo, comunitário e popular foi valente, resistiu bonito, mas não conseguiu chegar aos corações e mentes da maioria da nação.

 

Durante o processo do golpe, em maio de 2016, assisti a uma fala da presidenta Dilma, durante o Encontro Nacional de Blogueiros, na qual afirmava que o governo havia errado na condução de sua política de comunicação. E, assim como a presidenta, mais dois dirigentes partidários fizeram a mesma crítica. E prometiam que se vencessem a tentativa de impedimento, as coisas iriam mudar. Pois não foi possível. O golpe aconteceu e o PT saiu do governo.  A dominação midiática segue avassaladora.

 

Exerço essa crítica ao PT não porque acreditasse que, com Lula e Dilma, pudesse haver grandes mudanças estruturais, capazes de abalar os pilares da dominação.  Sempre foi claro seu perfil mais social-democrático. Mas, é claro, havia possibilidades de se abrir algumas cunhas nesse granito comunicacional. Afinal, o partido estava no governo e pelos menos nos dois primeiros mandatos de Lula tinha grande apoio popular e apoio parlamentar. Assim, poderia criar redes públicas de canal aberto, criar centros de produção comunitária e popular, fortalecer as rádios comunitárias, garantir canais comunitários, estimular de maneira concreta a produção de conteúdo, defender uma lei de comunicação que atendesse as demandas da sociedade organizada. Não o fez. Sequer abriu o sinal para a Telesur, essa experiência generosa de uma rede latino-americana.

 

O fato é que seguimos dominados pelo lixo, pela máquina de propaganda. E, no campo alternativo, seguimos resistindo, apenas resistindo. Temos bonitas experiências de mídia popular, temos nossas velhas redes comunitárias, temos a mídia sindical. Mas, ainda somos ínfimos diante dos gigantes comerciais, que alcançam a massa em segundos, sistemática e cotidianamente.  As condições materiais que se nos apresentam não nos permitem o ataque, seguimos na defensiva.

 

Mas, ocorre que o ataque é necessário. No mundo moderno, a comunicação é a primeira trincheira. Vencer a batalha do discurso é fundamental. Não foi à toa que Che Guevara ao fincar o pé em Cuba fundou a Rádio Rebelde. Porque era preciso que a voz da revolução chegasse ao povo, massivamente. Não estamos em Sierra Maestra e não há nenhuma revolução, mas é necessário que a gente se debruce sobre o tema da comunicação, que se faça uma profunda autocrítica. Ainda que os tempos sejam obscuros e ainda que não haja qualquer campo para ser plantado, é preciso cuidar da semente. Porque se tivermos outra chance, não poderemos errar.

 

Esse “momentum” no tempo que tivemos com o PT, eu sei, não foi nenhuma revolução. Mas, tampouco foi o terreno unificado da classe dominante. Poderia ter sido diferente. Grupos importantes no campo da comunicação como os sindicatos de jornalistas, a Fenaj, o Intervozes, o Fórum de Democratização, fizeram a luta, mas não esticaram a corda até o máximo. Muitos se acomodaram diante da política governista. Tudo isso deve passar por uma boa análise e dialeticamente precisamos começar de novo, num outro patamar.

 

É hora de grandes debates, de análises, de construção. A terra está sendo arrasada, mas sempre haverá a necessidade de plantar. Temos de estar prontos para essa jornada. É tempo de afiar as espadas e preparar o ataque. 

 

https://www.alainet.org/en/node/186921
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