Para a esquerda, só há solução na democracia

A história recente do Brasil mostra que, por aqui, a arma da direita sempre foi o golpe de Estado.

12/03/2018
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A história recente do Brasil mostra que, por aqui, a arma da direita sempre foi o golpe de Estado.

 

Uma das características mais distintivas da história brasileira é seu caráter recorrente, uma sequência de farsas e tragédias, um perverso processo circular que retarda o desenvolvimento em seus diversos patamares, seja econômico, seja político, seja social.

 

Não foi por acaso, e sem consequências para nosso futuro presente, que tenhamos conquistado a Independência sem a luta pela independência, negociando-a junto aos bancos ingleses e aos embaixadores do império britânico, do qual Portugal era um protetorado pouco levado a sério.

 

Não terá sido por mero acaso – muito menos por capricho dos deuses – que tenhamos sido o único império do continente e a última nação a livrar-se da escravidão. Em seguida, instalou-se a República sem povo, sem voto, valhacouto da preeminência dos militares e da oligarquia rural que, com os olhos voltados para as bolsas de mercadoria de Londres, comandaria o País, emperrando seu desenvolvimento, até a “revolução” de 1930.

 

Coube a este movimento civil-militar fraturar a aliança entre paulistas e mineiros, produtores de café e de gado, defensores da economia agroexportadora, desapartada dos interesses do País e, principalmente, do seu povo. E ainda hoje, o bancário que chefia a Fazenda sonha com o retorno a uma economia fundada na exportação de commodities, in natura.

 

Na raiz dos problemas sociais e estruturais que acompanham a história do país desde a colônia está o caráter alienado de sua classe dominante, cujos interesses e ganhos jamais estiveram dependentes ou vinculados ao desenvolvimento nacional.

 

Nas primeiras décadas do século passado nossa população era predominantemente rural, e nossa economia subordinada aos preços internacionais do café, avessas as “elites” econômicas e políticas à industrialização, e resistentes a qualquer proposta de desenvolvimento que pudesse ameaçar as estruturas econômico-políticas que asseguravam seu mando.

 

É sobre esse cenário que começa a se configurar o que se poderia chamar de classe-média urbana (os funcionários públicos, os pequenos e médios comerciantes, a intelectualidade emergente, etc.) e os jovens militares. No ano da Semana de Arte Moderna (1922), se encontram os sentimentos moralistas da classe-média com a inquietação da jovem oficialidade simbolizada no Levante do Forte de Copacabana (naquele mesmo ano), a primeira de uma série de irrupções militares que se disseminam ao longo das décadas seguintes, até o golpe de 1º de abril de 1964, o vestibular da ditadura militar que só conhecerá termo em 1985. Com o levante, surge o “tenentismo”, de que são filhos a Coluna Prestes (1924) e mesmo a “revolução” de 1930, que se desdobra (1937) no Estado Novo, a ditadura que vai até 1945.

 

A preeminência dos militares, avalizadores dos governos oligárquicos, vem de longe. Ela se estabelece, institucionalmente, a partir do golpe de 15 de novembro de 1889 – um acontecimento dos militares, só deles, isto é, sem povo e sem republicanos, que, ao derrubar a monarquia, instaurou a República dos grandes proprietários de terra. A República curatelada, arrimada em um processo eleitoral censitário e corrupto, buscava legitimidade em um alistamento que não abarcava nem as camadas médias da população. Em 1894, na primeira eleição direta para presidente da República, o candidato vitorioso, Prudente de Morais, elegeu-se com cerca de 270 mil votos, o que representava menos de 2% da população brasileira.

 

Essa democracia sem povo e sem voto sobreviverá até 1930, ano da revolução varguista que se transformará em ditadura em 1937 e se estenderá até 1945, quando Getúlio Vargas, o ditador, é deposto por um golpe militar arquitetado e executado pelos mesmos generais que o haviam levado ao poder discricionário.

 

Essa introdução tem o propósito de pôr de manifesto o encontro do combate despolitizado à corrupção com os golpes de Estado, de base militar ou não, como o de 2016. Um dos temas centrais do levante de 1922 era a denúncia da corrupção eleitoral e o pleito de um sistema eleitoral “justo”, ou seja, sem fraude. Estabelece-se entre os militares, majoritariamente, a crença de que os males do País residiam na corrupção, tema que logo foi absorvido pelas correntes políticas de direita, que dominariam o debate politico, e passam a frequentar os quartéis.

 

Assim, o combate à corrupção se transforma em instrumento político de apelo à ruptura constitucional, invocada como necessária a sua erradicação, quando seu objetivo tem sido o de impedir o ascenso de governos chamados de “populistas” por ensejarem  a emergência das massas.

 

O azimute que unifica as forças conservadoras (auto nomeadas como “liberais”) é a “moralização dos costumes políticos” (cortina de fumaça para o golpismo) que, a partir principalmente dos anos 50 do século passado, passa a contar com a ação da grande mídia. Seu papel, de sempre, mas que se acentua principalmente após a redemocratização de 1946, é a construção do discurso ideológico unificador do pensamento conservador-reacionário, fundado no combate à corrupção, na manipulação dos conceitos de ética, liberdade e democracia, na renúncia ao projeto de construção de um país independente economicamente e soberano politicamente.

 

Cumpre-lhe (1) criar as condições subjetivas para o golpe (de que a direita lança mão sempre que se vê ameaçada em seus interesses) e, (2) na sequência, legitimá-lo, mediante a construção autônoma da narrativa: em 2016 (contra o lulismo), como em 1954 (contra Vargas, o homem e o que ele representava), como contra Juscelino Kubitschek nos idos do desenvolvimentismo (1956-1961), como na preparação de 1964, contra o homem João Goulart e o que ele representava de promessa de desenvolvimento nacional autônomo, distribuição de renda e de emergência das massas, o eterno fantasma a povoar os pesadelos das classes dominantes.

 

Não há nada de novo sob o céu.

 

A partir do governo constitucional e democrático de Vargas (1951-1954) e até a derrocada do lulismo (2003-2016) registra-se o avanço do pensamento de centro-esquerda, caracterizado pela emergência das massas associada ao projeto de desenvolvimento nacional autônomo, teses inaceitáveis para a direita brasileira, sobretudo pelas chamadas “elites” econômicas, rentistas, encasteladas na Avenida Paulista, de onde comandam a sonegação de impostos, a corrupção e o suborno. Seguem-se os golpes e a mesma justificativa: o combate à corrupção.

 

A vitoriosa campanha contra Vargas (1954) centrava-se na denúncia de um “mar de lama” que correria nos inexistentes “porões” do Palácio do Catete, sede do governo.

 

O quinquênio de Juscelino foi anatematizado como reino da corrupção, desde o primeiro dia, e voltou a ser alvo de inquéritos na ditadura militar. Nada, porém, como no caso de Vargas, seria comprovado, mas o presidente, cuja posse fôra contestada pelos militares em uma tentativa de golpe (novembro de 1955), teve de enfrentar dois levantes militares e cerca de 10 pedidos de impeachment. Seu sucessor, o candidato da direita, Jânio Quadros, o efêmero, carregava como símbolo de campanha uma vassoura e como mote “acabar com a roubalheira”.

 

João Goulart já era combatido, como “corrupto” e chefe de “pelegos” desde seu tempo de ministro do Trabalho (1953-1954) e desde sempre acusado de “populista” pois seu grande “crime”, insusceptível de sursis, era ser “o herdeiro de Vargas”, o cadáver que resistia à morte política. Em seu governo avançaram os esforços visando à emergência das massas e à efetivação de uma politica externa independente, herdada, alias, de seu antecessor, e exatamente por essa razão incompatibilizado com as correntes mais reacionárias de seu bloco de apoio. A longa campanha contra Jango (iniciada mesmo contra sua posse, que os militares tentaram impedir em 1961) acusava seu governo de subversivo e corrupto.

 

A denúncia da corrupção é o aríete sempre usado, até aqui com sucesso, pela direita brasileira, para inviabilizar os governos progressistas.

 

Em 1963, assim como Lula em 2017, Juscelino Kubitscheck aparecia com 43,7% das intenções de voto para as eleições presidenciais de 1965. Tem início, então, uma grande campanha dos grandes jornais da época (já lá estavam O Globo e o Estadão) acusando o ex-presidente de corrupção. A denúncia, sem provas, mas cheios de “convicção” seus detratores, era um apartamento em Ipanema, no Rio de Janeiro, de propriedade do empresário Sebastião Paes de Almeida, alugado por JK. Mas, diziam os detratores, o proprietário real era JK, e o milionário Paes de Almeida um mero ‘laranja’.

 

Provas? Dona Sara, esposa de JK, havia sido vista no apartamento durante as obras e presidira a decoração. Implantado o golpe de 1964, JK foi humilhado em inumeráveis inquéritos dirigidos por coronéis sem história, e foi cassado. E as eleições diretas de 1965 se transformaram nas indiretas de 1985.

 

A campanha contra JK nos ajuda a compreender a onda de ódio e intolerância, de ódio de toda sorte, de ódios vítreos e de ódios hepáticos, de ódio mesmo, puro ódio, como aquele que se alimenta no preconceito e na irracionalidade, o ódio de classe e o ódio que simplesmente não se explica, mas sempre um ódio mortal, violento e virulento, que procura destruir com, o político, o símbolo, o líder, o grande eleitor, e, se necessário, o homem.

 

Se a arma da direita é, sempre foi, o golpe de Estado e a ditadura, não há, porém, para o povo, para os trabalhadores, para o país, para a política e para a economia, alternativa fora da democracia representativa. Não há saída fora das eleições, que, ao invés de esvaziar ou pôr em questão, devemos defender com unhas e dentes, com a consciência de que estaremos defendendo a única saída de que dispomos.

 

- Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

 

 

https://www.alainet.org/en/node/191560
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