Um desabafo!
- Opinión
(Recordando Jorge de Lima)
«Estai alerta: de súbito ela se tornará visível.
Estai alerta, portanto, desde o amanhecer do dia.
É Mira-Celi que vem para viver convosco!
(…)
Se vossa mente possui alguma sinistra idéia,
não a vereis jamais.
Se vosso dorso se curvou a um tirano qualquer,
Ficareis cegos de nascença.
Porque Mira-Celi nunca se mostrará,
enquanto divisar manchas em nossa terra.»
Jorge de Lima (1893- 1953)
Com um misto de raiva, impotência, tristeza e vergonha vejo as imagens das queimadas na Amazônia. A mesma raiva, a mesma impotência, a mesma vergonha e a mesma tristeza com que vejo o que vem acontecendo no Brasil desde o golpe que derrubou a Presidente Dilma. E sei que ainda vai haver muita destruição e muito sofrimento, pois o que está acontecendo na Amazônia é apenas mais um passo, mais um movimento dentro da lógica de destruição do Governo Bolsonaro, a mais exemplar encarnação da ordem neoliberal e de sua guerra total contra a sociedade e a natureza. Não podemos nos enganar: ao lado da indignação manifestada no Brasil e em todo o mundo por causa dos incêndios na Amazônia, há também a indiferença à vida que exulta e calcula, desde agora, os lucros que virão com as minerações, com a expansão agrícola e com a exploração de todos os recursos naturais da cobiçada Amazônia. Para a ordem neoliberal – da qual o Governo Bolsonaro é um instrumento – qualquer barreira contra a expansão do capital deve ser removida, não há limites. Uma floresta viva, protegida, com recursos minerais intocados é, do ponto de vista do capital, uma barreira à sua expansão. E o capital sempre cobiçou as riquezas da Amazônia. As queimadas indicam que Bolsonaro e seu ecocida Ministro do «Meio Ambiente» (!!!) Ricardo Salles deram o sinal verde para a exploração total da Amazônia. Não é coincidência que as queimadas ocorram no momento em que o Governo anuncia seus planos de privatizar os correios, a Petrobrás e mais todas as estatais que puder, a lógica é a mesma: queimem-se a floresta e queimem-se os bens públicos, tudo pelo bem do capital.
O momento em que ocorrem as queimadas e o anúncio das privatizações foi escolhido com precisão. Os escândalos em torno do governo se acumulam, a ligação da família Bolsonaro com o crime organizado e as milícias é cada vez mais evidente, fala-se em impeachment. As revelações do The Intercept Brasil sobre a Operação Lava Jato colocam em dúvida a própria legitimidade da eleição que colocou Bolsonaro no poder. É neste contexto que ocorrem as queimadas e o anúncio das privatizações, ou seja, os sinais enviados por Bolsonaro para os donos do poder, o capital internacional, de que este pode contar com o seu governo para se locupletar com as riquezas públicas e naturais do Brasil. O capital agradece e, sobretudo, segue apoiando Bolsonaro na presidência do Brasil. O apoio que mantém Bolsonaro no poder esta apenas em parte do Brasil, o apoio REAL vêm de fora, dos que, junto com a grande imprensa, o sistema judiciário e grande parte do Congresso. colocaram o Brasil nas mãos de um administrador colonial submisso ao imperialismo dos EUA. E todos os que manipularam para colocá-lo no poder tem culpa pelo fogo que se espalha na Amazônia e por toda a destruição que já ocorreu.
Os trezentos e tantos mil empregos perdidos só no setor da engenharia graças à premeditada destruição das grandes construtoras pela Operação Lava Jato em cumplicidade com a grande imprensa não serão recuperados, pelo menos não num futuro próximo. Os cerca de sessenta mil hectares queimados até agora também não serão reflorestados, é uma riqueza natural perdida, provavelmente para sempre. O Brasil de hoje é bem mais pobre do que o Brasil de pouco anos atrás, o Brasil de antes do golpe, e não apenas economicamente. O Brasil de Bolsonaro é mais pobre de possibilidades, de futuro – um futuro melhor, hoje, com toda esta destruição, esta muito, muito mais distante. O Brasil de Bolsonaro é mais pobre de alegria, de civilidade e de cortesia. É mais pobre de matas e de água limpa. Sinto uma profunda tristeza em ver que tantos se enpenharam tanto para levar adiante este projeto de destruição do país, de constatar tanto ódio e tanto desprezo de tantos brasileiros pelo seu próprio país e pela maior parte de seu próprio povo. Sinto raiva e vergonha de que tudo isso tenha sido possível e que ainda vá continuar por muito tempo, pois sobre isso não me engano. Tenho certeza de que Bolsonaro vai acabar com o bolsonarismo, que um dia vamos nos livrar de tudo isso, deste ódio que se implantou, de toda esta destruição. Mas sei também que isso ainda vai levar tempo e que o Brasil ainda vai sofrer muito…
Me sinto desanimado, deprimido, me recolho e procuro ler alguma coisa que me ajude a me sentir melhor apesar de tudo. Nem sei mais quantas vezes eu já li mas, quase por instinto, releio «Invenção de Orfeu» do poeta Jorge de Lima, este longo e misterioso poema que, como «Grande Sertão:Veredas» são desses acontecimentos absolutamente inexplicáveis. Reencontro lá os versos premonitórios que eu tinha esquecido e que parecem ser uma mensagem sobre o nosso tempo, uma reflexão sobre as nossas escolhas e sobre tudo isso que estamos vivendo no Brasil:
«Há a luz que é sombra só porque quer ser,
que amanhece nas almas vigiando-as,
que anoitece nos dias benfazejos.
Há essa luz também, luz que nos cega
como dois sóis que nos deixam sob as pálpebras
a sensação de estarmos enxergando;
e somos cegos da cegueira funda
que se esqueceu da noite de onde vimos
e que não vê a noite para onde vamos.»
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