O Vale do Jordão: silêncios hipócritas à beira da tempestade
- Opinión
Benjamin Netanyahu, o aparentemente eterno primeiro ministro de Israel, agora geminado com um dos carrascos de Gaza, Benny Gantz de sua graça, vem anunciando que a partir do início do próximo mês dará os passos governamentais, parlamentares e militares que considera necessários para anexar o Vale do Jordão, no território palestiniano da Cisjordânia. Além disso, tenciona integrar no Estado de Israel os colonatos construídos ilegalmente no mesmo território durante os últimos 60 anos. Estes movimentos representam, de facto, a extinção da chamada «solução de dois Estados» na Palestina histórica, estabelecida em 1948 pelas Nações Unidas e reactivada durante os passados anos noventa. Os criminosos não escondem o crime, os avisos estão feitos: ninguém poderá dizer que será apanhado de surpresa.
A chamada «comunidade internacional», a começar pela ONU e respectivo secretário-geral, assiste de camarote aos acontecimentos. A repetição, como um mantra, de que «a solução de dois Estados» continua a ser o caminho para regularizar a situação na Palestina servirá para fazer de conta, ou para manifestar um apego inconsequente aos princípios estabelecidos, ou até para marcar presença num quadro de inutilidade. Mas não tem lastro para travar o buldozzer sionista e o seu guarda-costas yankee empunhando a arma do «acordo do século» – aquilo que a «comunidade internacional» não atribui qualquer valor legal mas que, na realidade, guia as acções dos únicos a mexer-se neste processo – a caminho da anexação da Cisjordânia.
O facto consumado dos factos consumados
Ao investigar minuciosamente os comportamentos de países e entidades com poder de decisão sobre as coisas do mundo não se detecta um único indício de que esteja em desenvolvimento uma acção internacional concertada para demover Israel de dar o golpe anunciado.
Um golpe que, sem paninhos quentes nem contorcionismos semânticos, tem o mesmo significado, à luz das leis internacionais, que o improvável acto de Espanha anexar Portugal, ou Portugal deitar a mão à Galiza, ou a França aboletar-se com a Valónia, ou a Alemanha engolir o Luxemburgo, ou a Áustria, coisa que já nem seria original mas sabemos em que circunstâncias aconteceu.
São comparações retiradas dos cadernos do absurdo. Porém, têm absoluta legitimidade. O Estado da Palestina é reconhecido por dois terços dos países da ONU e tem assento na organização. A sua consumação territorial tem sido impossível apenas porque existe um Estado ocupante que se nega a cumprir a legalidade internacional e que não sofre quaisquer consequências por isso, tornando as leis reféns da força bruta e da cumplicidade de interesses abjectos.
Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Leste são os territórios onde, no quadro da «solução de dois Estados», deverá assentar territorialmente o Estado da Palestina. Jerusalém Leste foi anexada por Israel, com a cobertura dos Estados Unidos da América e sob protestos verbais envergonhados, inúteis e efémeros dos seus parceiros e aliados da NATO e da União Europeia. Gaza é um campo de concentração cercado militar e fisicamente, onde dois milhões de pessoas estão condenadas a condições infra-humanas, à espera da morte ou de que Israel e os Estados Unidos, talvez com ajuda da Arábia Saudita e o Egipto, decidam o que fazer com elas – no âmbito, claro, do «acordo do século», esse instrumento sem valor legal.
E a Cisjordânia, além de retalhada por mil e um colonatos, serpenteada por um muro intransponível que separa famílias, propriedades, aldeias e cidades, arrasada pelo terrorismo dos militares ocupantes e dos colonos, poderá ser anexada praticamente na totalidade já a partir de Julho.
Consumada a anexação do Vale do Jordão, integrados os colonatos na soberania do Estado sionista, nada restará na Cisjordânia onde possa erguer-se alguma coisa que se pareça com um Estado soberano e viável. Fim da «solução de dois Estados».
Estamos a menos de meia dúzia de semanas de que isso aconteça, ou pelo menos sejam dados passos que tornem o processo irreversível. Bem na linha da política de factos consumados através da qual Israel se tem consolidado como Estado colonial e os palestinianos têm perdido os direitos que lhe estão garantidos nos papéis onde está inscrito o direito internacional, papéis cada vez mais imprestáveis em geral, totalmente imprestáveis neste caso. Será o supremo facto consumado na torrente dos factos consumados com que Israel humilha a legalidade internacional.
Confirmadas a inutilidade e a indignidade da União Europeia
A Rússia tem afirmado que se opõe a qualquer acção israelita para anexação do Vale do rio Jordão.
A China diz a mesma coisa, mais palavra, menos palavra.
Se, durante o processo, for necessário recorrer a vetos no Conselho de Segurança das Nações, as duas nações não hesitarão em utilizá-los. O mesmo acontecerá do lado dos Estados Unidos, anulando-se mutuamente os efeitos de cada veto. Não se espera, portanto, que o Conselho de Segurança adopte qualquer medida dissuasora dos objectivos sionistas. Porém, será muito previsivelmente o mais longe que Moscovo e Pequim irão na tentativa – nesse caso ineficaz – de fazer prevalecer os direitos dos palestinianos.
Há ainda a União Europeia, essa defensora incansável do direito internacional, dos direitos humanos, da soberania dos povos – para quem acredita ainda no discurso hipócrita e cínico dos seus dirigentes.
Em 15 de Maio reuniram-se em Bruxelas os ministros dos Negócios Estrangeiros dos 27 e o tema da anunciada anexação do Vale do Jordão surgiu em cima da mesa.
Como se sabe, a União Europeia defende oficialmente a «solução de dois Estados» na Palestina. Então, alguns Estados membros, entre os quais a França, Espanha, Bélgica, Luxemburgo, ousaram propor a imposição de sanções a Israel no caso de concretizar as intenções anunciadas. Nada de muito relevante, tudo muito suave, apenas a exclusão do envolvimento de Israel no quadro científico-técnico denominado Horizonte 2027. Sanções inúteis, simbólicas numa entidade que decidiu flagelar-se a si própria – sobretudo aos seus agricultores – por conta das sanções pesadas impostas à Rússia pela «ocupação» da Crimeia, um território histórica e inegavelmente russo, tal como demonstraram massivamente os seus habitantes em referendo.
Apesar dos pezinhos de lã contra uma atrocidade terrorista como a prometida por Israel, devastadora para o direito internacional, para os direitos nacionais e humanos de milhões de palestinianos, foram vários os países que se opuseram desde logo a essas sanções, ainda que inconsequentes, e confirmaram aquilo que todos sabemos: a inutilidade da União Europeia na cena internacional, neste caso reflectindo a sua indignidade por ser incapaz, como quase sempre, de fazer cumprir aquilo que diz defender.
Fica então sentenciada a passividade – a cumplicidade – da União Europeia quando Israel avançar para a anexação.
Dez dias depois dessa reunião, num encontro com embaixadores alemães, deu-se o caso de o chefe da «política externa» da União Europeia, o espanhol Josep Borrell, ter falado no «fim da liderança norte-americana», fazendo soar o tambor das especulações e das conjecturas dos geopolitólogos de plástico. Com aquilo que está a passar-se nos Estados Unidos, parece aconselhável adoptar uma certa distância e dizer coisas que pareçam reflectir vida e existência próprias para além da subserviência militar, económica, financeira e política. Se passarmos do discurso à prática, nada a registar. A União Europeia guarda sobre a execução extrajudicial de George Floyd e sobre o racismo congénito dos Estados Unidos a mesma discrição que assumirá quando Israel fizer flutuar a bandeira sionista no Vale do Jordão. Discursos inflamados ainda poderá haver, actos nem vê-los.
A partir da anexação, como tem acontecido ao longo de décadas, facto consumado atrás de facto consumado, ouviremos os convictos dirigentes europeus, da globalização e da ONU «exigir» que Israel se retire do Vale do Jordão e dos territórios ocupados para que possa ser aplicada «a solução de dois Estados». Um insulto à inteligência, um alinhamento objectivo com a ilegalidade, uma traição repugnante contra o povo palestiniano.
Entre os dirigentes mundiais com peso nas decisões internacionais muitos haverá que estarão dispostos a brandir discursos solidários e de firmes princípios teóricos até ao último dos palestinianos. Nada mais do que isso.
Os palestinianos não se rendem
Os palestinianos, mais de sete milhões na Palestina e no mundo, podem contar apenas com eles próprios. Não é certo, inclusivamente, que venham a sentir o apoio do governo «autónomo» instalado em Ramallah, enredado na teia montada pelo sionismo que o tem conduzido frequentemente a desempenhar tarefas de «segurança» – de repressão do seu povo, portanto – em sintonia com forças militares israelitas. O presidente Mahmmud Abbas já deixou agora de atender os telefonemas de Trump, desligou-se dos Acordos de Oslo mas as medidas pecam por tardias. Num quadro em que o apoio de países árabes é duvidoso e em muitos casos inexistente – e será sempre insuficiente perante as forças em presença – os palestinianos podem contar somente com as próprias forças. E com o apoio que povos solidários considerem dar-lhes através de lutas cívicas e institucionais. Sabendo que terão de enfrentar até a infame acusação de anti-semitismo, que o monstruoso aparelho mundial de propaganda sionista quer obrigar a associar a qualquer manifestação ou expressão de repúdio contra actos terroristas e ilegais praticados pelo Estado de Israel. Anti-sionismo não é anti-semitismo; muito menos a condenação dos desumanos e ilegais actos israelitas pode ser considerada anti-semitismo. Mas a ideia está a fazer o seu caminho na União Europeia, sempre pronta a fazer trabalhos sujos recomendados pelo sionismo – ainda que seja para cobrir o terrorismo.
Os palestinianos, onde quer que estejam, não ficarão de braços cruzados perante esta manifestação aguda do terrorismo sionista em preparação. Fala-se em «terceiro Intifada», quanto mais não seja pelo hábito rotineiro de catalogar acontecimentos. Mas haverá seguramente resposta, que será definida pelos próprios, como aconteceu com o levantamento das pedras de 1988 e que pôs pela primeira vez em xeque, até aos olhos do mundo, a fama e as «legitimidades» do sionismo todo-poderoso. O movimento nacional de resistência, é certo, não está organizado e unido como então, a fractura entre a Organização de Libertação da Palestina (OLP) e o Hamas, entre a Cisjordânia e Gaza, enfraqueceu a capacidade de reacção. Contudo, nesse Intifada de 1988 que explodiu em Gaza as raízes populares foram determinantes e vão sê-lo de novo, unindo até o que por ora continua desunido.
Chegado esse momento ouviremos então dirigentes europeus e mundiais, que por enquanto guardam silêncio sonso, apelar à calma de ambos os lados e condenar o «terrorismo palestiniano», que só «prejudicará» a procura de «soluções».
Que soluções? As que estão contempladas no direito internacional e que os detentores dos mecanismos legais, ONU incluída, não fazem cumprir?
Nova e tenebrosa tempestade está a explodir na Palestina – com muitos focos através do Médio Oriente. Não acreditem, portanto, nos dirigentes nacionais e internacionais que irão dizer-se chocados, surpreendidos e que neste momento, comprometidos com interesses ilegais e desumanos, são espectadores hipócritas dos ensaios de uma tragédia anunciada.
José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril
04 de Junho de 2020
https://www.abrilabril.pt/internacional/o-vale-do-jordao-silencios-hipocritas-beira-da-tempestade
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