A lição de uma vaia

24/06/2014
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As vaias que a presidenta Dilma Rousseff recebeu na abertura da Copa, em 12 de junho, na presença de inúmeros chefes de Estados e transmitidas pelas redes de televisão ao mundo todo, revelam aspectos do que temos em nosso país.Vaiar autoridades em eventos que reúnem multidões – de futebol ou de shows musicais – não é nenhuma novidade em nosso país ou em qualquer outro lugar do planeta. No entanto ,há singularidades nos xingamentos que atingiram a mulher, a mãe e avó que, por decisão da maioriada população brasileira, ocupa atualmente o cargo de presidenta da República e, nessa condição, assistia a partida de futebol.
 
A mídia noticiou que a vaia – ou melhor, o xingamento – começou na área VIP do estádio e, precisamente, com uma colunista social do jornal O Estado de S. Paulo, presente no camarotedo Banco Itaú. O coro do “Ei Dilma, vá tomar no c...” foi promovido pela elite branca, na certeira definição do ex-governadorCláudio Lembo, presente e representada no estádio. Uma elite endinheirada, que se regozija com férias em Miami e no parque Walt Disney.
 
Rica, mas desprovida de educação, civilidade e, mais ainda, de valores democráticos. Não se dão contade que os tablets que portam retratamos senhores-de-engenho, dos quatro séculos de trabalho escravo em nosso país.O tucano Aécio Neves e Eduardo Campos (PSB), que sonham em eleger-se para o cargo ocupado hoje pelaDilma, trataram de tirar proveito político e eleitoral do ato vergonhoso, dizendo que a presidenta estava sitiada e aquele era um sentimento generalizadono país. O jornalista Juca Kfouri, um dos primeiros a condenar os xingamentos, foi ouvir os voluntarios e trabalhadores presentes no estádio, e estes se somaram aos que criticaram as vaias. Assim, talvez Aécio Neves esteja certo quando diz que a presidenta estásitiada e só pode aparecer em públicob em protegida. Para ele, o povo brasileiro se resume à elite endinheirada.
 
E certamente FHC não está protegido quando sai a público... Na Academia Brasileira de Letras e nas convenções do PSDB.O candidato tucano disse ainda que “Dilma colheu o que plantou”. Foi lembrado pelo jornalista Renato Rovai que, em 2007 num jogo entre Brasil e Argentina, o mineirão lotadogritou: “ôôô Maradona, vai se f... o Aécio cheira mais que você!”. E agora Aécio? Mas, talvez nada seja mais emblemático do que o berço daqueles xingamentos raivosos. Tendo começado por uma colunista social do Estadão, convidada especial do Banco Itaú para assistir a partida no seu camarote, é a síntese de dois principais protagonistasdas bandeiras conservadorase neoliberais da política brasileira: a mídia e o sistema financeiro.
 
Ambos são privilegiadíssimos com as políticas do Estado, inclusive nos governos petistas, primeiro com Lula e agora com Dilma. Privilégios fiscais e verbas publicitárias, do governo e empresas estatais, enriquecem meia dúzia do núcleo duro da elite branca, que monopolizam a informação e nos devolvem um jornalismo que mente, omite, desinforma e confunde a opiniãopública. Um jornalismo que não consegue distinguir o técnico da seleção brasileira de um sósia seu, como fez nessa semana que passou a Folha de S. Paulo e o O Globo.
 
Os bancos superam seus lucros estratosféricos a cada ano, num ranking não raramente liderado peloBanco Itaú. Nele abrigam-se personagens importantes do catastróficogoverno FHC, como o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan. Insaciáveis nos lucros, em políticas que enriquecemos já ricos, sonham voltar ao governo para continuar a obra que está tão bem retratada nos livros A PrivatariaTucana, O Príncipe da Privatariae Operação Banqueiro, dos autores,respectivamente, Amaury RibeiroJr., Palmério Dória e Rubens Valete.
 
Os xingamentos raivosos vociferados pela colunista social, ávida por agradar seu patrão, o Estadão, e seu anfitrião, Banco Itaú, mostram que a elite branca não admite quaisquer políticas públicas, por mais tímidas que sejam, que beneficiem os pobres.Já é hora de confrontar esses setores conservadores com mudanças mais profundas em nossa sociedadee na forma de governar o país. Iniciando com uma assembleia nacional constituinte exclusiva, que promovauma reforma política imprescindívelpara fortalecer a democracia participativa.
 
É necessário avançar e aprofundaro combate a desigualdade social e econômica existente em nosso país, começando pela taxação das grandes fortunas e sobre as heranças, como acontece nos países chamados de primeiromundo. A presidenta Dilma precisa estar ciente que a democracia exige políticasque promovam a democratização da comunicação. Não basta ter o controleremoto nas mãos. Igual às leis que aboliram a escravidão, seremos o último país do continente a ter uma lei sobre os meios de comunicação?
 
É preciso uma reforma agrária que promova a democratização da terra, a soberania alimentar do nosso país e um modelo de agricultura que priorizea produção de alimentos saudáveis, livre de agrotóxicos. E uma reformaurbana que combata a especulação imobiliária e elimine o vergonhoso déficit habitacional existente.Há também a necessidade, urgente,de uma política educacional e cultural de valorização dos direitos humanose de combate a todas as formasde racismo e homofobia.
 
Mesmo com reformas como essas, ainda haverá xingamentos e falta de civilidade dos setores mais endinheirados dessa elite branca. Mas serão cada vez mais fracos e de poucos.
 
Editorial da edição 591 do Jornal Brasil de Fato
 
24/06/2014
 
https://www.alainet.org/en/node/86657
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