A carnavalização do descobrimento

30/10/2000
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Nenhuma aula de história ou comemoração prevista para celebrar os 500 anos de Brasil conseguirá superar a aula magna dos carnavais do Rio e de São Paulo. O desfile das escolas de samba refletiu primorosamente a face real de nossa história: uma seqüência de eventos trágicos emoldurada pelas alegrias próprias dos festejos de Momo. A maioria dos foliões - assalariados e desempregados, trabalhadores da economia informal e favelados - exibiu-se com a exuberância e o requinte que a festa comporta. O carnaval promove, na esfera do simbólico, uma inversão de papéis que não ocorre na realidade. O que foi dor vira alegria; a escrava, rainha; o escravo, rei; o pobre, rico; e o rico tem seu dia de morro. Falsos índios e escravos sambaram na avenida, numa evocação nostálgica do que, de fato, foi terror, massacre e opressão. Na linguagem carnavalesca, essa inversão é justificável. Pode-se estilizar a memória do sofrimento, teatralizá-lo nas chibatas e no pau-de-arara exibidos na avenida, mas jamais extirpá-lo de quem o experimentou na carne e no espírito, e guarda, para sempre, as suas marcas. Calcula-se que em 1500 havia, nessas terras, cerca de 5 milhões de indígenas. Hoje não passam de 330 mil. Mas constituem um patrimônio antropológico único. Infelizmente em extinção. No exterior, tenho o orgulho de divulgar que, no Brasil, são falados 187 idiomas ­ o português e mais 186 línguas indígenas. De tal modo a cultural do virtual vem se sobrepondo à do real, que o governo FHC parece ter decidido carnavalizar as comemorações dos 500 anos. Qualificar o "descobrimento" de "comunhão de raças" fica bem na coreografia de Momo, onde dissimulam-se os preconceitos raciais e sociais, e os salários máximos do país se misturam com os mínimos. Exaltar uma suposta "harmonia étnica" é justificável ao som da batucada que iguala, por três dias, o que os outros 362 dias do ano revelam como imensurável abismo de desigualdade social. Como a história do Brasil não está sendo contada pelos índios, escravos, sem-terras, flagelados e desempregados, suas principais vítimas, o que teremos é a versão da Comissão Bilateral Executiva para as Comemorações do V Centenário da Viagem de Pedro Álvares Cabral, cujo protocolo foi assinado, entre Brasil e Portugal, em maio de 1991, e da Comissão Nacional, com orçamento mínimo de R$ 45 milhões, criada em 1993. Porto Seguro, Santa Cruz de Cabrália, Troncoso e Arraial D¹Ajuda estão sendo descaracterizados para acolher os festejos. Uma réplica da nau "Capitânea", construída na Base Naval de Aratu, em Salvador, será lançada ao mar este mês e, em 22 de abril, qual um museu flutuante, reprisará o carnaval num encontro amistoso com canoas indígenas no litoral de Cabrália e Porto Seguro. Tudo de mentirinha, para não ferir os brios do governo português, encher os olhos dos telespectadores e provocar uma fugaz emoção em quem não gostaria de estar na pele dos indígenas que, há 500 anos, se defrontaram com os invasores lusitanos. O "Memorial do Encontro" será inaugurado no Parque Histórico de Coroa Vermelha, em Santa Cruz de Cabrália, um conjunto de quatro obras que inclui o Museu Aberto do Descobrimento, erguido em área Pataxó, reduzida pelo governo em 1997, para dar espaço ao edifício. Felizmente, o bloco oficial não vai para a rua sozinho. Em abril, a partir de centenas de cidades do país, rumo a Porto Seguro, haverá a Marcha Indígena 2000, organizada pelo Movimento de Resistência Indígena, Negra e Popular ­ Brasil Outros 500. Participarão pelo menos 2 mil indígenas de 200 povos, rememorando os massacres sofridos e denunciando a inoperância pública na demarcação de suas terras, invadidas por madeireiras, latifúndios, mineradoras e falsos missionários à cata de recursos naturais para serem contrabandeados e patenteados no exterior. Entre 18 e 22 de abril, haverá a Conferência dos Povos Indígenas, em Coroa Vermelha. Com certeza o conteúdo dos debates não merecerá espaço na TV. O Brasil do faz-de-conta vai muito bem obrigado, com verba oficial de R$ 650 milhões para ser gasta este ano em publicidade do governo. Enquanto o gigante permanecer adormecido, os poderes da República podem locupletar-se e aumentar seus régios salários, recheados de incontáveis mordomias, desde que o aumento do salário mínimo não arranque a camisa-de-força imposta à nação pelo FMI nem afete o pagamento dos juros e serviços da dívida externa. O custo Brasil sempre foi grande. Mas, que importa! Os pobres sempre pagam a conta.
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