A praga da pobreza

31/10/2000
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A reunião, em Praga, do FMI e do Banco Mundial, é como a fazenda presidencial em Buritis, cercada de pobres por todos os lados. Há quem considere que a pobreza estraga a paisagem. Como seria bom viver sem a vizinhança de favelas, de famílias sob viadutos, de crianças espelhando olhos ameaçadores no vidro de nossos carros. Deus fez os pobres? Não há, em toda a Bíblia, um só versículo de exaltação da pobreza. Deus fez o jardim do Éden, cujas flores foram esmagadas pela ambição humana. Reduzido a mercado, o Paraíso transformou-se em inferno para bilhões de excluídos. Quanto maior a acumulação de uns poucos, maior a privação de muitos. A pobreza alastra-se como uma praga. Há quem defenda que há excesso de bocas. Não é verdade. Somos 6 bilhões de habitantes neste mundo que produz grãos suficientes para alimentar o dobro da população mundial. A carência não é de bens. É de justiça. Globaliza-se a miséria. Mas suas vítimas já não aceitam o confinamento geográfico no Terceiro Mundo. Nem o psicológico. Acabou-se o desvalido abnegado. São 2,8 bilhões de pessoas, obrigadas a sobreviver com menos de US$ 2/dia. Sem ter o que perder, fazem no mundo o que os sem-terra fazem no Brasil: ocupam espaços. Invadem os países ricos em busca de vida melhor. Há 43 milhões de latino-americanos ilegais nos EUA. Agora, os pobres ocupam também os espaços simbólicos. Seu clamor fez-se ouvir em Seattle (dez/99) e Washington (abril/00) e, de novo, ressoa na reunião do FMI/Banco Mundial em Praga. Estas duas instituições controlam a economia mundial. Funcionam "como um braço do Tesouro dos EUA", afirma o indiano Ajit Singh, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Os países pobres, como o Brasil, malgrado a subserviência de nossos ministros, jamais tiveram vez nessas instituições. Elas controlam a nossa economia, fiscalizam as nossas contas, ditam ordens a nossos governos, sem que haja o menor benefício para os nossos pobres. Só os credores internacionais saem no lucro. Por desvendar essa lógica perversa, o plebiscito da dívida e(x)terna suscitou tanta ira em quem troca a soberania nacional por uma lata de caviar. Em Praga, os manifestantes elevam a voz dos que não têm voz. A desregulamentação da economia, a livre movimentação do capital especulativo e o fortalecimento dos oligopólios só aumentam a abissal desigualdade entre os poucos ricos e a incontável multidão de excluídos. Basta lembrar que apenas quatro pessoas ­ Bill Gates, Larry Ellison, Paul Allen e Warren Buffett ­ têm em mãos uma riqueza superior à renda de 42 nações com 600 milhões de habitantes! A estabilidade econômica, novo nome do arrocho, produz estagnação e emperra o desenvolvimento. Segundo James D. Wolfenshon, presidente do Banco Mundial, 20% da população mundial controlam 80% das riquezas. Nos próximos 25 anos, a população do planeta pulará para 8 bilhões de pessoas, a grande maioria vivendo em regiões pobres. É o que ele considera uma ameaça de "fratura social". Enquanto os países ricos fecham seus mercados aos produtos dos países pobres, estes escancaram portos e portas à entrada das mercadorias procedentes do Primeiro Mundo. Se este consumisse produtos agrícolas oriundos dos países pobres, o Terceiro Mundo teria uma renda adicional de, no mínimo, US$ 40 bilhões. O que é viver na pobreza? No Brasil, os altos escalões do governo não têm idéia do que seja isso. Quando muito, sobrevoam de helicóptero áreas atingidas pelo flagelo da fome. O mandam filmar, como em Buritis, a reação dos pobres em luta por seus direitos. Não para se inteirar dela, mas para engrossar os arquivos policiais. O Banco Mundial encarregou Deepa Narayana, especialista em Desenvolvimento Social, de responder à questão. O resultado de sua pesquisa assinala que pobreza não é só falta de renda. É também falta de poder e insegurança, engendrando violência e descrédito nas instituições públicas. No Brasil há duas atitudes frente à pobreza. Uma, do governo, que a cada dois ou três meses inventa um novo plano para combatê-la, ou muda o nome de velhos projetos, rebatizando-os em lançamentos demagógicos, sem que se verifiquem resultados práticos. As verbas ficam no papel ou quase nunca chegam ao destino final. A outra é dos próprios pobres, como os sem-terra. Eles levam à prática o que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso defende em suas obras e a professora Ruth Cardoso, em sua tese de doutorado: a organização dos excluídos em movimentos sociais, que se assumem como sujeitos históricos na construção da cidadania e da democracia. É uma vergonha para a frágil democracia brasileira que a Igreja católica sirva de mediadora para que assentados rurais sejam levados a sério pelo governo. Que democracia é essa que cerca o povo organizado com tropas federais? Enquanto o Incra investiga as contas do MST, latifundiários e usineiros gabam-se de não pagar impostos ou terem suas dívidas jogadas para debaixo do tapete. A voz dos pobres da América Latina e do Caribe ressoará, de novo, em Nova Iorque, junto à ONU, a 12 de outubro, dia do Grito dos Excluídos do Continente. E, em janeiro, Porto Alegre abrigará o Fórum Social Mundial, que fará um diagnóstico dos países subdesenvolvidos, enquanto em Davos os ricos do mundo estarão debatendo como superar a marca olímpica de 20% de aumento de suas fortunas, alcançada nos últimos doze meses. Frei Betto, escritor, é assessor de movimentos pastorais e populares, membro do conselho consultivo do Centro pela Justiça Global e autor de "Hotel Brasil" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/105176
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