Antes e depois de Seattle
13/12/2000
- Opinión
Faz apenas um ano que se realizaram as manifestações de Seattle
e no entanto mudou tanto o clima internacional, que é preciso
nos darmos conta exatamente de onde estamos, tanto para não
acreditar que tudo mudou, quanto para percebermos em que altura
estamos do caminho de superação do neoliberalismo.
Antes de Seattle
As transformações regressivas ocorridas no mundo entre a crise
de 1973 e Seattle representam os pontos de ascensão e
consolidação do novo liberalismo no mundo. Aquele momento era a
virada do mais profundo ciclo longo expansivo da história do
capitalismo ao ciclo recessivo, do qual ainda não sai. De alguma
forma a reaparição e nova hegemonia ligeral representa uma
reação ao que se cristaliava naquele momento em escala mundial.
Por um lado, uma reação ideológica, que foi o primeiro passo
para tudo o que aconteceu depois: o diagnóstico de que a crise
que havia chegado era produto da regulação econômica, com todos
seus elementos - força dos sindicatos, encarecimento da mão-de-
obra, excessiva capacidade de articulação de setores da
periferia capitalista. Esse diagnóstico ensejou a ofensiva
ideológica, que mudou de forma rápida e radical o panorama
mundial, a partir das fórulas de desregulação econômica e todos
os seus avatares - privatização, abertura econômica ao mercado
internacional, estreitamento das funções e ações do Estado, com
a correspondente projeçào do liberalismo - especialmente
financeiro e comercial - e das grandes corporações, como os
sujeitos do processo econômico.
Combinando a recessão com a proposta de reacomodação das
condições de acumulação - "terceirização", reengenharia,
flexibilização laboral, toyotismo - se produziu uma nova
correlação de forças entre as classes sociais - condição
essencial do novo panorama histórico, que teve vigência nas duas
últimas décadas do século XX. O capitalismo se recompôs, num
patamar claramente mais baixo - como toda saída de crise -, mas
principalmente com um novo projeto hegemônico, cristalizado na
ideologia neoliberal e as novas condições de acumulação e de
relação entre as classes, assim como do Estado com o mercado e
das economias nacionais com o mercado internacional.
O triunfo da ideologia liberal, nas condições do capitalismo do
fim do século, privilegiou o crescimento dos países que mais
rapidamente puderam impôr a flexibilização laboral e a
correspondente super-exploração dos trabalhadores. Elevaram
substancialmente as taxas de exploração e de lucro, ao mesmo
tempo em que acentuaram a fratura entre a alta e a baixa esfera
do consumo, concentrando renda de maneira funcional ao processo
concentrador de acumulação de capital. Essas condições ganharam
realidade de forma particularmente propícia nos EUA, depois que
eles se recuperaram da crise do fordismo e se recompuseram para
aprovetar as inovações da organização do processo produtivo e,
mediante uma política econômica dirigida a reconquistar espaços
no mercado internacional mediante a devalorização do dólar,
acelerar suas importações de mercadorias a preços baratos -
particuarlemente da China - e atrair capitais - particularmente
japoneses - para suprir seu gigantesco déficit comercial. Sua
economia interna, enquanto isso, foi se dirigindo seletivasmente
para ramos de ponta e, maciçamente, para o setor de serviços -
espaço privilegiado da informalidade e do trabalho precária.
A Inglaterra - com Thatcher secundando a Reagan - seguiu esses
passos, assumindo-se como potência de segunda categoria em
termos produtivos, vendendo sua mão-de-obra barateada pelo
ofensiva neo-liberal, desindustrializando-se - se terminou a
indústria automobilística inglesa - e voltando esforços para a
City londrina, correlato da expansão da especulação financeira
internacional. Os outros países da Europa, assim como o Japão,
ficara, para trás, por trilhar mais lentamente esse caminho,
devido a configurações de classe mais rígidas ou a maiores
dificuldades para constgruir neoliberalismos de linha dura como
os norte-americano e inglês - espécies de processos de
acumulação primitiva da hegemonia neoliberal.
Esses processos tiveram seu período de instalação - que supôs a
dureza dos mecanismos de acumulação primitiva -, com ênfase
especial em quebrar a resistência do movimento operário
organizado, em que as greves dos operários do carvão na
Inglaterra, dos trabalhadores da Fiat na Itália e dos
controladores aéreos nos EU, derrotadas cada uma delas, para
tornar-se símbolos da vida na luta de classes nesses países e
soar o alarme que a nova disposição de endurecimento das classes
dominantes dava resultados, tarefa que correspondeu às forças e
governantes com visões mais ortodoxas do liberalismo, em geral
provenientes da direita tradicional, agora em versões mais
ideologizadas e radicalizadas, assentadas no fundamentalismo de
mercado.
Os resultados não se fizeram esperar, tanto no novo ciclo
expansivo das economias dos EUA e da Inglaterra - insuficientes
no entanto para superar o ciclo longo recessivo geral do
capitalismo - quanto no debilitamento da capacidade de luta do
movimento operário organizado. Retomada do crescimento econômico
em setores tradicionais - como a indústria automobilística
norte-americana -, junto com o desenvolvimento de novos ramos de
ponta - de que a informática se tornou o símbolo -, expansão
desmesurada do setor de serviços, ao lado de aumento da
disponibilidade de mão-de-obra, seja pelo desemprego, resultante
dos remanejos no processo produtivo, seja pela elevação
acentuada dos trabalhadores imigrantes, conforme a periferia
capitalista entrou abertamente em recessão.
Instalou-se uma nova correlação de forças entre as classes,
tanto no plano geral quanto em cada país em particular, com
diferenças de menor monta, conforme o capitalismo logrou
estender os limites do mercado através da desregulação, que
impôs um novo ciclo e internacionalização do capital. O mercado
financeiro comandou essa interncionaliaação, mas foi acompanhado
pela intensificação dos inercâmbios entre as grandes corporações
multinacionais no plano dos investimentos e da tecnologia, assim
como um mercado de mão-de-obra, nos limites do interesse dessas
grandes corporações.
Desemprêgo estrutural onde tinha havido pleno emprêgo,
informalização, terceirização, trabalho precário, ao lado de
política dura de enfrentamento com movimentos grevistas - foram
os elos mais importantes dessa virada, ao lado da bem sucedida
campanha ideológica de reindividualização, acompanhada da
extensão do consumismo e do boom editorial da reengenharia e da
"auto-ajuda". Quebrou-se o consenso favorável às soluções
coletivas dos problemas da sociedade, enquanto se abriam
caminhos seletivos de ascensão nas novas formas de organização
da economia - com forte peso da informática e da propaganda em
torno " nova economia" - guiada pela informática e "sem crises".
Baixa acentuada do nível de sindicalização, forte diminuição da
ocorrência de greves, enfraquecimento da capacidade
reivindicativa dos sindicatos, preponderância da defesa do
emprego em detrimento da melhoria salarial ou da redução da
jornada de trabalho - em suma, defensiva aberta e ampla por
parte do movimento sindical em praticamente todas as regiões do
mundo.
A hegemonia do capital financeiro, promovida pela elevação da
taxa de juros acima da taxa de lucros e pelos processos de
desregulação, por sua vez, impôs novas formas de reprodução
social favoráveis à acumulação especulativa, com reflexos
negativos diretos sobre o processo produtivo, sobre os níveis de
desenvolvimento econômico, sobre o nível de emprego, sobre a
financeirização dos Estados e das empresas e sobre a vida
econômica e social no seu conjunto.
No entanto, as maiores transformações regressivas se deram no
plano ideológico, de forma conexa com as modificações no
processo de reprodução material da sociedade e de seus agentes
sociais. Conforme o capitalismo estende e completa seu processo
de mercantilização do mundo inteiro, se desenvolve e se arraiga
a ideologia individualista correspponde às relações de mercado,
em que a o destino de cada um é obra de cada um, acomodando-se à
circunstância que tudo se torna mercadoria, inclusive os seres
humanos. Esse processo sem precedentes por sua extensão e
profundidade - porque se dá correlatamente com o enfraquecimento
das formas de construção de sujeitos coletivos, seja no plano
organizativo, seja político e do próprio conhecimento -
sobedeterminato todas as relações sociais, incluidas a luta
política e a ideológica. É como se o mundo se reconstituisse a
partir dos indivíduos como mônadas - o sonho utópico do
liberalismo econômico.
Seattle
Seattle acontece como uma espécie de velha toupeira, que de
repente, depois de uma acumulação quase subterrânea de forças,
irrompeà superfície, ao mesmo tempo como resultado previsível de
desdobramentos anteriores, mas também como expressão
surpreendente - pela forma pelo lugar, pelo momento - dessas
tendências. Não foi surpreendente que Seattle acontecesse, pelo
mal-estar acumulado nas duas décadas anteriores que, sem espaço
para se manifestar - seja pelo debilitamento das organizações
que pudessem expressa-lo, seja pelo deslocamento ideológico dos
debates para temas financeiros ou outros, que conseguiram
canalizar a atenção e as energias do espaço público e discussão,
no lugar de outros, que subterraneamente foram buscando os
espaços de menor resistência para fazer-se presentes. Foi
supreendente que tivesse demorado a faze-lo e que finalmente se
tivesse dado na forma em que se deu.
Seattle foi uma convergencia de múltiplas reivindicações, a
ponto de que publicações da grand imprensa tentaram reduzi-las a
um mosaico desconexo de demandas, reunidas pelo descontentamento
dos marginalizados pelos avanços da globalização, mas incoerents
entre si. Certamente os exemplos mais utilizados têm a ver com
as contradições entre a defesa dos empregos dos trabalhadores
norte-americanos pelos sindicatos daquele país - que
explicitamente se contradizem com o deslocamento de capitais
para países da periferia capitalista, de que o México, a Índia,
a Indonésia e a China, são apenas alguns grandes exemplos, para
superexplorr mão-de-obra dezenas de vezes mais barata que a dos
EUA - e a luta contra o desemprego nesses países.
Dentre suas maiiores conquistas, as manifestações desde Seattle
conseguiram, por um lado, quebrar a apatia política, um certo
conformismo sobre a onipotência da tecnocracia internacional
para decidir sobre os destinos da humanidade. A idéia de que se
pode pelo menos questionar e até mesmo bloquear a capacidade de
decisão dessa tecnocracia e de seus organismos. Essas
manifestações serviram igualmente para apontar os adversários
centrais da diversidade de reivindicações - a OMC, o FMI, o
Banco Mundial - como reprsentantes da ordem vigente no mundo
atualmente.
Por outro lado, se conseguiu deslocar os temas em debate, da
alternativa entre mairo ou menor liberalização do comércio para
as consequencias sociais do modelo econômico vigente e para a
necessidade da sua substituição. Essa mudança fez com que as
próprias reuniões daqueles organismos tivessem que se debruçar
sobre essa nova agenda - embora superficialmente - e deixando de
seguir sua proópria agenda.
A nível nacional, as manifestações permitem recuperar dinamismo
e capacidade de atração em vários países, a começar pelos
europeus - onde a esquerda havia chegado a seu nível baixo de
sua história - e nos Estados Unidos. Elas permitiram, ao mesmo
tempo, recuperar a dimensão internacional da luta atual,
questionando as versões - como a de Samuel Huntington - de que o
questionamento da ordem mundial atual se fazia apenas por
setores de funamentalismo nacionalista e religioso. Um novo elo
de solidariedade começa a surgir, permitir visulumbrar o
potencial de um novo projeto hegemônico.
Ess mudança do clima internacional representa o avanço mais
significativo a partir de Seattle. No entanto, essa força social
e ideológtica acumulada ainda não se traduziu em força política,
que permita começar concretamente a frear, reverter e modificar
a hegemonia concreta do neoliberalismo, seja nos fluxos
econômicos mundiais, seja na ideologia cotidiana da grande
maioria da população mundial. Esta fraqueza se revela,
concretamente, na ausência ainda de governos de países de peso
mundial que se oponham diretamente ao discurso e à prática
neoliberal e comecem concrtetamente a construir políticas
nacionais e um bloco de forças internacional que comece a pôr em
prática uma ordem mundial qualititativamente diferente.
Isto só pode se dar quando se obtiver vitórias a nível nacional,
que é o espaço em que necessariamente se dão as lutas
políticas, onde é possível diretamente começar a romper com a
cadeia de imposiçào da hegemonia neoliberal. Nesse sentido se
percebe que, embora muito ativos os setores que se mobilizaram a
partir de Seattle, são ainda minoritários, agregando setores de
partidos ou partidos menores, que porém ainda não lograram se
constituir em forças hegemônicas a nível nacional.
Se essas forças tem que conseguir vitórias a nível nacional, ao
mesmo tempo a concretização de políticas de ruptura e superação
da atual ordem econômica só podem ser dar a nível internacional.
Daí a necessária articulação entre os dois planos, sem o que os
avanços internacionais não conseguirão desembocar em força
política ou esta, conseguida no plano interno, ficarão
bloqueadas para pôr em prática políticas concretas de negação e
superação dos marcos neoliberais.
Depois de Seattle
Depois de Seattle, o movimento de questionamento e superação do
neoliberalismo se encontra em fase de, ao mesmo tempo, ampliação
dos setores sociais mobilizados e de formualação de plataformas,
políticas e estratégias concretas de ação. O Forum Social
Mundial de Porto Alegre é o primeiro momento de reunião do maior
leque possível das forças sociais mobilizadas para buscar eixos
centrais de uma hegemonia alternativa.
Essa busca tem no questionamento da mais extensa mercantilização
do mundo, realizada pelo capitalismo em sua fase neoliberal, seu
eixo central de articulação, que unifica tanto a sindicialistas,
quanto a ecologistas, feministas e todo o conjunto de forças que
expressam o ma-estar da virada do século contra o domínio do
capital. A formulação de um projeto de sociedade centrado no
direito ao trabalho, no atendimento às necessidades básicas do
conjunto da humanidade, na combinação entre a liberdade
individual e a ação coletiva, entre a representação plural do
ponto de vista social, político e cultural em todas as formas de
exercício de poder, na solidariedade internacional - pode
apontar para a formulação de um projeto de reorganização da vida
da humanidade em bases cooperativas, solidárias, humanistas.
Isso requer, antes de tudo, um diagnóstico claro a respeito da
natureza e das relações de poder atualmente existentes no mundo,
para deduzir as forças com que se pode contar na luta, assim
como para buscar as alianças necessárias e, especialmente para
ter consciência da força do inimigo e dos obstáculos a
enfrentar. Qualquer avaliação que subestime o tamanho do
retrocesso na relação de forças mundial e, em particular, no
abismo introduzido entre o destino dos países centrais do
capitalismo e os da periferia, pode cair em visões simplistas e
idealizadas dos caminhos a trilhar para a quebra da hegemonia
neoliberal e a construção de uma nova ordem mundial.
Nesse sentido, os avanços desde Seattle são fundamentais por
colocar elos de novas formas não apenas de solidariedade, mas
principalmente de articulação de interesses econômicos, sociais,
culturais e políticos concretos que recompomnham uma força
internacional à altura de se enfrentar ao bloco de forças
dominantes hoje no mundo.
https://www.alainet.org/es/node/105214?language=en
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