Rumo ao futuro Papa

06/07/2001
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João Paulo II está doente, vítima da síndrome de Parkinson, alquebrado fisicamente, embora lúcido e disposto a cumprir sua estafante agenda de viagens apostólicas. O cardeal alemão Karl Lehmann, presidente da conferência episcopal de seu país, chegou a sugerir a renúncia do papa. Aos 81 anos, o primeiro papa polonês não logra ocultar seu conflito mais íntimo: o descompasso entre o corpo e a mente. Atropelado por um caminhão na juventude, Karol Wojtyla levou um tiro em 1981 e quebrou o fêmur, num queda no banheiro, em 1994. Com o peso da idade, ele ressente a seqüelas que seu corpo carrega. A mente e o espírito, entretanto, não demonstram o menor sinal de fadiga, malgrado o tom pausado de sua voz. Poliglota, sua memória não o trai. Num almoço com cardeais de várias países, no qual nunca falta vinho, ele é capaz de passar do italiano ao francês, do inglês ao espanhol, com a mesma facilidade com que domina o polonês e o alemão. Nos séculos passados, se um papa adoecia a ponto de não mais poder governar a Igreja, a Cúria Romana cuidava para que tudo transcorresse como se fossem meros boatos os comentários sobre o estado de saúde do pontífice. Depois que Paulo VI libertou o papado da secular condição de "prisioneiro do Vaticano", já não se pode esconder do público a verdade sobre o papa. No dia em que João Paulo II cancelar as viagens programadas, todos nós saberemos que a fragilidade de seu corpo venceu-lhe o ímpeto de mobilidade. Renúncia Pode um papa renunciar? Investido do sagrado poder que lhe imprime o cargo de sucessor de Pedro e o dogma da infalibilidade papal em questões de fé e moral, o papa pode quase tudo que concerne à vida interna da Igreja. Inclusive modificar ou simplesmente ignorar a legislação canônica vigente. Ou não aplicar ao bispo de Roma leis que decretou para o colégio episcopal da Igreja. Saudável ou enfermo, o papa ocupa a função de Soberano Pontífice até morrer. Nada impede, entretanto, que decida renunciar, como ocorreu a quase uma dezena de seus antecessores. O caso mais conhecido é o de Celestino V. Após quatro meses de pontificado, entre agosto e dezembro de 1294, entregou o Anel de Pescador, por não suportar a politicagem eclesiástica, e retornou às montanhas onde vivia como eremita. Inconformado, Dante o colocou no inferno. Mais tolerante, a Igreja o elevou aos altares, canonizando-o como santo, exemplo frente a mais tentadora cobiça humana: o poder. Obrigados a renunciar aos 75 anos, os bispos permanecem à frente de suas dioceses até que o Vaticano acate a renúncia e nomeie seus sucessores. No Brasil, a renúncia do arcebispo de São Paulo, o cardeal Paulo Evaristo Arns, que completou a idade-limite em 1996, foi prontamente aceita por Roma. No ano anterior, o cardeal Eugenio Sales também apresentou a sua renúncia, mas - por motivos que só Deus e o Vaticano conhecem - aos 80 anos ele prossegue à frente da arquidiocese do Rio de Janeiro. Em caso de doença grave, o papa tem o direito de delegar parcela de sua autoridade ao Secretário de Estado do Vaticano ou a um outro cardeal. Caso entre em coma prolongado, sem que haja assinado delegação prévia, a Cúria Romana simplesmente tomará em mãos as rédeas da Igreja, exceto prerrogativas exclusivas do papa, como nomear novos bispos e aprovar documentos importantes. Se o coma prolonga-se por mais de um ano, é possível que o Colégio dos Cardeais interfira junto à Cúria para estabelecerem normas ao período de exceção. O direito eclesiástico não prevê nenhum procedimento canônico para afastar um papa com visíveis sinais de demência ou loucura. Outrora, caso semelhante poderia ser resolvido com a reclusão do papa em seus aposentos vaticanos, sem que os fiéis se dessem conta. Hoje, basta o papa não aparecer numa audiência pública das quartas-feiras para a mídia entupir seus canais com as mais disparatadas especulações. Quem toma a decisão de afastar um papa demente? Não se sabe. E um precedente faz pairar a sua sombra sobre aqueles que, junto ao papa, se sentem mais responsáveis por assegurar a unidade da Igreja católica: o caso Urbano VI (1378-1389). Com notórios sintomas de perturbação mental após ser eleito papa, Urbano VI viu-se cercado de cardeais e bispos, reis e príncipes, divididos entre a disposição de apoiá-lo ou destituí-lo. O resultado foi o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417). A falta de previsão canônica para eventualidade tão grave também divide, hoje, os teólogos. Uns confiam no Espírito Santo, capaz de proteger a Igreja de tão incômodo cenário; outros julgam que a imprevidência não se coaduna com a prudência, uma das quatro virtudes cardeais. Morte do papa Morto o papa, o primeiro a constatá-lo informa ao prefeito da Casa Pontifícia que, por sua vez, convoca o cardeal-carmelengo (mordomo), responsável pela comprovação do falecimento. O carmelengo notifica ao cardeal-vigário de Roma, que comunica aos fiéis da diocese papal. O prefeito da Casa Pontifícia incumbe-se de dar a notícia ao decano do Colégio dos Cardeais, que faz saber a seus pares, aos embaixadores creditados junto à Santa Sé e aos chefes de Estado. Antes que o processo chegue a cabo, a Rádio Vaticana divulga a notícia, ainda que de forma indireta, como a alteração repentina de sua programação. Dizem os vaticanistas que, no menor Estado do mundo (44 ha) nada se fala, mas tudo se sabeŠ O cadáver do pontífice não pode ser autopsiado, o que dá margem, em caso de morte súbita, a todo tipo de conjecturas, como ocorreu com João Paulo I. Estou convencido, graças a fontes autorizadas que não podem vir à lume, que o papa Sorriso não foi assassinado. Morreu em conseqüência de embolia cardíaca, após atribulado jantar, no qual demonstrou ao cardeal Sebastião Baggio, então presidente da Congregação dos Bispos, sua disposição de demitir um cardeal dos EUA acusado de corrupção. Baggio opôs-se tenazmente aos argumentos papais, alegando que a Igreja não deveria abrir um precedente, sob pena de, amanhã, dar ouvidos ao que a mídia diria de outros cardeaisŠ Antes de deitar-se, João Paulo I, afogueado pela taquicardia, telefonou a um outro cardeal italiano, seu amigo, para desabafar. Pouco depois, seu coração parou. Conclave Declarado morto o papa, o governo da Igreja passa automaticamente às mãos do Colégio dos Cardeais, segundo regras redefinidas por João Paulo II, em 1996, no documento "Universi Dominici Gregis". Logo que os cardeais chegam a Roma, este documento é lido, bem como o testamento do papa, que prescreve suas instruções quanto aos funerais. Sob juramento, os prelados ficam obrigados ao sigilo. Nada impede, por exemplo, que João Paulo II queira ser enterrado na Polônia. Todos os cardeais da Cúria Romana, inclusive o Secretário de Estado, que equivale à função de primeiro-ministro, são compulsoriamente demitidos com a morte do papa. Só três permanecem em suas atuais funções: o carmelengo, responsável pela transição e eleição do novo pontífice; o penitenciário-mor, pois deve ser mantida aberta a porta do perdão dos pecados reservados à Santa Sé; e o vigário da diocese de Roma. O carmelengo destrói o Anel do Pescador e a matriz utilizada no lacre das cartas pontifícias. Lacra os aposentos papais e ordena os funerais de acordo com as instruções deixadas pelo falecido. Ouvido o Colégio dos Cardeais, cuida da preparação do conclave (que significa "fechado a chave"), que elegerá o novo papa. Os poderes do colégio cardinalício, na fase transitória, são limitados. Não pode, por exemplo, modificar as regras que regem a eleição papal, nomear novos cardeais (os eleitores) ou tomar qualquer decisão que possa a vir a constranger a autoridade do futuro pontífice. A Capela Sistina é preparada para o conclave. As visitas turísticas são suspensas e uma equipe de segurança vasculha cada detalhe à procura de dispositivos eletrônicos. São convocados à reclusão os cardeais que ainda não tenham completado 80 anos dois dias antes do conclave. Até a eleição de Karol Wojtyla, ficavam todos alojados no Palácio Apostólico, cujas dependências são desconfortáveis para um grande número de hóspedes. Os quartos precisavam ser dividos por tabiques e os sanitários, compartidos. João Paulo II autorizou o investimento de US$ 20 milhões na construção da Domus Sanctae Marthae, hospedaria para funcionários do Vaticano e visitantes eclesiásticos, próxima à Capela Sistina. A ocupação de suas 108 suítes e 23 quartos individuais, todos com banheiros privativos, será feita por sorteio. O início do conclave ocorre cerca de dez ou quinze dias após o enterro do papa, tempo suficiente para que todos os cardeais cheguem a Roma. Em 1922, na eleição de Pio XI, cardeais da América do Norte e do Sul perderam o conclave porque os navios não atracaram a tempo. Hoje, as viagens aéreas tornam tudo mais fácil. Se um cardeal atrasar-se, terá direito de entrar no conclave e participar da eleição. Uma vez lá dentro, nenhum deles poderá sair, até que o novo pontífice esteja escolhido, exceto em caso de doença grave e após consenso da maioria de seus pares. Ingressam no conclave, junto com os cardeais-eleitores, o secretário do Colégio dos Cardeais; o mestre das liturgias papais, acompanhado por dois mestres de cerimônia e dois religiosos da sacristia papal; um assistente para o cardeal decano; uns poucos religiosos de diferentes idiomas, para atuar como confessores; dois médicos; e o pessoal do serviço de cozinha e limpeza, em geral freiras. Nenhum cardeal pode trazer assistente pessoal, exceto médico particular em caso de doença grave. Nada de jornais, TV, rádio ou aparelhos de gravação de som ou imagem. É mantida apenas uma linha telefônica, de uso do carmelengo em caso de emergência. Só três cardeais têm direito a contatar seus escritórios: o penitenciário- mor; o vigário da diocese de Roma; e o pároco da basílica de São Pedro. As normas da Igreja proíbem conchavos e articulações eleitorais antes do conclave. Isso remonta ao papa Félix IV (526-530), que pressionou o clero e o senado romanos a elegerem, como seu sucessor, Bonifácio, seu arcediago. Os senadores promulgaram um edito vetando qualquer discussão sobre a eleição do futuro papa enquanto o atual estiver vivo. Setenta e sete anos depois, Bonifácio III (607) proibiu, sob pena de excomunhão, qualquer debate eleitoral até o terceiro dia após o falecimento do pontífice. A precaução visava evitar a disputa entre correntes políticas e, sobretudo, a interferência do poder civil no conclave. Ninguém ignora, entretanto, que as conversas privativas crescem na proporção em que o papa demonstra debilitar em seu estado de saúde. Futuro papa Ainda que João Paulo II governe a Igreja por mais uma década, a função que ocupa é demasiadamente importante, mesmo para os não- católicos, para assegurar completo silêncio a respeito de seu sucessor. A rigor, qualquer católico do sexo masculino é virtual candidato e poderá vir a calçar as sandálias do Pescador, mesmo um leigo. Se eleito, primeiro será imediatamente ordenado padre e bispo, como ocorreu com João XIX (eleito em 1024) e Benedito IX (eleito em 1032). O perfil do futuro papa já começa a ser desenhado nos bastidores da Igreja católica: um cardeal fiel à ortodoxia católica; capaz de relacionar-se sem constrangimento com os meios de comunicação e o grande público; não tão idoso, que exija para breve outro conclave, nem tão jovem, que perdure por longas décadas; saiba mais de dois ou três idiomas, sobretudo o italiano; esteja aberto ao diálogo inter- religioso; e que preserve a independente política externa do Vaticano frente às pressões dos países mais ricos. Quem será ele? Por enquanto, só mesmo o Espírito Santo é capaz de responder.
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