Gritos de independência
06/09/2005
- Opinión
Comemora-se, nesta semana, a independência do Brasil. Consta que não houve
sangue, apenas o grito do Ipiranga, que marcou a ruptura com a tutela
portuguesa, mantendo no poder o português D. Pedro I, que se proclamou
imperador do Brasil, mas terminou seus dias como Duque de Bragança e
figura, na relação dinástica, como o 28º rei de Portugal. Como se vê, na
passarela da história, o samba não é o do crioulo doido.
Entre o fato e a versão do fato, a história oficial tende à segunda. Ainda
hoje se discute se o grito decorreu do sonho de uma pátria independente ou
da ambição de um império tropical. Ficou o grito parado no ar, expresso nos
rostos contorcidos das figuras de Portinari, no romanceiro de Cecília
Meireles, na poesia agônica de Chico Buarque, no coração desolado das mães
brasileiras que enterram, por ano, cerca de trezentos mil recém-nascidos,
precocemente tragados pelos recursos que faltam à área social. O número só
não é maior graças ao voluntariado da Pastoral da Criança, monitorada pela
doutora Zilda Arns.
O Brasil, pátria vegetal, ostenta o semblante de uma cordialidade renegada
por sua história. Sob o grito da independência ressoam os dos índios
trucidados pela empresa colonizadora, agora restaurada pela assepsia étnica
proposta pelos integracionistas que julgam as reservas indígenas privilégio
nababesco. Ecoam também os gritos das vítimas indefesas de entradas e
bandeiras, Fernão Dias sacrificando o próprio filho em troca de um punhado
de pedras preciosas, bandeirantes travestidos de heróis da pátria pelo
relato histórico dos brancos, versão barroca do esquadrão da morte rural,
diriam os índios se figurassem como autores em nossa historiografia.
Abafam-se, em vão, os gritos arrancados à chibata dos negros arrastados de
além-mar, sem contar as revoltas populares que minam o mito de uma pacífica
abnegação que só existe no ufanismo de uma elite que se perfuma quando vai
à caça.
Pátria armada de preconceitos arraigados, casa-grande que traça os limites
intransponíveis da senzala, na pendular política de períodos autoritários
alternados com períodos de democracia tutelar, já que, neste país, a coisa
pública é negócio privado. Índios, negros, mulheres, lavradores e operários
não merecem a cidadania, reza a prática daqueles que sequer se envergonham
de serem compatriotas de 50 milhões de pessoas que não dispõem de R$ 80
mensais para adquirir a cesta básica.
À galera, as tripas, marca indelével em nossa culinária, como a feijoada.
Privatizam-se empresas e sonhos, valores e sentimentos, convocando
intelectuais de aparência progressista para dar um toque de modernidade aos
velhos e permanentes projetos da oligarquia. Vale tudo frente ao horror de
um Brasil sujeito a reformas estruturais. Os que querem governar a
sociedade não suportam os que querem governar com a sociedade.
Destroçada e endividada, a pátria navega a reboque do receituário
neoliberal, que dilata a favelização, o desemprego, o poder paralelo do
narcotráfico, a concentração de renda. Se o salário não paga a vida, a vida
parece não valer um salário. No Brasil, os hospitais estão doentes, a saúde
encontra-se em estado terminal, a escola gazeteia, o sistema previdenciário
associa-se ao funerário e a esperança se reduz a um novo par de tênis, um
emprego qualquer, alçar a fantasia pelo consolo eletrônico das telenovelas.
Amanhecia em Copacabana quando Antônio Maria gritou: "Não sei por onde vou,
mas sei que não vou por aí". Não vou pelas receitas monetaristas que salvam
o Tesouro oficial e apressam a morte dos pobres. Vou com aqueles que sempre
denunciam a injustiça, testemunham a ética na política, agem com
escrúpulos, defendem os direitos indígenas, repudiam todas as formas de
preconceitos, promovem campanhas de combate à fome, administram recursos
públicos com probidade e lutam por uma nova política econômica. Vou com
aqueles que, nesta semana, estarão mobilizados no Grito dos Excluídos,
promovido pela CNBB, em parceria com entidades e movimentos populares.
Nenhum país será independente se, primeiro, não o forem aqueles que o
governam.
https://www.alainet.org/es/node/105285
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