Percepções

25/08/2001
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
Há momentos em que se experimenta uma profunda felicidade. Não, não é o prazer da carne gorda pingando fervente sobre as brasas da churrasqueira ou dos elogios evasivos que inflam o ego. Nem o toque ávido na pele opaca que traz à tona o que se possui de mais atávico, soltando feras e demônios que habitam os subterrâneos da sexualidade sem que, no entanto, haja transparência de espíritos. Morder a picanha púrpura pode aplacar o paladar e intoxicar o organismo, assim como o ego dilatado provoca altivez, quebrando o frágil limite entre a consciência-de-si e a vaidade ridícula. O parceiro ou a parceira tocado pode estar tão distante e estranho como um suposto habitante de Plutão. Apalpa-se sem que se consiga pegar; fala-se sem que se possa fazer compreender; olha-se sem que se chegue a enxergar; rompe-se, nesse apetite incontrolável pela carne farta, sob a tirania do ego, a tênue barreira que separa céu e inferno. A felicidade é como o traço exato de um Picasso. Não excede e é tão sutil quanto universal. Encontra-se no cálice frio, na língua umedecida pelo vinho encorpado, o olhar estrelado a desfrutar quimeras, o gesto suave torneando o silêncio, numa dessas noites em que o encontro do outro é sobretudo o encontro mais veraz consigo mesmo. Um momento que não deveria terminar jamais, porque ali, sobre a mesa do bar, caiu um pedaço do céu. Ah, como todos segredam a si mesmos essa irresistível vocação à loucura! A racionalidade, com seus alicerces marmóreos e suas escadas de pedra, sustentadas por grossas colunas em capitel, escraviza como o obsessivo esforço de Sísifo. Muito embora haja quem se sinta inebriado pela complexidade de uma equação de mecânica quântica ou pela lógica inexpugnável de um ardoroso jurista no tribunal. Não há dúvida de que a visão dos mares levou a Grécia a pretender alcançar a linha do horizonte. Mas o Colosso de Rodes ruiu como um castelo de areia. O silêncio é imprescindível à felicidade, ainda que se trabalhe na Bolsa de Valores de S. Paulo ou nas fundações do mais alto edifício a ser erguido. Se o espírito não se encontra recolhido em si mesmo, como o líquido precioso de uma garrafa, ela se esvai como a gota de suor derramada sobre a areia. "Ouça-te a ti mesmo, para poderes se conhecer", poder-se-ia escrever hoje na Academia se ela tivesse sobrevivido a ponto de estabelecer convênios com monges orientais. ara o ritmo acelerado da vida moderna os arautos da paz interior sugerem lagos paradisíacos, bosques verdejantes, praias desertas ao entardecer. Ora, está tudo poluído. Os lagos infestados de mosquitos, os bosques queimados pelo latifúndio, as praias tomadas pelos esgotos. Ainda que o paraíso escapasse de um cartão postal suíço, ele estaria ao alcance somente dos que julgam que a felicidade se compra com dinheiro. Um passeio a Bariloche, um cruzeiro pelas Bahamas, uma excursão a Paris. Os presentes são da melhor qualidade, embora as relações humanas sejam conflitivas, egoístas, rançosas. Há momentos em que se experimenta uma profunda felicidade. Não, não é o prazer da carne gorda pingando fervente sobre as brasas da churrasqueira ou dos elogios evasivos que inflam o ego. Nem o toque ávido na pele opaca que traz à tona o que se possui de mais atávico, soltando feras e demônios que habitam os subterrâneos da sexualidade sem que, no entanto, haja transparência de espíritos. Morder a picanha púrpura pode aplacar o paladar e intoxicar o organismo, assim como o ego dilatado provoca altivez, quebrando o frágil limite entre a consciência-de-si e a vaidade ridícula. O parceiro ou a parceira tocado pode estar tão distante e estranho como um suposto habitante de Plutão. Apalpa-se sem que se consiga pegar; fala-se sem que se possa fazer compreender; olha-se sem que se chegue a enxergar; rompe-se, nesse apetite incontrolável pela carne farta, sob a tirania do ego, a tênue barreira que separa céu e inferno. A felicidade é como o traço exato de um Picasso. Não excede e é tão sutil quanto universal. Encontra-se no cálice frio, na língua umedecida pelo vinho encorpado, o olhar estrelado a desfrutar quimeras, o gesto suave torneando o silêncio, numa dessas noites em que o encontro do outro é sobretudo o encontro mais veraz consigo mesmo. Um momento que não deveria terminar jamais, porque ali, sobre a mesa do bar, caiu um pedaço do céu. Ah, como todos segredam a si mesmos essa irresistível vocação à loucura! A racionalidade, com seus alicerces marmóreos e suas escadas de pedra, sustentadas por grossas colunas em capitel, escraviza como o obsessivo esforço de Sísifo. Muito embora haja quem se sinta inebriado pela complexidade de uma equação de mecânica quântica ou pela lógica inexpugnável de um ardoroso jurista no tribunal. Não há dúvida de que a visão dos mares levou a Grécia a pretender alcançar a linha do horizonte. Mas o Colosso de Rodes ruiu como um castelo de areia. O silêncio é imprescindível à felicidade, ainda que se trabalhe na Bolsa de Valores de S. Paulo ou nas fundações do mais alto edifício a ser erguido. Se o espírito não se encontra recolhido em si mesmo, como o líquido precioso de uma garrafa, ela se esvai como a gota de suor derramada sobre a areia. "Ouça-te a ti mesmo, para poderes se conhecer", poder-se-ia escrever hoje na Academia se ela tivesse sobrevivido a ponto de estabelecer convênios com monges orientais. Para o ritmo acelerado da vida moderna os arautos da paz interior sugerem lagos paradisíacos, bosques verdejantes, praias desertas ao entardecer. Ora, está tudo poluído. Os lagos infestados de mosquitos, os bosques queimados pelo latifúndio, as praias tomadas pelos esgotos. Ainda que o paraíso escapasse de um cartão postal suíço, ele estaria ao alcance somente dos que julgam que a felicidade se compra com dinheiro. Um passeio a Bariloche, um cruzeiro pelas Bahamas, uma excursão a Paris. Os presentes são da melhor qualidade, embora as relações humanas sejam conflitivas, egoístas, rançosas. O segredo é simples: tudo que se procura se esconde atrás do ego. Chegar lá é tão difícil quanto viajar pela Amazônia sem impregnar-se de umidade. No entanto, uma força misteriosa atrai todo ser vivente. Porque todo ser aspira livrar-se do duplo de si mesmo. No âmago da alma reside essa irresistível vontade de escancarar a verdade própria, ainda que sua luz queime olhos alheios. Mas só os loucos o conseguem, pois não arcam com o peso desse intricado labirinto de conveniências sociais, que vão das relações de parentesco às promoções profissionais. Em Assis, em plena praça, o jovem Francisco despiu-se e partiu resoluto ao encontro de si mesmo naquele Outro que o habitava. Mas, hoje, somos invadidos por toda essa gama de coisas estranhas a nós mesmos e que, entretanto, julgamos tão familiares, assim como na guerra os moradores da aldeia acostumam-se com os aviões militares que arranham seus telhados. A vida tem gosto de uva: tão doce, sempre breve e acaroçada, deixa sede. Mesmo quando se mergulha do outro lado de si mesmo, lá onde se encontra a fonte de água viva.
https://www.alainet.org/es/node/105295
Suscribirse a America Latina en Movimiento - RSS