Transfigurar-se

06/08/2001
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Hoje, a liturgia católica celebra a transfiguração de Cristo. No alto do monte Tabor, o rosto de Jesus "mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante" (Lucas 9, 29). Encontrava-se ali em companhia de Pedro, Tiago e João. "Uma nuvem os cobriu com a sua sombra. Dela ressoou uma voz: ŒEste é o meu filho amado". No cume da montanha, a emoção divina transbordou. A declaração de amor ecoou para banir todas as teologias necrófilas que se tecem de lágrimas e tristezas. Apaixonado, Deus "os cobriu". Pai a agasalhar o filho, amado a fecundar a amada, divino e humano fundidos numa só pessoa. O Espírito de Deus levara Jesus ao êxtase. Encontrara ele, afinal, a resposta à indagação que o poeta, séculos depois, lançaria no refrão de um canto: o que será que será? Transfiguram-se os apaixonados, que teimam em cessar os ponteiros do tempo no infinito, e os loucos, ao exibir o lado avesso do inconsciente. Transfiguram-se os poetas ao garimpar palavras, e os que se sabem alcançados pelo perdão. Transfiguram-se os que se perdem embevecidos pelo clarão da lua e quem se despe do pudor de sorrir. Transfigura-se sobretudo o místico, deixando-se povoar por um Outro que não é ele e, no entanto, desborda-lhe a verdadeira identidade. Então, a semente explode em fruto, a porta em caminho, o gesto em carícia. A radical vocação do ser humano é transfigurar-se. Superar a própria figura ­ o peso narcísico do ego, o apego aos bens finitos, o reflexo ilusório de si no jogo de espelhos que lhe deturpa o perfil, seduzindo-o a ser o que não é. Lamento agônico de Fernando Pessoa: "Fui o que não sou". Nas vias da transfiguração reinam as trevas cantadas por João da Cruz: "Oh noite que juntaste / Amado com amada / amada já no Amado transformada". Eco da exclamação paulina, séculos antes: "Já não sou eu que vivo, é Cristo quem vive em mim". Quem não centra o desejo para dentro de si tateia, em vão, na busca insaciável de derivativos. Há o que dilata a consciência, mas não o coração. Mina a auto-estima de quem se sabe encerrado num cárcere sem o lado de fora. O consumismo reificador a incendiar a vaidade em chamas de celofane. O poder a inebriar quem adora brincar de Deus e sonega a alteridade arrancando da manga o valete da superioridade. Transfigurar-se é ascender a ladeira íngreme do Tabor até mergulhar a cabeça na nuvem do não-saber. É um aspirar sem querer, acreditar sem ver, esperar sem ter, dar-se sem possuir. É reduzir todos os pontos cardeais do ego ao seu núcleo central: o amor. Orar, não como quem repete incessantes palavras, como se Deus fosse surdo. Mas como quem ouve o silêncio, apalpa o mistério, abre-se à paixão divina, que nunca nos é negada. Transfigurado, Jesus entrou em sintonia com Moisés e Elias. Reatou os fios que unem passado e presente, velho e novo, profecia e evento, promessa e epifania. Sarça ardente, cavalos de fogo e a ternura materna de um Pai manifestada ao filho dileto ­ cacos de um vitral diáfano. Pedro, João e Tiago não queriam afastar-se dali. Propuseram armar tendas, como amantes que teimam em não abandonar o leito onde a volúpia do espírito explode na liturgia dos corpos. Jesus, porém, convenceu-os de que inebriar-se de Deus não é um luxo espiritual. Nem a recompensa meritória a uma vida pautada pela mais rigorosa moral. Deus não é um prêmio a ser entregue a uns poucos eleitos. É uma dádiva, abundante como a mais torrencial tempestade. Para encharcar-se dela é preciso "descer" até o próximo, pois falso é o amor que não faz o outro sentir-se amado.
https://www.alainet.org/es/node/105298
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