Geopolítica da vingança

25/09/2001
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Em estado de choque ? pelos seus mortos e pela súbita descoberta de sua vulnerabilidade ?, os Estados Unidos desejam uma retaliação imediata, de caráter militar, e vão levá-la adiante, ao arrepio de normas e leis. É ingênuo, no entanto, imaginar que uma operação de tamanho porte, como a que está em marcha, obedeça apenas a impulsos emocionais e seja desencadeada sem que tenha relação com metas estratégicas muito bem definidas. O Estado americano acumulou extraordinário poder nos dois últimos séculos exatamente por sua capacidade de nunca perder de vista objetivos de longo prazo, articulados entre si, subordinando a eles cada decisão relevante. O ataque maciço que se prepara contra o Afeganistão é um aparente non sense. Os Estados Unidos não apresentaram nenhuma evidência de que os afegãos tenham relação com os atentados, e a acusação contra bin Laden foi feita de forma propositalmente vaga e inconsistente, de modo a tornar impossível que o Talebã aceitasse extraditá-lo. A decisão de atacar, claramente, já havia sido tomada. Para as autoridades americanas, dada a gravidade do crime, submeter uma pessoa (ou um grupo) a julgamento, meses a fio, seguindo os procedimentos formais, seria uma resposta civilizada, mas fraca. O mais intrigante, porém, é que à primeira vista o Afeganistão parece ser um péssimo alvo. Chegar em seu território, longe do mar, já é uma encrenca. Combater lá é uma encrenca muito maior. Sua topografia é montanhosa. Suas estradas são poucas e péssimas. Sua população está dispersa no meio rural. Ao contrário do Iraque e da Sérvia, o país não possui infra-estruturas fixas e instalações produtivas que mereçam ser bombardeadas com mísseis que custam US$ 200 milhões. Quanto às anunciadas operações de comando, os generais americanos não são imbecis para acreditar que rapazes recrutados na Califórnia encontrem bin Laden nos grotões de um país hostil em que a metade da população usa barba e turbante, enquanto a outra metade anda com o rosto coberto. Coisas assim só funcionam bem no cinema. A resposta a esse enredo confuso pode ser rastreada. Por seu potencial e suas dificuldades, a Ásia é a grande incógnita do sistema-mundo nas próximas décadas. De um lado, tem a segunda maior economia nacional (o Japão), a potência emergente (a China), grandes massas demográficas dotadas de alta laboriosidade, elevado dinamismo tecnológico, experiências de desenvolvimento rápido, empresas e bancos de grande porte, Estados nacionais ciosos de sua independência, capacidade militar (e nuclear) ascendente. Por tudo isso, será uma jogadora de grande peso no século que se inicia. Mas também tem problemas imensos: está longe de criar uma área econômica ou politicamente integrada, abriga grandes populações em estado de pobreza, permanece dividida por um sem-número de contenciosos de todos os tipos. A ordem mundial americana não foi ? e não será ? capaz de enquadrar esse continente ?exótico?, grande demais e forte demais para ser engolido (como a América Latina), marginalizado (como a África), dominado (como o Oriente Médio) ou derrotado (como a ex-União Soviética). Mas, pelo manejo de suas contradições internas, pode mantê-lo contido. O Pentágono considera que o quarto objetivo estratégico da geopolítica americana é o mais difícil de ser mantido no longo prazo. Ele é assim definido: ?Que nenhum poder do hemisfério oriental [leia-se, Ásia] possa desafiar o domínio norte-americano sobre os oceanos.? Compreende-se a preocupação: o controle simultâneo dos oceanos é, de longe, o elemento central na supremacia militar em escala mundial. Tendo-o conquistado, os Estados Unidos detêm o monopólio da capacidade deslocar e projetar suas forças. Ora, criar uma marinha de guerra exige recursos imensos, incompatíveis com manter grandes exércitos envolvidos com problemas territoriais. Daí o permanente esforço americano de fazer com que seus competidores potenciais ? especialmente os asiáticos ? mantenham-se às voltas com ameaças terrestres, que os próprios Estados Unidos, por sua posição geográfica, não enfrentam. Quando os soviéticos começaram a desenvolver uma marinha de guerra de alcance mundial, os americanos, em um lance de gênio, os atraíram para uma prolongada guerra terrestre, exatamente no Afeganistão. O resultado todos conhecem. Uma tensão duradoura no coração da Ásia ? ampliando-se a guerra civil latente na região ? se ajusta perfeitamente aos interesses estratégicos dos Estados Unidos. Eis uma pista para entender o que vai ocorrer. O Afeganistão tem fronteiras com o Irã, o Paquistão, a China e ex-repúblicas soviéticas, além de ficar muito perto da Índia e da Rússia. É ideal para quem deseja criar uma zona de turbulência capaz de manter seus adversários voltados para dentro. Depois da incursão, os Estados Unidos se retirarão em suas embarcações, tendo punido os representantes do mal e, principalmente, semeado uma cizânia que Irã, Paquistão, Rússia, China e Índia terão de administrar por muitos anos. Enquanto isso, a grande esquadra continuará a navegar pelo mundo. * César Benjamin é editor e autor de A opção brasileira (Contraponto Editora, 1998).
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