Cartão de Natal
13/12/2005
- Opinión
Feliz Natal a quem não planta corvos nas janelas da alma, nem embebe
o coração de cicuta e ousa sair pelas ruas a transpirar bom-humor.
Feliz Natal a quem cultiva ninhos de pássaros no beiral da utopia e
coleciona no espírito as aquarelas do arco-íris. E a todos que
trafegam pelas vias interiores e não temem as curvas abissais da
oração.
Feliz Natal aos que reverenciam o silêncio como matéria-prima do amor
e arrancam das cordas da dor melódicas esperanças. Também aos que se
recostam em leitos de hortênsias e bordam, com os delicados fios dos
sentimentos, alfombras de ternura.
Feliz Natal aos que trazem às costas aljavas repletas de relâmpagos,
aspiram o perfume da rosa-dos-ventos e levam no peito a saudade do
futuro. Também aos que semeiam indignações, mergulham todas as manhãs
nas fontes da verdade e, no labirinto da vida, identificam a porta
que os sentidos não vêem e a razão não alcança.
Feliz Natal a todos que dançam embalados pelos próprios sonhos e
nunca dizem sim às artimanhas do desejo. Aos que ignoram o alfabeto
da vingança e jamais pisam na armadilha do desamor, pois sabem que o
ódio destrói primeiro a quem odeia.
Feliz Natal a quem acorda, todas as manhãs, a criança adormecida em
si e, moleque, sai pelas esquinas quebrando convenções que só obrigam
a quem carece de convicções. E aos artífices da alegria que, no calor
da dúvida, dão linha à manivela da fé.
Feliz Natal a quem recolhe cacos de mágoas pelas ruas a fim de atirá-
los no lixo do olvido e guardam recatados os seus olhos no recanto da
sobriedade. A quem resguarda-se em câmaras secretas para reaprender a
gostar de si e, diante do espelho, descobre-se belo na face do
próximo.
Feliz Natal a todos que pulam corda com a linha do horizonte e riem à
sobeja dos que apregoam o fim da história. E aos que suprimem a letra
erre do verbo armar e se recusam a ser reféns do pessimismo.
Feliz Natal aos que fazem do estrume adubo de seu canteiro de lírios.
Também aos poetas sem poemas, aos músicos sem melodias, aos pintores
sem cores e aos escritores sem palavras. E a todos que jamais
encontraram a pessoa a quem declarar todo o amor que os fecunda em
gravidez inefável.
Feliz Natal aos ébrios de transcendência e aos filhos da misericórdia
que dormem acobertados pela compaixão. E a todos que contemplam
ociosos o entardecer, observando como o Menino entra na boca da noite
montado em seu monociclo solar.
Feliz Natal a quem não se deixa seduzir pelo perfume das alturas e
nem escala os picos em que os abutres chocam ovos. E a todos que
destelham os tetos da ambição e edificam suas casas em torno da
cozinha.
Feliz Natal a quem, no leito de núpcias, promove uma despudorada
liturgia eucarística, transubstanciando o corpo em copo inundado do
vinho embriagador da perda de si no outro. E a quem corrige o
equívoco do poeta e sabe que o amor não é eterno enquanto dura, mas
dura enquanto é terno.
Feliz Natal aos que repartem Deus em fatias de pão e convocam os
famélicos à mesa feita com as tábuas da justiça e coberta com a
toalha bordada de cumplicidades.
Feliz Natal aos que secam lágrimas no consolo da fé e plantam no chão
da vida as sementes do porvir. E aos que criam hipocampos em aquários
de mistério e conhecem a geometria da quadratura do círculo.
Feliz Natal a quem se embebeda de chocolate na esbórnia pascal da
lucidez crítica e não receia pronunciar palavras onde a mentira
costura bocas e enjaula consciências. E a todos que, com o rosto
lavado das maquiagens de Narciso, dobram os joelhos à dignidade dos
carvoeiros.
Feliz Natal a todos que sabem voar sem exibir as asas e abrem
caminhos com os próprios passos, inebriados pelos ecos de profundas
nostalgias. E aos que decifram enigmas sem revelar inconfidências e,
nus, abraçam epifanias sob cachoeiras de magnólias.
Feliz Natal aos que saboreiam alvíssaras nos bosques onde vicejam
anjos barrocos e nadam suas gorduras deixando os cabelos brancos
flutuarem sobre a saciedade de anos bem vividos. E a todos que dão
ouvidos à sinfonia cósmica e, nos salões da Via Láctea, bailam com os
astros ao ritmo de siderais incertezas.
Feliz Natal também aos infelizes, aos tíbios e aos pusilânimes, aos
que deixam a vida escorrer pelo ralo da mesquinhez e, no calor de
seus apegos, vêem seus dias evaporar como o orvalho aquecido pelo
alvorecer do verão. Queira Deus que renasçam com o Menino que se
aconchega em corações desenhados na forma de presépios.
https://www.alainet.org/es/node/105526
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