Celso Daniel
23/01/2002
- Opinión
Ao saber de teu assassinato, amigo, eu fiquei com muita raiva. Raiva
do mundo, do meu país, do estado, da incompetência da polícia
sustentada por nossos impostos, da impunidade. Talvez este não seja
um sentimento cristão, ou quem sabe foi o que Jesus sentiu ao
derrubar as bancas dos mercadores do Templo.
Celso, eu posso entender agora o desespero de Jesus sentindo-se, no
Horto das Oliveiras, abandonado por Deus. Por que tanto silêncio
deste Pai de Amor que nos exige como preceito a fome e a sede de
justiça? Eu tenho medo do assassino que se esconde no fundo do meu
coração, medo de que ele acorde sequioso de vingança, bradando por
pena de morte e julgamentos sumários. Tenho medo da corrupção que
medra em setores da polícia e de que o canto do poeta acabe por me
convencer a chamar o ladrão.
Não sei quem puxou o gatilho que perfurou com tantos tiros o teu
rosto sereno. Mas sei que as mãos que te arrancaram do carro e
levaram para a morte eram, como no teatro de bonecos, monitoradas por
gente muito poderosa, os mesmos que assassinaram Toninho, prefeito de
Campinas, em setembro de 2001. E a lógica era a mesma que acionou a
arma que, no dia seguinte ao teu seqüestro, tentou matar José Rainha,
líder dos sem terra.
Quando falo em poder bandido não me refiro apenas aos pistoleiros de
aluguel que, hoje, riem com escárnio quando caem atrás das grades,
pois sabem que, em breve, voarão como pássaros rumo à liberdade. Falo
daqueles que não suportam a hipótese de o PT chegar ao poder neste
país. Falo do terrorismo fundamentalista e também do terrorismo
transnacional que globaliza a violência sob a égide da águia
imperial. Enquanto os pobres morrem de fome, seus defensores devem
ser eliminados com as armas do horror, de modo a semear o pânico, a
insegurança, o medo de viver.
Agora, companheiro, divides o pão da eternidade com todos aqueles que
se destacam na galeria dos mártires da justiça: Jesus, Tiradentes,
Gandhi, Guevara, Luther King etc. Tanto anônimos que tiveram suas
vidas ceifadas por almejarem um pouco de pão, um pedaço de terra, um
teto, um trabalho. Seus sonhos desafiaram o nosso egoísmo, o nosso
apego mesquinho aos bens materiais, a nossa ambição de poder, a nossa
prostituição moral diante do dinheiro.
Conheci poucas pessoas tão ponderadas e competentes como tu. Teu povo
de Santo André elegeu-te três vezes, da última com mais de 70% dos
votos, num reconhecimento clamoroso de que abraçaste o conselho
evangélico de exercer o poder como serviço ao bem comum. O que teus
assassinos não podiam imaginar é que a força ressurrecional de teu
sangue transformaria a emoção dos brasileiros em indignação. Todos
choram por ti, Celso. Choramos de vergonha do nosso atraso, da
cultura de exaltação da barbárie que respiramos, da nossa
incapacidade de reduzir a circulação de armas, de nossa inépcia
frente a tanta impunidade.
Nosso lamento não se ergue apenas por tua morte. Ela não é um caso
isolado. Ergue-se sobretudo pela evidência de que o Brasil se
encontra numa guerra civil não declarada. Aqui, são assassinadas, a
cada ano, mais de 40.000 pessoas! Isso supera os índices das guerras
mais recentes, do Oriente Médio e de países como a Colômbia. A
impunidade incute nos criminosos a convicção da imunidade.
Não são os prefeitos do PT que necessitam, urgente, de aparatos de
segurança. É o povo brasileiro, é esta nação que abriga 53 milhões de
excluídos, dos quais 15 milhões são sem-terra e 20,6 milhões carecem
de teto, sem falar no desemprego. Hoje, segurança não se restringe a
caso de polícia. É, sobretudo, caso de política; políticas públicas
que atendam 33 milhões de brasileiros que estão entre 15 e 24 anos de
idade, a maioria condenada a migalhas de instrução, trabalhos
informais mal remunerados, periferias sem equipamentos de lazer,
esporte e cultura, vidas sem ideais, consumidas pelas drogas.
Ao tentar proteger-te dos tiros, tu elevaste as mãos à altura do
rosto e, assim, o teu corpo foi encontrado. O gesto simboliza um
basta a tanta insanidade, a vontade de não ver o crime arvorado em
poder paralelo, o espanto frente à covardia de quem esmaga flores
mas, como dizia Henfil, jamais poderá evitar a primavera.
Agora, Celso, saibas de nosso compromisso ao receber a tua herança, o
exemplo de tua dignidade, de tua abertura ao diálogo, de tua
consciência cívica, de tua humildade no exercício do poder, de tua
firmeza de princípios. Deus nos ajude a merecer os valores que
forjaram a tua vida, de modo a prosseguirmos em teu caminho, mudando
o perfil político e social deste país. Até que o nosso pranto se
converta em alegria numa terra livre da violência e da desigualdade
social.
Consola-me saber que, quando a gente nasce, todos riem e a gente
chora. Quando a gente morre, todos choram e a gente ri, inebriado
pelo Amor que nutre o nosso existir, eternamente.
https://www.alainet.org/es/node/105569
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