Entender a violência?

05/02/2002
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Os atos de violência sofridos em São Paulo, especialmente os sequestros e assassinatos dos prefeitos de Campinas e de Santo André, além de nos indignar nos fazem pensar. Por que a violência e como sair de seu círculo férreo? Já se fizeram, sem conta, todo tipo de reflexão. Quero apresentar, sumariamente, uma de notável pensador francês vivendo nos EUA, René Girard (já esteve algumas vezes no Brasil), pois dedicou toda sua vida no esforço de entender esse mecanismo avassalador. Seu esforço de dilucidação, porém, não nos deve fazer esquecer o transfundo de violência permanente que caracteriza a sociedade brasileira. Ela é marcada por um modelo altamente predatório de capitalismo que produz de forma crescente mais e mais excluidos. Apesar disso é hoje um privilégio ser explorado por esse sistema a preço de uma remuneração miserável com alguma seguridade social, pois, do contrário, milhões seriam condenados ao trabalho informal ou ao desemprego. Qual é a singularidade de Girard? Ele parte da tradição filosófico- psicanalítica que afirma ser o desejo uma das forças mais estruturadoras do ser humano. Sua característica é ser ilimitado e orientado à totalidade dos objetos. Por ser indeterminado, o ser humano, não sabe como desejar. Aprende a desejar, imitando o desejo dos outros (desejo mimético na linguagem de Girard). Isso se vê claro na criança. Não obstante os muitos brinquedos que possua, o que mais ela quer é o brinquedo do outro. E ai surge a rivalidade com ele. Quer o brinquedo só para si, excluindo o outro. Ocorre que outros também concorrem com ela, desejando também o mesmo objeto. Origina-se daí um conflito de todos contra todos. Esse mecanismo é paradigmátaico para toda sociedade. Supera-se a situação de rivalidade-exclusão, diz Guirard, quando todos se unem contra um, fazendo-o bode expliatório. Ele é feito culpado de querer só para si o objeto. Ao se unirem contra ele, esquecem a violência interna e convivem com um mînimo de paz. Com efeito, as sociedades vivem criando bodes expiatórios. Culpados são sempre os outros: o Estado, a polícia, os pobres, os terroristas, os anti- globalização e por ai vai. Importa não esquecer que o bode expiatório oculta a violência escondida, pois todos continuam rivalizando entre si. Por isso a sociedade goza de um equilíbrio frágil. De tempos em tempos, com ou sem sem bode expiatório explícito, a violência se manifesta especialmente naqueles que se sentem prejudicados e buscam compensações. Bem o expressa Rubem Fonseca em seu livro O Cobrador. Um jovem de classe média empobrecida, por força das circunstâncias, pratica atos ilícitos. Sente-se roubado pela sociedade dominante e confessa: “Estão me devendo colégio…sanduíche de mortadela no botequim, sorvete, bola de futebol…estão me devendo uma garota de vinte anos, cheia de dentes e perfume. Sempre tive uma missão e não sabia. Agora sei… sei que se todo fodido fiezesse como eu o mundo seria melhor e mais justo”. Aqui busca-se uma solução individual para um problema social. Na medida em que permanece individual não causa grande medo. Pelo contrário, os causadores principais da violência estrutural (as classes dominantes que controlam o ter, o saber e o ser) se sentem mais seguras quanto mais duramente se aplicam as leis contra os marginais. Assim conseguem fazer esquecer que eles são os principais causadores de uma situação permanente de violência. Mais ainda, vivemos num tipo de sociedade cujo eixo estruturador é a magnificação do consumo individualista. A publicidade apresenta os produtos como sacramentos produtores da graça da felicidade total. E ela enfatiza que alguém é mais alguém quando consome um produto exclusivo que os outros não têm. Cria-se uma relação social violenta porque exclusiva. Enquanto perdurar esta lógica, prossegue o processo vitimatório. Mas o desejo não é só concorrencial, diz Girard. Ele pode ser cooperativo. Todos se unem para compartilhar do mesmo objeto. De concorrentes se fazem aliados. Tal propósito supõe outro tipo de sociedade, mais cooperativa que competitiva, com democracia participativa e não apenas delegatícia. O caminho mais curto e seguro para tal propósito é a educação crítica, acessível a todos. Por ela as pessoas se civilizam, socializam valores e aprendem a não criar bodes expiatórios mas a assumirem elas mesmas a tarefa de construção de uma sociedade na qual todos possam caber. Então sim haverá mais paz que violência. * Leonardo Boff é teólogo e escritor, autor de A violência da sociedade capitalista e do mercado mundial.
https://www.alainet.org/es/node/105595
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