Semana (pouco) Santa

28/03/2002
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No Brasil, a maioria é cristã. Cristãos avulsos, sem vínculos paroquiais ou comunitários. Por isso, profanamos a Semana Santa. Em vez do lava-pés na quinta-feira, lavamos a alma em dúzias de cerveja. Em vez da memória do Senhor morto na sexta, o churrasco no quintal e a sofreguidão de quem acredita que felicidade resulta da soma de prazeres. Em vez de aleluias no sábado, o mergulho em piscinas e mares. Em vez da Páscoa, a mais importante festa cristã, um domingo de lazer no qual se espera apenas que o Sol ressuscite dentre as nuvens e nos conceda a glória de seu brilho. Estamos perdendo a memória das datas emblemáticas e dos ritos de passagem. Nossas crianças crescem no ateísmo prático, como se Deus fosse um camafeu guardado por suas avós numa caixa forrada de veludo. Se não há quem as leve à igreja, faça-as participar do lava-pés e da procissão da cruz, e cantar aleluias pela ressurreição de Jesus, como esperar que cresçam com algum sentimento religioso? Tornam-se, pois, neófitas da religião das novas catedrais: os shopping-centers. Aprendem que a Semana Santa é apenas uma miniférias que demarca com nitidez duas classes de seres humanos: os que podem viajar e os que ficam. Se um dia forem relegadas à categoria dos que ficam, sentir-se-ão humilhadas, reagindo segundo a única escala de valores que conhecem: a do status a qualquer preço. Os fatos históricos celebrados pela Igreja na Semana Santa fazem parte dos arquétipos que regem a nossa cultura ocidental. Olvidar-se que, no século 1, Jesus de Nazaré foi perseguido, preso, torturado e assassinado na cruz por "passar a vida fazendo o bem", como sublinham as Escrituras, é perder a identidade cristã. Sem paradigmas e referências, invertemos os valores. Trocamos a religião pelo consumo, abraçando inclusive uma religiosidade prêt-à-porter, de quem busca nos astros e nas cartas, nos búzios e no I Ching o que convém à própria segurança psicológica. Nenhuma preocupação com os pobres, nenhuma fome de justiça, nenhuma entrega à oração. Fugimos de práticas comunitárias como o diabo da cruz. Inventamos uma religião individual, na qual somos fiéis e bispos, profetas e doutores. Por isso nos encanta a literatura esotérica que nutre nossa fantasia com manuscritos arcaicos e anjos cabalísticos. Nada disso exige que se cumpra o fundamental: amar ao próximo, sobretudo o carente. É Páscoa, mas não passo. Fico na minha. Entregue ao ócio dos feriados. Se possível, vendo filmes na TV. E não me peçam que pare o carro caso encontre um acidentado na estrada. Sujaria tapetes e bancos, impressionaria as crianças, atrasaria a viagem. Exceto se a fatalidade fizer com que o acidentado seja eu. * Frei Betto é escritor, autor do romance sobre Jesus "Entre todos os homens" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/105732
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