Livro, leitura e leitores
17/04/2002
- Opinión
A Bienal do Livro de São Paulo abre suas portas do próximo dia 25 a 5
de maio. Espera-se que acolha um público superior ao de 560 mil
visitantes da Bienal do Rio, ano passado. É mais um esforço heróico
para arrancar o Brasil da ignorância.
Pesquisa da Sociedade Nacional de Editores de Livros (2001)
constatou que, para 57% do público, o acesso ao livro é dificultado
pela falta de dinheiro. Prova disso foi o Plano Cruzado: em 1984,
vendeu-se meio milhão de livros. Três anos depois, 381 milhões. Em
2000, 334 milhões e, ano passado, 320 milhões.
O Brasil possui a 8a. indústria editorial do mundo. Contudo, da
população alfabetizada maior de 14 anos (86 milhões de pessoas),
apenas 20% compram livros (17,2 milhões de leitores). Tais dados
refletem a distribuição de renda: 7% da população adulta
alfabetizada adquirem 58% dos livros. Aqui, vendem-se 2,5 exemplares
por habitante. No Chile, 3,5; na França, 8; nos EUA, 11. É bom
lembrar que metade da produção editorial brasileira é de livros
didáticos, adquiridos em sua maior parte pelo poder público, para
distribuir às escolas. Isso significa que, subtraindo os didáticos,
neste país lê-se 1,2 livro por pessoa. Do total de 5.561 munícipios,
só 11% têm livrarias.
Segundo o Anuário Editorial Brasileiro (2001), há no país cerca de
2.000 livrarias, ou seja, 1 livraria para cada 84,4 mil habitantes.
Delas, 78% encontram-se nas regiões Sul (22%) e Sudeste (56%). O
ideal seria uma para cada 10.000 habitantes. Na Argentina, a
proporção é de 1/6.200.
Como resolver o enigma Tostines: o livro é caro por que não há
público leitor ou não há público leitor por que o livro é caro? As
duas coisas. Na Inglaterra, qualquer obra com um mínimo de qualidade
tem tiragem de 3.000 exemplares, que o Estado compra para abastecer
as bibliotecas.
Aqui, quantas bibliotecas o governo constrói e cuida de manter
atualizadas? Ora, todos sabemos que a relação Estado-livro percorre
caminhos obscuros. Mais escuros que óbvios. Segundo o IBGE, há apenas
4.800 bibliotecas no país. Bastaria o Ministério das Comunicações
exigir, para instalação de bibliotecas, um ínfimo tributo sobre o
faturamento de publicidade das emissoras de TV, que são concessão
pública, e teríamos tantas bibliotecas quantas farmácias.
Pesquisa recente de Flávio Chaves e Vital Corrêa revela que 70% dos
brasileiros não lêem jornais nem revistas. E os outros 30%, entendem
o que lêem? Distingue-se hoje o analfabeto do iletrado. Este lê, mas
não capta o significado. Entende o texto sem apreender o contexto. E,
muito menos, o subtexto. Escrever, então, é uma técnica cada vez mais
restrita. Há universitários que não redigem uma simples carta sem
erros de concordância e sintaxe.
Desde que os sumérios inventaram a escrita cuneiforme (3.300 a.C.) e
os egípcios, os hieróglifos (3.100 a.C.), o ser humano passou a
gravar idéias e sentimentos. A diferença com os alfabetos atuais é
que os primeiros permitiam apenas a expressão de noções concretas,
plásticas. Um desenho de leão designava o animal. Talvez essa lógica
visual explique por que a Bíblia não contém doutrinas teóricas, nada
que se pareça a um tratado de teologia. De fio a pavio, predominam
relatos, histórias, parábolas ou, como se diz na minha terra, causos.
Graças aos fenícios (2.000 a.C.), a escrita avançou das imagens às
idéias abstratas, pois seu alfabeto possibilitou designar sons. O que
se falava passou a ser escrito. E, desde então, não surgiu nenhuma
novidade na técnica da escrita, exceto no processo de reproduzi-la.
Agora, entretanto, a TV produz, na opinião do psicanalista Carlos
Pertkold, o sintoma William Moreira (termo extraído dos nomes dos
locutores William Bonner e Cid Moreira). A pessoa entende o que ouve,
mas não o que lê, pois para ela apenas a audição está associada ao
significante. Quando há um conjunto de frases com sujeito, verbo,
predicado e complementos, o portador desse sintoma se perde na
individualidade de cada palavra, sem compreender que, juntas, elas
expressam um pensamento (Jornal do Brasil, 21/2/02, p. 11).
Um país se faz com homens e livros, alertava Monteiro Lobato.
Desconfio que as duas coisas andam faltando. Pelo menos enquanto os
professores forem mal remunerados, a TV desestimular a leitura, os
pais não ajudarem os filhos a criarem este hábito, as bibliotecas
continuarem raridade e, os livros, artigos de luxo.
Para piorar esse quadro, só falta o Ministério da Educação dar
ouvidos aos técnicos que propõem, nos Parâmetros Curriculares
Nacionais do Ensino Médio, retirar a Literatura da condição de
ciência autônoma, passando-a a mera coadjuvante, ora de Língua
Portuguesa, ora de Artes. Nessa toada, nada a estranhar quando um
jovem universitário responde, como vi e ouvi, que Rimbaud é a versão
francesa de Rambo.
* Frei Betto é escritor, autor do romance "Hotel Brasil" (Ática),
entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/105790
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