Carnaval de Igrejas

07/05/2002
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Uma imagem poderosa me acompanha há anos: a celebração dos mil anos de cristianismo em Rus, a antiga Rússia. Ela oferece pistas para o verdadeiro ecumenismo. Em 1989 o Governo soviético e a Igreja ortodoxa convidaram para as celebrações, representantes de todas as denominações cristãs existentes na face da Terra. Havia mais de mil denominações, desde a Igreja da libertação na Améria Latina (que Gustavo Gutiérrez e eu representávamos para irritação das autoridades romanas presentes e gáudio dos marxistas) até a pequenina igreja da Galiléia cujas origens remontam aos parentes de Jesus. Reunidos no teatro Bolshoi durante todo um dia, cada denominação expressava sua profissão de fé e, em poucos minutos, formulava bons votos ao povo ortodoxo russo. Parecia um carnaval cristão, tal a profusão das indumentárias, das cores e dos títulos honoríficos. Todos naquela semana de celebrações desfilavam em seus trajes com garbo e elegância. Eu circulava com meu singelo burel franciscano, com capuz e cordão, representando indignamente a Igreja dos pobres da América Latina. Nas conversas daqueles dias, percebi que cada igreja se considerava a verdadeira. E seus representantes todos, especialmente, os vindos de Roma, andavam soberbos carregando sobre as costas algo que só eles imaginam poder carregar: a verdade revelada, todos os meios de salvação e a única Igreja de Cristo (os outros teriam apenas “elementos eclesiais”). Alguns andavam até encurvados sob o peso de tanta pretensão. Pensava então comigo mesmo: todos esses estão certos e todos estão errados. Todos estão certos porque ninguém esta fora do Cristo e longe da verdade. Todos estão errados porque ninguém pode conter em suas vasilhas toda a água do oceano cristão. Num certo momento da cerimônia lancei, angustiado, ao céu, essa pergunta: “Senhor, qual é, enfim, a tua Igreja, quem são os teus? Revele-mo por tua imensa bondade!” E escutei, no céu de minha mente, esta resposta: “Todos são os meus, todos têm a minha herança e todos compõem a minha Igreja”. Efetivamente, sem as Igrejas, Cristo talvez teria sido engolido pelo esquecimento como o foram tantos místicos e mestres espirituais. Mas elas não substituem Cristo, só o representam. Não são a luz, apenas a lamparina. Pessoas que não percebem essa nuance fundamental, pesarosas, dizem: entre a Igreja e Cristo prefiro ficar com Cristo. Outros, mais sensatos, relativizam a Igreja e dizem: fiquemos com Jesus e com a Igreja. Mas cada qual no seu nível. O nível absoluto e fundador é Cristo. O nível relativo e fundado é a Igreja. Cristo é o sol que irradia por si mesmo, a Igreja, a lua, iluminada pelo sol. Como todas as Igrejas carregam a memória de Jesus, todas devem viver em comunhão de reciprocidade. Juntas-em-relação-recíproca formam a única Igreja de Jesus e de Deus na terra. O que importa, na verdade, não são tanto as Igrejas, mas o fenômeno cristão e sua função benfazeja para a espiritualidade dos seres humanos. Todas as Igrejas são de Cristo mas Cristo é para os humanos e os humanos são para os outros humanos, homens e mulheres, e todos são para Deus. * Leonardo Boff, teólogo e filósofo
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