Entrevista com José Luis Fiori
Conjuntura Política
31/05/2002
- Opinión
1. De onde viriam as dificuldades de Serra decolar nas pesquisas? E a
indicação de Rita Camata para seu vice alterará este quadro?
A dificuldade da candidatura oficial decolar nas pesquisas, do meu ponto de vista,
não tem nada a ver com a sua simpatia ou antipatia pessoal, ou com o fato de que o
candidato seja homem ou mulher. Seu problema é como conseguir o apoio eleitoral
de uma população que está profundamente insatisfeita com o governo de FHC e seus
oito anos de mediocridade. Além disto, as próprias elites e grupos políticos
conservadores estão se enfrentando com o problema do esgotamento do programa de
políticas e reformas neoliberais que foi capaz de uni-los neste período. Ao que
se soma o fato de que nestes últimos três anos a economia do norte e nordeste do
país voltou a perder posição com relação ao sul acirrando a difícil relação de São
Paulo com o as regiões mais atrasadas do país. Além disto, a imprensa sempre viu
no José Serra um crítico à política econômica do governo, é não de estranhar,
portanto, que agora ele não tenha do seu lado o entusiasmo dos "mercados"
nacionais e internacionais. Por fim, já não há mais mágicas nem privatizações a
fazer, a economia está estagnada e o PSDB perdeu sua capacidade de articulação dos
interesses conservadores do país. Como conseqüência, o PSDB também vai se
dividindo e voltando às suas devidas dimensões, como partido que nasceu das brigas
internas do PMDB de São Paulo, e que sozinho não passa de um grupúsculo paulista,
sem nenhuma identidade e coluna vertebral, depois da morte do governador Mario
Covas e da perda da conexão do presidente Cardoso junto ao governo norte-
americano. Neste contexto, querer ser ao mesmo tempo candidato oficial e da
mudança, é um malabarismo típico da intelectualidade tucana, mas difícil de ser
compreendido pelo povo.
2. O modelo tucano de Brasil está esgotado depois desses oito anos?
Completamente, e este é o verdadeiro núcleo do problema vivido pelo governo e seu
candidato. Em poucas palavras diria que o modelo está esgotado pelo menos por
três motivos básicos. Primeiro porque seus resultados, do ponto de vista social e
econômico, foram pífios para um país da desigualdade, complexidade e dimensão do
Brasil. Em segundo lugar, porque depois de feita a "lição de casa" os seus
criadores não têm mais nada a fazer frente à estagnação que não seja propor a
imobilidade absoluta para sustentar o seu "brinquedinho de porcelana" macro-
econômica que não se move, não agüenta nem um espirro e que custa uma fábula ao
país para ficar de pé. Em terceiro lugar porque as melhores realizações e
resultados do modelo dependeram inteiramente de uma situação econômica e política
internacional passageira e que mudou completamente depois de 2001: a abundância de
capitais no mundo, disponível e ávida pelas privatizações e aplicações dos
mercados emergentes; e a política da Administração Clinton de apoio e sustentação
do modelo, nas suas horas de crise, como aconteceu no momento da reeleição de FHC
em 1998. Na verdade, o que nunca foi dito aos brasileiros, é que este "modelo
tucano" que criou um passivo externo de 400 bilhões de dólares e necessita de 1
bilhão de dólares semanais de financiamento internacional para sobreviver, só
poderia ter chance de sucesso se o país se mantivesse por muitos anos seguidos na
condição de enfant gatè dos Estados Unidos, e sem nenhum tipo de alternância em
matéria de política econômica e de política externa. De fato, o modelo supunha
que os Estados Unidos concedessem ao Brasil o estatuto privilegiado e informal das
"colônias brancas" ou domínios ingleses do século XIX, como foi o caso do Canadá,
da Austrália e da Nova Zelândia. Não sendo assim, só no mundo de fantasia da
Carochinha.
3. De zero a 10, que nota o senhor daria para FH? Por quê? Qual a sua
avaliação dos oito anos de governo dele?
A nota que a opinião pública tem dado ao governo gira em torno de 3,5, e creio que
ela tem toda razão. Não apenas porque vive em sua maioria nas grandes cidades
onde a exclusão e a anomia social já chegou ao limite da "guerra social" como
disse um observador das Nações Unidas. Mas mesmo quando se olha apenas para os
indicadores econômicos, e mesmo que se colocasse entre parêntesis o problema das
dívidas e dos desequilíbrios que não são visíveis para a maioria da população, o
que ela lê e percebe na carne, é que durante os dois governos FHC, o país cresce
apenas 2,8% ao ano e a renda dos brasileiros só cresceu 0,8%. Um desempenho
extraordinariamente mais medíocre que o da "era nacional-desenvolvimentista", que
dá tanta urticária nos intelectuais tucanos, e que o presidente FHC prometeu
acabar para sempre, no seu discurso de posse. Foi por conta disto, aliás, que
nestes oito anos o governo fez tanto para desmontar coisas e "virar páginas" que
acabou desmontando o próprio estado brasileiro que hoje não é mais capaz de
prever, antecipar, ou planejar qualquer ação coordenada e estratégica, que não
seja exclusivamente no campo monetário. Por fim, deve estar pesando muito nesta
nota dada ao governo, pela opinião pública, a forma melancólica em que vai
chegando ao seu final o segundo governo FHC. Já se vão dois trimestres seguidos
de crescimento negativo da economia, e a previsão dos otimistas é de que o aumento
do PIB não passe de 1,8%, em 2002, numa hora em que o desemprego alcançou a cifra
dos 20% em São Paulo e na maioria das grandes metrópoles brasileiras.
4. Que tipo de leitura se deve fazer das recentes avaliações dos bancos
estrangeiros sobre o quadro eleitoral no Brasil?
Acho que há pelo menos duas leituras possíveis. A primeira tem a ver com a função
mais "prosaica" destas agencias de avaliação de risco, dentro do sistema de
decisões de investimento dos seus bancos e dos seus demais clientes. Aqui basta
lembrar a decisão recente da justiça americana que obrigou a Merrill Linch a pagar
uma multa de 100 milhões de dólares, por haver induzido conscientemente, através
do seu Boletim, um movimento errado de compra de ações, na mesma hora em que
avisava seus clientes especiais para que não comprassem as mesmas ações. Pano
rápido neste assunto. Mas há uma outra leitura, um pouco mais complicada, e que
tem a ver com o que já falamos sobre a fragilidade e a insustentabilidade deste
modelo econômico aberto, desregulado e dependente do massivo financiamento externo
para (no mínimo) a rolagem diária e privada de dívidas que chegam ao valor de
milhões de dólares. Uma rolagem através do mercado e portanto sensível às
flutuações e aos momentos como o que já estamos vendo há algum tempo, em que o
capital internacional está fugindo da América Latina, e indo de volta para a Ásia,
independentemente das eleições brasileiras. "Pendurado" deste jeito, é natural
que os credores tenham horror de qualquer discussão democrática em torno da
política econômica, e medo visceral de alternâncias no poder que envolvam a
possibilidade de mudanças da própria política liberal. É por isto que se pode
dizer, com toda razão, que além de sua fragilidade macroeconômica e de sua
inviabilidade no longo prazo, este é um modelo essencialmente anti-democrático.
5. Como o Brasil deve reagir a este tipo de interferência? Ou frente às
afirmações do tipo que fez Soros na FSP, de que "no capitalismo global só votam os
americanos", ou ainda de que o Brasil está "condenado a eleger entre Serra e o
caos"?
Nossas autoridades têm reagido de duas maneiras, basicamente. De um lado estão os
que junto com o Ministro da Fazenda acreditam que tudo estará resolvido rezando
umas três vezes ao dia o padre-nosso da "teologia liberal", ajoelhado em direção
ao FMI. Outros tentam tapar o sol com a peneira fazendo declarações otimistas e
dizendo que está tudo sob o controle. Nenhuma das duas, do meu ponto de vista,
tem a menor eficácia neste momento. Aqui há que ter a maior cautela. Acho
necessário e indispensável que as autoridades políticas reajam denunciando este
tipo de pressão ou chantagem. Sobretudo, no caso do Soros, quando fala do "caos"
como um futuro inevitável, no caso da vitória de Lula, intervindo de forma óbvia
no processo eleitoral brasileiro. Mas por outro lado, do ponto de visto objetivo
é melhor olhar de frente e de forma realista, a outra parte da entrevista de
Soros, onde diz que hoje, no mundo da globalização desregulada, o poder financeiro
não admite alternância no poder nos países que estão sob sua tutela, e portanto
tampouco no Brasil, que foi nestes oito anos o melhor aluno do modelo econômico
hegemônico. É tão simples e tão sério quanto isto. Talvez tenha lhe faltado
dizer que neste momento, também nos Estados Unidos, poucos são os que votam e nem
sempre os que ganham levam. Acho que se as elites brasileiras não enfrentarem
esta nova realidade introduzida entre nós pelo governo FHC, se darão muito mal.
Aqui não adiantam bravatas, nem tapar o sol com a peneira, e não adianta tampouco
o anúncio de nomes ou medidas destinadas apenas a "tranqüilizar o mercado", como
fez sucessivas vezes e sem nenhum sucesso, o ex-presidente argentino De la Rua. O
problema dos economistas é que eles acham que existe uma solução macroeconômica ou
alguma pequena variação de política econômica que dê conta deste quebra-cabeças, e
ela não existe. Só uma grande mobilização política e econômica sustentada na
consciência realista e coletiva da fragilidade da situação em que o país foi
posto, e costurada em torno de um novo projeto nacional, conseguirá enfrentar a
armadilha descrita por Soros e que já destruiu vários governos em outros países.
Neste ponto os políticos têm um papel decisivo, mas os intelectuais tal como os
médicos tem que dizer a verdade. E neste caso, o que Soros disse é uma descrição
verdadeira do que os "mercados"querem e estão fazendo, e portanto é um desafio
real contra o qual todos os brasileiros têm que lutar juntos, caso contrário suas
palavras se transformarão numa profecia auto-cumprida.
6. Como o senhor avalia a reação do presidente FHC ?
Ora ele parece defender com altivez o seu país, ora ele dá força ao argumento de
que a vitória da oposição seria sinônimo de caos. Ele não tem como sair deste
jogo duplo, porque é a única arma que dispõe e que ele conhece porque já utilizou
e lhe deu a vitória em 1998. Mas todos sabem que este é um jogo muito perigoso, a
bomba pode estourar antes da hora.
7. Uma das bandeiras de FH era a privatização de estatais. Que balanço o
senhor faz das privatizações? Qual o saldo? Essa bandeira sai manchada depois das
últimas denúncias?
Creio que estas últimas denúncias, a que você faz referência, agregam pouco à uma
história por demais conhecida sobre os bastidores financeiros, políticos e
pessoais das privatizações. História que talvez ainda acabe na Justiça, mas não
acredito muito, porque as privatizações foram o verdadeiro file mignon servido
sobretudo durante o primeiro governo FHC e contribuiu decisivamente para juntar os
pedaços políticos e econômicos, nacionais e internacionais da "base de sustentação
do governo". Estas coisas em geral ficam, para sempre, nas sombras e no silencio
assegurados pela cumplicidade inevitável dos que foram favorecidos, o que nesse
caso se trata de um grupo muito extenso e variado. Agora bem, com relação ao
balanço das privatizações do ponto de vista dos seus objetivos declarados pelo
governo, o que interessa ver é sobretudo o que passou com as empresas que foram
vendidas e que são as responsáveis pelos serviços de infra-estrutura do país. Com
relação a estes casos os dados são conhecidos e muito claros: em primeiro lugar,
ao contrário do que propôs o governo, as privatizações contribuíram decisivamente
para aumentar em vez de diminuir a dívida publica interna e a dívida privada
externa do país. E além disto, as novas empresas de privadas prestadoras de
serviços vêm contribuindo para o aumento do desequilíbrio externo das contas
brasileiras, porque têm aumentando a remessa de lucros para fora com também tem
contribuído para o aumento das importações de equipamento. Em terceiro lugar suas
tarifas subiram muito acima da inflação e com isto vem pressionando o próprio
aumento recente da inflação, pesando cada vez mais no bolso da população. Tudo na
contramão do que foi anunciado e proposto pelo governo. Além disto, está cada vez
mais claro que as privatizações foram feitas de forma apressada e ideológica
gerando hoje sérios problemas de regulação e planejamento dos sistemas, e de
descumprimento das metas e compromissos assumidos pelas empresas compradoras. O
colapso energético recente foi a manifestação mais visível de tudo isto, mas logo
logo estaremos vendo os problemas também nas comunicações, nos transportes, etc.
Na verdade as privatizações mal feitas são as grandes responsáveis pela destruição
da capacidade estatal de prever e planejar os sistemas básicos de infra-estrutura
do país. Tudo isto entretanto já está feito e agora deve ser contabilizado nos
passivos de qualquer novo governo deste país. Mas atenção porque o leite já foi
derramado, mas não está excluída a hipótese de que em algum tempo mais, os novos
proprietários voltem a recorrer ao estado para que lhes compre as empresas
privatizadas, como já passou na década de 60 no Brasil, e mais recentemente,
noutros países latino-americanos que também haviam privatizado suas empresas de
serviços públicos. Uma espécie de troca-troca periódico, em que quem sai ganhando
sempre é o capital privado e quem paga a conta, de uma forma ou outra é a
população através das "burras publicas".
8. Na sua avaliação, Lula leva o grande prêmio desta vez?
Por todas as razões apontadas, é óbvio que ele está com muito maior possibilidade
de ganhar nesta do que nas outras vezes. Mas nos próximos quatro meses, ainda
passará muita água por baixo da ponte. Para usar uma palavra da moda, primeiro
foi o terrorismo dos dossiês, agora, o terrorismo econômico e assim seguiremos até
outubro. Ninguém, se engane com relação a isto.
9. Do ponto de vista ideológico e não apenas eleitoral, o PT - ou pelo menos
sua cúpula - erra ou acerta ao assumir um perfil mais transigente,a ponto de
pensar em fazer alianças com o PL, parte do PMDB e outros segmentos políticos que
já estiveram próximos deste governo?
Acho que a questão fundamental aqui é compreender que nestas eleições
presidenciais, a competição entre os candidatos está assumindo uma forma original
e que muitos vêm erradamente como uma lamentável convergência programática. O que
passa é que já houve uma espécie de plebiscito prévio e o governo perdeu, e agora,
de uma forma ou outra, todos os candidatos assumem esta derrota como uma fato.
Como entender isto? Começando pelo fato de que depois de oito anos não há como
enganar-se, e queira ou não o tucanato paulista, a única marca efetiva do governo
Cardoso foi lhe dada pelo Sr. Malan e sua política econômica, e é isto que vocês
chamaram nesta conversa, de "modelo tucano". Com uma ou outra pequena mudança,
foi este mesmo modelo que foi implementado em quase toda a América Latina, durante
os anos 90. E foi ele que levou o Continente a um dos seus maiores desastres
históricos, culminando com a desintegração nacional da Argentina. Ninguém quer
nem pode tolerar mais isto e todo mundo sabe que o modelo do Sr Malan está nesta
linha de tiro. O que está em discussão entre os candidatos, portanto, não é mais
se eles apóiam ou não esta política que está aí. O desafio extremamente complexo
que está posto para o próximo governo não é apenas evitar o desastre argentino.
Todos querem evitá-lo, mas ao mesmo tempo todos querem se desfazer do modelo do
Sr. Malan. Este é um consenso básico entre todos os candidatos à presidência, e
não é necessário ler seus programas para saber disto, basta analisar seus
movimentos táticos. Independente do que se pense sobre a sua viabilidade é óbvio
que o José Serra está tentando reconstruir o PMDB do Dr. Ulisses e passar uma
imagem crítica e de centro-esquerda, o Ciro Gomes fala numa aliança com os
"nacionalistas" e contra a ala liberal-internacionalista do PFL, e assim por
diante. Na verdade não foi a oposição que ficou mais transigente, pelo contrário,
foi o discurso e as críticas da oposição, nestes oito anos, que ganharam e
ganharam antes mesmo das eleições. Hoje é comum ler nos jornais e revistas
artigos de intelectuais tucanos e de outras vertentes que foram governistas e que
praticamente repetem o que a oposição vinha dizendo, tanto com relação à política
interna como com relação à política internacional. Agora bem, não é um desafio
trivial mudar o modelo Malan e afastar o perigo argentino. Por isto o que estamos
assistindo parece as vezes um processo pouco competitivo, mas é porque a corrida
eleitoral clássica se transformou num rápido processo de construção de um pacto
social e de uma coalizão de centro-esquerda que seja a mais viável e confiável –
do ponto de vista do povo brasileiro - para "virar a página" neoliberal e partir
para um novo caminho.
10. Para chegar próximo do Brasil ideal, ou ao menos botar o país nesse rumo,
que ações o próximo presidente da República deverá tomar?
A primeira e mais difícil das tarefas será convencer a população de que não há
mágicas nem milagres (tipo plano Real ou privatizações) que possam ser feitos
desta vez. Enfrentar as conseqüências do que foi feito nestes últimos anos e ao
mesmo tempo encarar os desafios permanentes e estruturais de uma sociedade tão
desigual como a nossa, exige um trabalho lento de reconstrução das próprias bases
da governabilidade, e da convivência federativa. Para isto não há fórmulas
prontas e o melhor é manter os economistas à distancia do Ministério da Fazenda.
Mas indo ao núcleo duro da questão, parece certo que qualquer governo que se
proponha mudar o rumo do Brasil, a partir de 2003, e tenha como prioridade um
crescimento sustentado e uma ativa política de distribuição de renda, deve partir
de um diagnóstico realista da situação do país, depois de 10 anos de políticas
liberais: sobretudo a respeito do grau de desnacionalização da economia, de
desestruturação do estado, e de anomia social. Seu primeiro passo terá que ser a
remontagem da capacidade estratégica do estado, para prever, planejar e investir,
resgatando a autonomia interna e a soberania externa do próprio estado. A redução
da fragilidade externa envolverá o enfrentamento do problema da dívida privada e a
implementação de políticas industriais e comerciais ativas. A crise energética e
a decadência do sistema rodoviário e de saneamento, por outro lado, sinalizam a
necessidade urgente de rever a estratégia liberal para o campo da infra-estrutura.
Mas, além disto, é fundamental compreender que não é possível pensar numa
distribuição pura e simples da renda, sem que ela venha acompanhada do aumento da
produção de bens de consumo de massa - sobretudo alimentos e habitação - e dos
bens públicos de consumo universal. Por fim, o financiamento deste novo estilo de
desenvolvimento, requererá uma reforma do sistema de crédito e de seguridade
social e uma mudança tributária radical e de caráter progressivo
Nenhuma destas decisões e políticas, se reduzem a um problema técnico. Um projeto
deste tipo, de mudança de longo prazo da sociedade brasileira tem que começa
inevitavelmente com a formação de uma coalizão de forças que rompa com o pacto
conservador que domina este país há décadas, e que consiga promover uma
revalorização positiva e maciça da idéia de nação e de solidariedade federativa.
11. O Brasil está vacinado contra sustos como o que os franceses passaram
recentemente com Le Pen? A extrema direita ainda pode se criar por aqui?
Acho que ela já reapareceu no golpe fracassado da Venezuela e foi inclusive foi
vitoriosa nas últimas eleições colombianas. Mas acho que de todas as direitas que
já chegaram ao poder nestes últimos tempos, a que mais deve preocupar o Brasil é
mesmo a norte-americana. As pessoas olham muito para Le Pen, Heider etc., e não
olham muito pouco para o direitismo radical e religioso da maior parte da atual
equipe de governo da Administração Bush. Ao lado dela, o austríaco Heider é quase
uma brincadeira do ponto de vista de sua importância para nós.
12. FHC e De La Rua participaram de reuniões internacionais promovidas pela
Terceira Via de Tony Blair. Qual a sua opinião sobre a natureza e o futuro desta
Terceira Via?
"Terceira Via" é o rótulo que foi dado à estratégia eleitoral de Tony Blair,
destinada a conquistar com sucesso um pedaço significativo do eleitorado
conservador de Tatcher e Major. Uma velha expressão que voltou a moda para
designar um vago meio termo entre o liberalismo norte americano e o protecionismo
social europeu, e que só teve algum sentido real e propositivo, na própria Europa
cercada de welfare state por todos os lados. É uma expressão que não quer dizer
nada na América Latina ou na África, por exemplo. O problema entretanto é que
Blair e Clinton tentaram transformar esta idéia na face social-democrata do
processo da globalização liberal, iniciada e patrocinada pelos anglo-saxões desde
os tempos de Reagan e Thatcher. E é isto que nossos social-democratas locais
nunca tiveram capacidade de definir com precisão: o que seria a contraface
periférica, num país desigual como o Brasil, de uma coisa chamada vagamente de
Terceira Via. Nunca conheceram a segunda via, quanto mais a terceira. Por fim,
agora recentemente, saiu publicado em Londres e foi traduzido e republicado no
Brasil, um artigo de um conselheiro político de Tony Blair que esclarece melhor o
que seja a visão internacional da Terceira Via. Diz ele que o que o "mundo
precisa hoje é de um novo tipo de imperialismo, que seja aceitável ao mundo dos
direitos humanos e dos valores cosmopolitas, o imperialismo pós-moderno voluntário
da economia global". Nesse artigo Robert Cooper defende a necessidade de 2 tipos
diferentes de imperialismo, na relação entre o mundo "civilizado" que ele chama de
pós moderno e o resto: um primeiro"imperialismo baseado na lei das selvas", que
deveria reger as relações entre os estados civilizados e os "estados pré-modernos"
ou "fracassados", incapazes de assegurar os seus próprios territórios nacionais; e
um segundo tipo de imperialismo, que Cooper chama de "voluntário da economia
global", "gerido por um consórcio internacional de instituições financeiras como o
FMI e o Banco Mundial" e apoiado na aceitação por parte dos subordinados de"uma
nova teologia da ajuda que enfatiza a governança e defende o apoio aos estados que
se abram e aceitem pacificamente a interferência das organizações internacionais e
dos Estados estrangeiros". Nada que seja novo ou surpreendente para qualquer
latino-americano menos desavisado, porque foi o caminho seguido pelo Brasil de FHC
e por quase todo o Continente, durante a década de 90.
13. Os recentes episódios na Venezuela, com a suspeita de interferência
americana, devem preocupar o Brasil?
Acho que deve preocupar sim, porque afinal desde a década de 80 que os EUA
aparecem como promotores da redemocratização latino-americana. Mas ninguém
esqueceu ainda que eles também apoiaram decisivamente os golpes militares e os
regimes ditatoriais das década de 60 e 70. O que ainda complica mais este quadro
é o fato de que os Estados Unidos aos poucos vem definindo uma nova política
global para a América Latina. A sua presença militar se expande a cada dia,
primeiro atrás do narcotráfico e agora do terrorismo. A Colômbia já é hoje o
terceiro país do mundo em ajuda financeiro-militar dos EUA, só ficando atrás de
Israel e do Egito. Mas esta presença se extende também ao Peru, Bolívia, Equador,
Paraguai etc etc. Uma política que começou durante o período Clinton, mas que
agora vem sendo acompanhada da suspensão radical de qualquer tipo de ajuda
financeira, como a que houve na Argentina, México e Brasil, nas crises de 1990, 94
e 98; e do levantamento de barreiras comerciais que fecham o mercado americano às
nossas commodities. É hora de reconhecer a nova realidade e repensar não apenas a
nossa relação bilateral com os EUA, mas sobretudo uma nova estratégia nacional
específica e diferenciada de inserção do Brasil na nova ordem internacional que se
anuncia imperial e extremamente desfavorável para os países periféricos.
14. O senhor é a favor do sistema de cotas para negros? Ou o projeto é apenas
um paliativo para as desigualdades? Está condenado a não dar certo?
Não há como não ser a favor de políticas que visem a redução da desigualdade de
renda e oportunidades e a integração dos excluídos. Mas acho que no quadro
brasileiro, esse sistema de cotas se transformará, quase inevitavelmente, numa
loteria de pobres, ou num "baú da felicidade" para a população negra.
15. Estadista é um artigo em falta no Brasil? Desde quando? Qual foi nosso
último estadista?
A condição de estadista tem algo a ver, sem dúvida alguma, com acertas condições
pessoais dos governantes. Mas sobretudo tem a ver com a localização hierárquica,
o momento histórico e o projeto internacional dos estados e das nações. Em
países, e dentro de elites subalternas e colonizadas, é muito difícil que apareça
um estadista.
São Paulo, Junho de 2002.
https://www.alainet.org/es/node/106029