O Real cai na real
10/08/2002
- Opinión
Após oito anos de governo FHC, eu esperava que o Brasil chegasse sem
turbulências ao porto das próximas eleições presidenciais. Porém, há nuvens
carregadas no horizonte do país. O dólar disparou, ameaçando o retorno da
inflação e revelando a fragilidade do Plano Real. Comprova, assim, que a
propalada estabilidade da moeda é mais um artifício político que fruto de uma
eficiente engenharia econômica. O Real cai na real: felizmente, para o futuro
presidente, a corda arrebentou no atual governo.
Não bastasse a casa ficar destelhada pelos ventos especulativos, veio o Tio Sam
e cuspiu na família: Paul O`Neill, secretário do Tesouro dos EUA, chamou o nosso
governo de corrupto, acusando-o de desviar investimentos estrangeiros para
contas bancárias na Suíça.
Embora tenha se retratado, O´Neill demonstra que o governo Bush alimenta solene
desprezo pelo Brasil e pela América Latina. E, míope, não percebe que está
falando de corda em casa de enforcado. Nos últimos meses, grandes empresas
americanas tiveram suas operações fraudulentas reveladas a público. Nem as
atividades empresariais do presidente e do vice-presidente escapam da suspeita
de terem utilizado artifícios escusos para valorizar suas ações na Bolsa de
Valores.
O governo FHC optou por manter o Brasil na UTI do sistema financeiro
internacional, submetido a constantes transfusões de capital especulativo. Só
que o doente doa mais sangue do que recebe: em 2001, o Brasil exportou US$ 55
bilhões. Até dezembro, deve pagar, só de juros, US$ 13,109 bilhões.
O médico, o dr. Malan, quer mais transfusões, como se em todo período eleitoral
o doente sofresse de anemia crônica. Em 1998, vieram US$ 41 bilhões para
assegurar a reeleição da FHC. Mas a cada transfusão o doente fica mais
debilitado, pois nada se dá de graça; custa caro e deverá ser pago, como
predisse Tancredo Neves, com o sangue dos brasileiros.
O´Neill, com seu destempero verbal, só agravou o nervosismo do mercado, que já
andava irritado com as declarações piromaníacas de Ciro Gomes de que, se eleito,
porá fim à farra das contas CC-5, que facilitam o envio de dólares ao exterior.
Por essas contas, só em junho houve uma evasão de US$ 605 milhões. De 1º a 22 de
julho, a fuga chegou a US$ 1,078 bilhão.
Em meio à tempestade, o ministro Malan insiste em recorrer ao pronto-socorro do
FMI para obter mais injeções de capital, já que a saúde eleitoral de José
Serra, candidato do governo, está de tal modo combalida que não inspira
confiança nos investidores. Mas o pronto-socorro exige um cheque-caução: as
reservas monetárias do país, reduzidas a US$ 27,290 bilhões em junho. Com menos
de US$ 15 bilhões em caixa, o paciente fica na rua. Aflito, dr. Malan pede
clemência, quer o piso reduzido para US$ 11 bilhões, pois só assim dará curso à
ciranda financeira, continuando a jogar US$ 50 milhões por dia no mercado para
regular o câmbio.
Ocorre que o hospital não trata seus pacientes com imparcialidade. Os EUA são o
seu principal acionista. Controlam 17,11% do capital do FMI, o suficiente para
falar mais alto que todos os outros parceiros. Mesmo assim, Malan põe fé no
caráter multilateral da instituição. Pois sabe que se o paciente Brasil não
resistir à permanente rolagem na esteira de sua dívida e(x)terna, o problema não
será deste governo, e sim do próximo. Como na Argentina, onde De la Rua enterrou
o que o governo Menem estrangulou.
O secretário do Tesouro dos EUA pode ser um desastrado, mas é bem informado.
Graças à Lei Anti-bureau, ele conhece toda a movimentação de capitais mundo
afora. E deve estar se perguntando por que o Brasil pede socorro ao FMI, se há
tanto dinheiro saindo daqui para o exterior? Ao recorrer mais uma vez ao FMI,
nosso país enxuga o chão, enquanto a chuva escorre pelo telhado esburacado.
Outrora considerei a economia uma ciência. Aos poucos, descobri que é uma
ideologia dotada de forte fetiche religioso. Por que o Brasil não pode levantar
da cama, deixar a UTI e caminhar com as próprias pernas? Por que essa
dependência crônica ao capital especulativo? O país não acredita em seus
próprios recursos e, por isso, não investe neles. Sobretudo nos recursos
humanos. Basta conferir a má qualidade de nossa educação, em particular a que é
oferecida pelo poder público.
O medo da atual equipe econômica, que mantém os juros a 18%, é que Serra não se
eleja, e que o próximo governo demonstre que o Brasil é capaz de caminhar, e bem
melhor, por suas próprias pernas. Em outubro de 2001, Malan previu que, neste
ano, o Brasil cresceria no mínimo 4%. A projeção média, agora, é de 1,93%. Mas,
bem melhor administrado, tem potencial para crescer pelo menos 5% ao ano, sem
romper acordos internacionais ou dar calote, porém revendo as privatizações
irresponsáveis, como a do setor energético; aumentando os investimentos
produtivos; reduzindo o desemprego e expandindo as exportações para novos
mercados. E fortalecendo a nossa soberania, impedindo o controle da Base de
Alcântara pelos EUA e a entrada do nosso país numa ALCA que signifique a livre
ingerência da Casa Branca nos negócios internos dos países América Latina.
Anne Krueger, diretora do FMI, esteve há dias no Brasil e exigiu dos candidatos
presidenciais compromisso antecipado com o Fundo. Quem não se dá o respeito
escuta desaforos como este. Felizmente a urna não morre de amores pelo mercado.
* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Emir Sader, de Contraversões
civilização ou barbárie na virada do século (Boitempo), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/106228
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