Capitalismo e democracia
26/09/2002
- Opinión
Como sistema capaz de prover os direitos básicos do cidadão, o capitalismo
fracassou na maioria dos países do mundo. Basta lembrar que 80% da produção
industrial do planeta são absorvidos por 20% da população mundial. Apenas quatro
empresários norte-americanos possuem fortuna pessoal superior ao PIB de 48 nações
com 600 milhões de habitantes (ONU/99).
O caso do Brasil é, infelizmente, exemplar. Aqui, o capitalismo deu certo para
menos de 20% da população. No alvorecer do Terceiro Milênio, nosso país ainda não
logrou implementar reformas que ocuparam a pauta européia há dois ou três séculos,
como a reforma agrária, a distribuição de renda, a seguridade social e o fim do
analfabetismo. Convivemos com estruturas arcaicas, trabalho escravo, e 2,8 milhões
de crianças, entre 10 e 14 anos, fora da escola e dentro do mercado de trabalho
por força da subsistência familiar (IBGE/2000).
Não podemos nos prender à camisa-de-força do Iluminismo. Devemos nos apoiar em
novos paradigmas. Ao conceito de indivíduo, prefiro o de pessoa, segundo a ótica
holística: cada ser humano é um nó de relações - com os outros, a natureza e
Deus.
O filósofo Leandro Konder sublinha a proposta de um "socialismo personalizante",
onde o vínculo entre o indivíduo e o universal seja mediatizado pelo comunitário,
fazendo eco ao pensamento de Emmanuel Mounier e, mais recentemente, ao filósofo
brasileiro Manfredo de Oliveira.
Repensar o socialismo supõe não identificá-lo com o regime derrubado pelo Muro de
Berlim, assim como a história da Igreja não se resume à Inquisição. Se somos
cristãos, é porque o evangelho de Jesus encerra determinados valores, como a
natureza sagrada de toda pessoa, que servem inclusive de juízo condenatório ao que
representou a Inquisição.
Do mesmo modo, a história das sociedades solidárias, fundadas na partilha dos
bens, deita raízes nos primórdios da humanidade. São exemplos a polis grega; as
tribos hebraicas; o cristianismo primitivo; os povos indígenas tribalizados; as
redes de economia solidária, como as cooperativas; os mutirões populares; as
Comunidades Eclesiais de Base; e os 1.500 assentamentos organizados pelo MST em
todo o país.
Uma proposta alternativa de sociedade deve partir de práticas concretas, nas quais
economia e política se coadunam. Uma das razões da atual crise brasileira é a
esquizofrenia neoliberal que divorciou a economia da política. O governo Fernando
Henrique Cardoso fala em política democrática e adota uma economia centralizada,
autoritária. Brasília traça a pauta política e Washington (FMI), a econômica.
É o contrário do período ditatorial, quando tínhamos uma economia voltada aos
interesses nacionais, a ponto de produzir o "milagre brasileiro", com espantoso
crescimento anual (malgrado a marginalização de amplos setores da população e o
endividamento externo), e uma política regida por atos institucionais acolitados
pelo pau-de-arara e o fuzil.
Fortalecer os movimentos sociais e multiplicar as iniciativas comunitárias de
economia solidária, onde todos tenham vez e voz, são as vias para impedir que o
Brasil retroceda para o autoritarismo. Segundo o IBGE, 2/3 de população
brasileira, cerca de 111 milhões de pessoas, sobrevivem com renda mensal de, no
máximo, dois salários mínimos. E apenas 9,8%, pouco mais de 16 milhões de pessoas,
têm renda mensal superior a cinco salários mínimos. A consolidação da democracia
depende, agora, da capacidade de se enfrentar a questão prioritária: erradicar as
desigualdades sociais.
* Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto autobiografia escolar" (Ática),
recém-lançado, entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/106426?language=en
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