Destino de cão
29/11/2002
- Opinión
Depois que João Ubaldo Ribeiro, num domingo de agosto deste ano,
ter contado a história do cachorro Bingo, do Maranhão, tratado como
gente, na prisão, me animei a contar também a minha história de cachorro.
Sim, a história de um cachorro, pasmem, que não quis ser gente. Talvez se
ele conhecesse a história de seu irmão Bingo, em terras dos Sarneys, até
arriscasse a ser gente. Mas tenho dúvidas.
Isso ocorreu na última semana de junho de 1969, quando estava terminando
meus estudos em Munique, na Baviera. Todos os dias ia cedo à
Universidade, cruzando belissimo jardim, o Parque Inglês, que terminava
praticamente em frente ao edifício central da Universidade.
Num canto da ponte, por onde sempre ia, me aguardava, todos os dias,
durante uma semana, estranho cachorrinho. Em si não tinha nada de
especial. Era um Köter, diriam os alemães, e nós, um vira-lata. Mas, me
esperava fielmente lá. E ao passar, me seguia os passos, até deixar o
parque. Eu atravessa a rua, o olhava como quem se despede, maravilhado e
ia para meus estudos. E ele desaparecia. Como me presumo franciscano e
irmão dos animais, também deste cachorro, não o enxotava. E assim me
seguiu de segunda à sexta-feira. Comecei a me perguntar o por quê de tão
estranho fato. Como teólogo franciscano, descartava a possibilidade de
uma reencarnação regressiva. Veio-me à mente outra idéia, menos herética,
ligada a C. G. Jung que eu na época estudava com entusiasmo. Ele aventa a
hipótese de arquétipos que em nós vicejam, ancestrais, cósmicos,
vegetais, animais e humanos. Quem sabe, não estaria eu diante de um
arquétipo ancestral, emergindo nesse vira-lata em busca de um similar,
habitando em mim?
Lá ia eu com tais pensamentos. Cheguei até a discutir as possíveis
hipóteses com os colegas doutorandos do convento, vindos de várias partes
do mundo, à noite, entre uma cerveja bávara e outra. E todos ríamos
muito.
Certo dia, decidi tirar a limpo a questão. Tinha que ser com o cachorro
mesmo. De repente, me voltei a ele e lhe perguntei em alemão: Willst Du
Mensch werden? Em linguagem de cristão: Você quer ser gente? Qual não foi
minha surpresa, ao ver o cachorro sair em grande disparada. De vez em
quando parava, me olhava, assustado e retomava a corrida. E assim fez por
três vezes até desaparecer.
Feliz dele. Ao ouvir o castigo que lhe queria impôr, convidando-o a ser
gente, se safou como o diabo da cruz. Pretendi ter escutado:"Eu, deixar
de ser cachorro e virar gente? Vida de cachorro é muito melhor, não só
no Maranhão de João Ubaldo, mas em qualquer parte do mundo". Eu, por
exemplo, invejo meus dois cachorrinhos, Fox Paulistinha, Bugui e Kika.
Eles não se angustiam como eu, brincam o dia todo e não lhes falta
comida, médico e carinho.
Esse destino de cachorro gostaria que tivessem as crianças de meu
país. Milhões delas não comem, não têm médico nem carinho. Por que? Essa
é uma questão para todos nós refletirmos, o Presidente Lula e seu governo.
Agora posso entender por quê o cachorrinho bávaro não quis ser gente.
Teria que deixar o paraiso cachorral e ingressar no inferno terrenal. Até
quando deixaremos que os cachorros tenham sorte melhor que nossas
crianças?
* Leonardo Boff, Escritor
https://www.alainet.org/es/node/106640
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