Tregua zero
03/12/2002
- Opinión
Nas últimas semanas a imprensa tem se dedicado a pautar toda e qualquer
iniciativa que o governo Lula sinaliza. A que mais destaque recebeu foi o anúncio
da prioridade em torno do programa da fome. Nada mais justo e importante. A
sociedade brasileira é a mais desigual do mundo, segundo as estatísticas da ONU.
Portanto, a mais injusta. É o lugar do nosso planeta onde existe mais diferença
entre os ricos e os pobres. Nenhuma outra sociedade é tão perversa.
A pobreza e a desigualdade social são um flagelo que dizima, de mil e uma formas,
milhões de brasileiros impedidos de se realizarem como cidadãos e sobreviverem
como pessoas. Milhões de brasileirinhos não têm sequer o direito de serem
adolescentes. Morrem antes.
E essa perversidade se agravou nos últimos 10 anos com a adoção de um modelo
neoliberal, que trouxe ainda mais desigualdade social e aumentou de 32 para 56
milhões o numero de brasileiros que se alimentam aquém das necessidades.
Mas "a fome é apenas uma manifestação biológica provocada por uma causa
política, que são as estruturas injustas da sociedade", já havia nos ensinado na
década de 50 o grande mestre Josué de Castro, primeiro presidente da FAO
(organismo da ONU para alimentação e agricultura).
Ouvir, agora, do nosso presidente Lula o compromisso de que seu governo vai
priorizar o combate a fome é uma demonstração clara de que finalmente teremos um
governo comprometido em atacar o pior e mais grave problema de nossa sociedade: a
pobreza e a desigualdade social!
Os movimentos sociais que compõem a Via Campesina Brasil, como o MST, o MPA
(Movimento de Pequenos Agricultores) o MAB (Movimento dos Atingidos por
Barragens), o movimento das mulheres rurais, com apoio das pastorais sociais das
igrejas cristãs, nos sentimos plenamente identificados e regozijados, porque o
objetivo final de nossos movimentos é, em outros termos, eliminar a pobreza e a
desigualdade social no meio rural.
O programa Fome Zero apresentado pelo programa de governo é uma bela proposta.
Amplo, evoca a necessidade de políticas de caráter estrutural, como a reforma
agrária e a distribuição de renda; políticas específicas, como atendimento
emergencial de cestas básicas; e políticas locais, que envolvam toda a sociedade
no combate à fome e à pobreza. Estranhamente, muitos setores da imprensa
preferiram criar uma falsa polêmica, debatendo apenas a utilidade de uma possível
distribuição de cupons. Talvez tenham feito isso justamente para evitar o debate
com a sociedade sobre as verdadeiras causas da fome, da pobreza e da desigualdade
social, que são os 500 anos de dominação de uma elite despudorada e sem nenhum
compromisso com o povo brasileiro.
Os movimentos sociais que pertencemos à Via Campesina estamos apoiando plenamente
esse compromisso do governo Lula, de colocar como prioridade o combate à fome.
Não só apoiaremos, mas nos engajaremos, contribuindo de todas as formas possíveis
para combater as causas da pobreza e da fome, que são o latifúndio e o modelo
neoliberal na agricultura. Em nossos movimentos atuaremos para que se acelere a
reforma agrária, se fortaleçam a agricultura familiar, as cooperativas, as
pequenas e médias agroindústrias, e que se reorganize a produção agrícola de
alimentos e para o mercado interno.
De nossa parte não haverá trégua, nem um minuto de trégua, contra as causas da
pobreza, da fome e da desigualdade.
* João Pedro Stedile, da direção nacional do MST, e Frei Sergio Gorgen, da direção
do MPA, integram a Comissão Nacional da Via Campesina Brasil.
JORNAL DO BRASIL,[03/DEZ/2002]
https://www.alainet.org/es/node/106663
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