Boas intenções e pequenas idéias não bastam

07/12/2002
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A dependência externa e a hegemonia do capital financeiro se expressam, no campo do pensamento, em duas características especialmente perversas: a incapacidade de vislumbrar uma agenda própria de desenvolvimento e a tirania das questões de curto prazo. Juntas, elas formam uma herança intelectual que o ciclo neoliberal tornou muito pesada. Nossa sociedade perdeu a capacidade de reconhecer as questões realmente relevantes – aquelas que fazem história – e de organizar-se para enfrentá-las. Um dos maiores desafios que temos é o de sair dessa ratoeira. Precisamos, é claro, enfrentar as vicissitudes do momento, expressas principalmente nos constrangimentos macroeconômicos, porém de forma a nos libertar delas rapidamente, para desenhar uma nova agenda nacional. Para isso, uma boa gestão de governo não basta; tampouco bastam ações espetaculares, midiáticas, tão a gosto dos nossos políticos. É preciso recuperar a capacidade de ter grandes idéias e realizar iniciativas ousadas. Temos de nos livrar da cultura do "não pode", ou "não dá para fazer". As condições essenciais para preparar esse salto, entre nós, ainda estão por criar-se; são de natureza política (projeto próprio e vontade) e cultural (identidade clara e auto-estima elevada). Grandes países periféricos, como os Estados Unidos do século XIX e a China do século XX, já enfrentaram esse tipo de desafio, cada um ao seu jeito, e só obtiveram êxito quando ousaram recusar o lugar que lhes fora atribuído pela ordem internacional de seu tempo. Pagaram os custos associados a tal decisão. Sofreram pressões. Cometeram erros e aprenderam com eles. Ao fim e ao cabo, conseguiram sair da condição periférica. Entre outras coisas, isso exigiu enorme esforço para dominar a ciência e a técnica universais, de um lado, e identificar as especificidades e vantagens comparativas locais, relacionadas à natureza (ou recursos) e à cultura (ou potencial de ação humana), de outro. Processos de desenvolvimento sempre exigem essa combinação. Como pensar isso no Brasil contemporâneo, tendo em vista nossa inserção na sociedade do conhecimento do século XXI, sem perder de vista o que somos? Como organizar um projeto coerente em ciência e tecnologia, que dê suporte a um projeto nacional mais amplo? Sugiro atenção em cinco grandes grupos de questões, que – não por acaso – convergem para um dos desafios geopolíticos mais delicados da nossa realidade atual. O petróleo poderá esgotar-se ainda na primeira metade do século. A alteração da matriz energética é um problema mundial, extremamente complexo, e decisivo para a reorganização do poder a médio e longo prazos. As maiores possibilidades de enfrentá-lo estão nos trópicos, através do desenvolvimento de formas, hoje embrionárias, de utilização das fontes renováveis representadas pelo Sol (energia primária) e a biomassa. Depois de Xingó, nenhuma hidrelétrica de grande porte pode ser construída no Nordeste, onde a insolação é mais que abundante; a baixa eficiência dos atuais conversores de energia solar representa um desafio científico que precisaríamos enfrentar. Ainda nessa área, um segundo desafio importante para um país tropical de grandes dimensões é o conhecimento detalhado do mecanismo, ainda bastante obscuro, de armazenamento biológico da energia solar, ou seja, da síntese dos hidratos de carbono no processo de fotossíntese, muito mais intenso nos trópicos; quem o conhecer bem e conseguir torná-lo mais eficiente abrirá novas perspectivas. Um terceiro desafio diz respeito aos combustíveis líquidos. Com um esforço que está ao nosso alcance, o Brasil poderia consolidar uma dianteira significativa no aproveitamento energético da biomassa, em nível mundial. Resolvidas algumas questões técnicas residuais, a utilização de palmeiras nativas, como o dendê e a pupunha, pode produzir em torno de 12 toneladas de óleo de alto teor calorífico por hectare (70% mais energia por área plantada que o álcool produzido a partir da cana-de-açúcar). O óleo vegetal assim obtido é o único combustível renovável conhecido capaz de substituir o diesel. Estima-se que o plantio de árvores leguminosas, mescladas com palmeiras, em 35% da área amazônica já desflorestada poderia sustentar uma produção de óleo suficiente para substituir todo o diesel que usamos. O segundo vetor em que poderemos produzir o nosso próprio salto é nas condições de sustentabilidade da produção agrícola. Trata-se de outro problema que será central no século XXI, diante do esgotamento, em curso, do modelo baseado na utilização intensiva de insumos químicos e venenos. Para dobrar a produção mundial de alimentos foi necessário multiplicar por 9 a aplicação de fertilizantes e por 32 a de pesticidas, com a conseqüente destruição de solos, o aumento da poluição e o consumo exagerado de recursos e de energia, cada vez mais escassos. A alternativa mais promissora parece ser o desenvolvimento de linhagens de microrganismos que fazem a fixação biológica do nitrogênio (FBN) atmosférico, eliminando a necessidade de fertilizantes nitrogenados. O Brasil tem condições de assumir a liderança mundial no desenvolvimento da FBN, que poderá vir a ser a chave de uma futura agricultura sustentável e de alta produtividade. Não só detém a capacitação necessária (as variedades de soja selecionadas aqui são as únicas no mundo que têm alta produtividade sem a necessidade de aplicação de fertilizantes nitrogenados, e a FBN aplicada à cana-de- açúcar foi decisiva para a aplicação do Pró-álcool), como também as condições ambientais mais propícias. O balanço energético da FBN no ambiente brasileiro é altamente positivo, enquanto nos países frios do Norte fica em torno do valor, economicamente inviável, da unidade. Um terceiro exemplo diz respeito às chamadas biotecnologias, que são a nova fronteira para onde diversos ramos industriais, como o de fármacos, tende a migrar. O auge da indústria farmacêutica tradicional ocorreu entre as décadas de 1930 e 1970, com sucessivas descobertas de compostos químicos e antibióticos. Desde a década de 1980 o ritmo de inovações diminui consideravelmente, muitas patentes importantes caducam, a capacitação tecnológica de novos países aumenta, tudo isso provocando queda na rentabilidade do setor. Daí o esforço, dos países desenvolvidos, para abrir e controlar um novo ciclo, inclusive por patenteamento de seqüências modificadas de ADN. A emergência da problemática da biodiversidade deve ser compreendida no contexto do surgimento desse ciclo de inovações, com a genética e a biologia molecular passando da condição de ciências básicas para a de ciências aplicadas. A informação genética em estado natural permanece sendo sua base fundamental, pois o homem não cria genes, apenas os maneja. É principalmente como estoque de matéria-prima para as biotecnologias que a biodiversidade assume um caráter estratégico, tornando-se a questão que evidencia hoje, com particular clareza, os nexos entre ciência, tecnologia, meio ambiente e geopolítica. Cerca de 60% do estoque de material genético do planeta estão concentrados na Amazônia. Ao lado desse estoque, a água doce tenderá a ser o principal recurso natural do futuro, pois começa a escassear e é o único recurso que jamais poderá ser substituído. A água é a miraculosa molécula da vida – grande parte do nosso corpo é feito com ela –, de modo que substituí-la corresponderia a reinventar a própria vida, o que está muito acima da nossa imaginação. A América do Sul detém reservas hídricas gigantescas, concentradas principalmente no Brasil. Nossa matriz energética, de natureza basicamente hidrelétrica, multiplicou grandes reservatórios por todo o território, passíveis de múltiplos usos. Na Amazônia, a cobertura vegetal comanda um mecanismo que recicla 6 a 7 bilhões de toneladas de água doce por ano. Para ficarmos apenas no problema da alimentação, a calha central do rio Amazonas, seus grandes afluentes e os lagos de várzea poderão ser transformados na mais importante fonte mundial de proteína animal de alta qualidade e de baixo custo, através de uma piscicultura organizada e sustentável, com o manejo racional das 2 mil espécies de peixes e outras tantas de crustáceos que vivem ali, confinadas pela própria natureza, e cujos ciclos biológicos precisam ser melhor conhecidos. A fertilidade das áreas de várzea pode transformar a região em grande produtora de outros alimentos. Por fim, como não existem doenças parasitárias nos países mais ricos, de clima frio ou temperado — e como, mesmo no Terceiro Mundo, elas atingem principalmente as populações mais empobrecidas —, até hoje não se desenvolveram mecanismos eficazes para seu controle. Apesar disso, do ponto de vista científico, já estão bem estabelecidos os princípios que podem levar, em curto prazo, à produção da vacina contra a malária, que abriria o caminho para vacinas contra as demais doenças parasitárias. Calejadas pela experiência da luta no Vietnã, as forças armadas dos Estados Unidos financiam hoje o grupo de ponta nessa pesquisa, em Nova York, liderado por um casal de cientistas brasileiros que não encontrou boas condições de trabalho aqui. O desenvolvimento de uma medicina e de uma poderosa indústria farmacêutica ligadas aos problemas do Terceiro Mundo é outro campo científico e tecnológico em que o Brasil pode assumir posição de destaque. Não por acaso, as linhas de pesquisa apontadas têm relação direta, embora não exclusiva, com o potencial da região amazônica, cuja plena integração constitui um desafio estratégico para o Brasil. Já no século XX — recentemente, pois —, pela obstinação e o talento de Rio Branco, obtivemos o direito jurídico sobre a região, que representa cerca da metade do nosso país. Mas não desenvolvemos um modo de ocupação adaptado às condições e à potencialidade da floresta tropical úmida, ali amplamente dominante. Por não o termos desenvolvido, mantivemos frouxamente ligados ao conjunto do território enormes extensões, praticamente desabitadas e, mais recentemente, agredidas por uma exploração predatória e irracional. Tampouco povoamos nem estruturamos de forma suficientemente firme as fronteiras externas ali. As pressões demográficas e econômicas internas, mas, principalmente, o aumento da importância da região no mundo atual — por seu potencial hídrico, energético, alimentar, mineral e genético —, renovam e apressam o velho desafio. No início do século XX, o petróleo era o recurso mais importante, e suas maiores jazidas estavam depositadas no Oriente Médio. A história dessa região nos cem últimos anos — com guerras intermináveis, ocupações estrangeiras, modificações de fronteiras, extinção e criação de países — testemunha como é explosiva a combinação de recursos estratégicos e sociedades fracas. O ciclo do petróleo está chegando ao fim. Inicia-se o ciclo da biodiversidade, da água doce e da criação de uma nova matriz energética, baseada em fontes renováveis. Aparece, de novo, a antiga assimetria entre países detentores de poder (científico e técnico, político, financeiro e militar), de um lado, e países detentores de estoques de recursos estratégicos para os ciclos econômicos em gestação. A natureza e a história nos colocaram, no século XXI, nessa segunda condição. A decisão — inadiável — de criar uma instituição nacional poderosa, inteligente, integrada, voltada para incorporar e explorar esse potencial, teria tanta importância para o nosso futuro quanto tiveram, nas décadas de 1940 e 1950, as decisões de criar a Companhia Siderúrgica Nacional, a Companhia Vale do Rio Doce e a Petrobras. Precisamos criar uma "Petrobras da Amazônia", que coordene o trabalho de botânicos, zoólogos, biólogos, geógrafos, geólogos, metereologistas, virologistas, especialistas em engenharia genética, engenheiros florestais, agrônomos e dezenas de outros tipos de especialistas, em grande número, capazes de inventar – trabalhando junto com as populações locais – um modelo inteligente, moderno e sustentável para o desenvolvimento da região e o aproveitamento dos seus recursos. Além disso, no contexto da edificação de um projeto comum de cooperação e desenvolvimento, é urgente que o novo governo brasileiro proponha, aos demais países da bacia amazônica, um tratado que impeça a presença de tropas militares estrangeiras na região. Isso só será possível, é claro, se nós mesmos não dermos o mau exemplo de entregar o controle da base de Alcântara aos Estados Unidos. Tudo isso exige, como disse acima, a criação de um novo ambiente político, cultural e ideológico, no qual possamos nos libertar das agendas impostas de fora para dentro e dos condicionamentos do curto prazo, voltando a pensar a perspectiva da nação em uma temporalidade estendida. Um ambiente que nos permita identificar e enfrentar as novas grandes questões, que já estão colocadas. Se não fizermos isso, o ciclo neoliberal – embora derrotado nas eleições – não será de fato encerrado. * César Benjamin integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular e é autor de A opção brasileira (Rio de Janeiro, Contraponto Editora, 1998, nona edição).
https://www.alainet.org/es/node/106716?language=en
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