Com-paixão
17/01/2003
- Opinión
Muitos estranharam que nessa coluna tivesse escrito que "sem compaixão
(no sentido budista) não se combate a fome". Por que "no sentido
budista"? Sim, porque compaixão, no sentido comum, possui uma conotação
despectiva: é ter somente peninha, sentimento que rebaixa o outro, pois
nele vê apenas a fome de pão e não também a fome de beleza. Poderíamos
entender a com-paixão no sentido do cristianismo originário, sentido
altamente positivo, que é ter miseri-cór-dia, vale dizer, um coração
(cor) capaz de sentir os míseros e sair de si para socorrê-los. Atitude
que a própria palavra com-paixão sugere: ter paixão com o outro, sofrer
com ele, alegrar-se com ele, andar o caminho com ele. Mas essa acepção
não vingou. Predominou aquela moralista e menor de quem olha de cima para
baixo e descarrega uma esmola na mão do sofredor.
Diferente, entretanto, é a concepção budista de com-paixão. Ela tem a ver
com questão básica donde nasce o budismo: qual o caminho que nos liberta
do sofrimento? A resposta de Buda é: "pela com-paixão, pela infinita com-
-paixão". Na atualização do Dalai Lama: "ajude os outros sempre que puder
e se não puder, jamais prejudique os outros" (O Dalai Lama fala de Jesus,
Fisus 1999, pg. 214). Como se vê, nisso Buda coincide com Jesus.
A "grande com-paixão" (karuna em chinês) implica duas atitudes: desapego
de todas as coisas e cuidado para com todas as coisas. Pelo desapego
renunciamos à posse delas e aprendemos a respeitá-las em sua alteridade e
diferença. Pelo cuidado nos aproximamos das coisas para entrar em
comunhão com elas, responsabilizar-nos pelo bem estar delas e socorrê-
las no sofrimento. Eis um comportamento solidário que nada tem a ver com
a pena e a mera assistência. Para o budista o nivel de desapego revela o
grau de liberdade e maturidade que possuo. E o nivel de cuidado, o quanto
de benevolência e responsabilidade tenho para com todas as coisas. A com-
paixão engloba as duas dimensões. Exige, pois, liberdade, altruismo e
amor.
A com-paixão não conhece limites. O ideal budista é o bodhisattva, aquela
pessoa que leva tão longe o ideal da com-paixão que se dispõe a
renunciar ao nirvana e mesmo aceita passar por um número infinito de
vidas só para poder ajudar os outros em seu sofrimento. Esse altruismo se
expressou na oração do bodhisattva:" Enquanto durar o tempo, persistir o
espaço e houver pessoas que sofrem, quero eu também durar até libertá-
las do sofrimento". A cultura tibetana expressa esse ideal através da
figura de Buda dos mil braços e dos mil olhos. Com eles pode, com-
passivo, atender a um número ilimitado de pessoas.
A partir desta compreensão, podemos entender que sem com-paixão não se
combate eficazmente a fome. Importa acolher o pobre como é, como um
sofredor. E simultaneamente cuidar dele como a um co-igual.
A com-paixão no sentido budista nos ensina também como deve ser nossa
relação para com a natureza: primeiro, respeitá-la em sua alteridade,
depois, cuidar dela. Só então usa-la, na justa medida, para o nosso
proveito.
À "guerra infinita" da demência atual, devemos opôr a "com-paixão
infinita" da sapiência budista. Utopia? Sim, mas é a maneira melhor de
mostrarmos a nossa verdadeira humanidade, feita de com-paixão e de
cuidado.
* Leonardo Boff, Teólogo
https://www.alainet.org/es/node/106844
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