Roubo de alma
05/03/2003
- Opinión
O oposto do retrato que desvela é aquele que oculta. Pior ainda, aquele que executa a
mais cruel das rapinagens: o roubo de alma. Contava o sertanista Orlando Villas Bôas
que, entre nossos indígenas, o roubo de alma era a mais temida entre as maldades
cometidas pelos espíritos da floresta. Ela extraía do guerreiro sua principal arma: a
identidade. Para contorná-la, toda a aldeia se enlaçava em torno do corpo esvaziado,
num ritual de rememoração em que a vida, as crenças e os sentimentos da vítima eram
repassados ininterruptamente, até devolver-lhe a essência subtraída.
Conhecemos o ministro extraordinário da Segurança Alimentar e do Combate à Fome,
José Graziano da Silva, há mais de 15 anos. Compartilhamos com ele o orgulho de
ter ajudado a eleger, juntamente com 53 milhões de brasileiros, um presidente da
República operário, nordestino, retirante, que vendeu amendoim e engraxou sapatos
pelas ruas. Orgulho com certeza comungado por todos os brasileiros, mas em
especial pelos nordestinos.
Como professor e pesquisador da Unicamp, e assessor de Luiz Inácio Lula da Silva
desde 1982, o ministro Graziano tem dedicado sua vida a entender as desigualdades
sociais e regionais do Brasil; a decifrar a dinâmica econômica perversa à qual elas
estão atadas; a buscar no conhecimento e na ação política as alternativas para
construir um Brasil único, de todos os brasileiros. Uma nação distinta do apartheid
que nos violenta e nos humilha perante o futuro e a civilização. Essa tem sido a sua
ética e a sua prática. Ao definir o combate à fome e à pobreza como prioridades
máximas de seu governo, o presidente Lula deu a José Graziano da Silva a missão de
implantar e coordenar o Programa Fome Zero.
É talvez o grande desafio nacional do século XXI. Aquele que pode mudar a face do
país. Hoje, a vida de 46 milhões de brasileiros é um feixe de incertezas atado a uma
renda per capita inferior a US$ 1,08/dia (portanto, abaixo da linha da pobreza do
Banco Mundial). Praticamente a metade desse Brasil habita pequenos núcleos
urbanos do sertão nordestino. Outros 50% estão concentrados nos bolsões de miséria
dos grandes aglomerados metropolitanos.
Para reintegrar esse Brasil à cidadania, o programa Fome Zero prevê cerca de 40
ações. Desde as emergenciais, como o cartão-alimentação, até as estruturais, como a
intensificação da reforma agrária, alfabetização e fomento à agricultura familiar.
Inclui, além disso, iniciativas específicas para pequenas localidades e áreas
metropolitanas - como restaurantes populares e bancos de alimentos.
Foi para exortar dirigentes empresariais de São Paulo a se engajarem nessa corrente
que o ministro Graziano esteve na Fiesp, no dia 7 de fevereiro. Foi propor que as
grandes indústrias firmem parcerias com pequenos municípios do semi-árido
nordestino. Não como um gesto de filantropia episódica ou assistencialismo fugaz.
Ao contrário. O que o levou à Fiesp foi o entusiasmo diante de uma idéia
desenvolvida pelo Instituto Ethos de São Paulo, de pronto incorporada ao Fome Zero.
Trata-se de engajar o empresariado numa ação duradoura, extensiva por quatro anos,
durante os quais as carências mais agudas de mil localidades - as mais pobres do país,
boa parte delas gravemente atingida pela seca - serão mapeadas e equacionadas com
planejamento, recursos e solidariedade. Ao concluir sua exposição de quase meia
hora, o ministro enfatizou que é fundamental implantar as bases da cidadania ali onde
a sua ausência ainda é facilmente contornável, com geração de oportunidades, renda e
emprego, que possam alavancar dinâmicas locais sustentáveis.
Infelizmente, ao advertir que a omissão diante desse quadro obrigaria as elites a
continuarem a usar carros blindados nas metrópoles do Sudeste, o ministro o fez de
forma ligeira, numa frase apressada, já ao final de uma exposição cujo tempo havia
expirado. Extraída de seu contexto, e divulgada com requintes de sensacionalismo,
soou como se tivesse estabelecido uma relação causal entre migração de nordestinos e
violência urbana.
Decididamente, não foi essa a substância de sua intervenção; não é esse o seu
pensamento; não é a sua prática política; não é a sua trajetória intelectual. Em poucas
palavras, não é a sua identidade. Seccionar sua biografia e sua obra e reconstruí-la a
partir de um tropeço verbal é apenas um truque raso de ocultação. Não é um retrato,
mas um borrão.
A raiz da violência que nos apavora está na exclusão social. Sabemos todos. Sabe o
ministro José Graziano, até com mais autoridade, visto que é um dos principais
estudiosos dos desequilíbrios fundiários e sociais do país. A todos que, por não o
conhecerem, e subtraídos do contexto respectivo, enxergaram na frase do ministro a
mácula do preconceito, reconhecemos o direito à indignação. Nosso testemunho,
porém, visa a demonstrar que não é justo que se pratique a partir daí o exercício
kafkiano de transformar uma pessoa no seu oposto.
Tem razão no entanto quem enxerga nesse desafio uma maratona de longo curso.
Porém ela já começou. A luta contra a fome pode funcionar como um atalho capaz de
sacudir os pilares da pobreza e antecipar o reencontro do Brasil consigo mesmo. Mas
para que o futuro não seja mera repetição do passado, é vital que a sociedade se
engaje nessa grande transformação.
Esta foi a substância da mensagem transmitida pelo ministro José Graziano da Silva
em seu depoimento na Fiesp. Ela reflete não apenas uma filosofia de governo, mas a
identidade do ministro e do intelectual que conhecemos e respeitamos. Ignorá-la é
pior que deixar de informar; é cometer um perverso roubo de alma. Não apenas
contra ele. Mas contra todos os brasileiros que lutamos por construir um só país, livre
de qualquer tipo de segregação e preconceito.
Quer-se reconstruir a biografia do ministro Graziano a partir de um tropeço verbal
* Oded Grajew e Frei Betto são assessores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
https://www.alainet.org/es/node/107065
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