Brevemente saberemos

16/03/2003
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Temos de ser capazes de enfrentar a verdade de que, na medida em que o tempo corre, as esperanças no governo lula se esvaem. "É cômodo acreditar no que nos consola. Mais difícil é perseguir a verdade." Isso nos disse Nietzsche. Em outro texto, retomando um tema e um estilo que sempre lhe foram tão caros, o filósofo alemão pergunta de chofre ao leitor: "Quanta verdade você é capaz de suportar?" Pensei nisso ao refletir sobre esses quase dois meses de governo Lula. Como todos os demais, é um governo heterogêneo. Como todos, contém pessoas bem-intencionadas. Porém, na medida em que sua agenda central e propositiva vai se definindo, na medida em que vamos conhecendo suas iniciativas que terão impacto a longo prazo, as esperanças se esvaem. Em poucas semanas, foram colocadas em curso ou aceleradas: a) a entrega, de papel passado, do Banco Central ao sistema financeiro, operação que Celso Furtado classificou de "privatização do Banco Central"; b) reformas regressivas na Previdência e na legislação trabalhista, cujo efeito é jogar pobres contra remediados, remediados contra pobres, sob aplausos e gargalhadas dos ricos; c) a olímpica manutenção das negociações para a formação da ALCA, sem nenhuma abertura para que a sociedade se informe, participe e opine; d) o compromisso de facilitar a aprovação de uma lei que garantirá, ao capital estrangeiro, a possibilidade de controlar até 100 por cento de parte significativa do sistema brasileiro de telecomunicações (por enquanto, as televisões a cabo). Entre o que está em curso até aqui, eis o que é verdadeiramente importante. O resto, inclusive o famoso Fome Zero, é varejo. Mais conservador que FH A isso se soma a adoção de uma política econômica mais conservadora que a de Fernando Henrique Cardoso. Ela aumentará em curto prazo o desemprego, tendo como ponto de partida um patamar, já insuportável, de 20 por cento de força de trabalho ociosa. Ao apostar suas fichas na criação e manutenção de megassuperávits comerciais, em um contexto de recessão interna e baixa liquidez internacional, essa política introduzirá novas pressões inflacionárias, que só poderão ser contidas pela já tradicional combinação de emissão de dívida interna e arrocho salarial, pois não há outra âncora disponível. Com o crescimento da dívida, serão necessários juros mais elevados. Manter- se-á acionado, como se vê, o moto-contínuo que conhecemos tão bem. Caberá ao ministro Palocci repetir pateticamente que "não há alternativa" à esdrúxula combinação de recessão com inflação. A grande imprensa, em ação coordenada, cuidará de isolar os "radicais". Estamos a caminho da nossa terceira década perdida, em seqüência. Ninguém pode prever que efeitos isso terá sobre o que resta do tecido social brasileiro e sobre o próprio funcionamento das instituições. Fala-se, é certo, em mudanças e reformas. Nada de novo. Ninguém se diz conservador no Brasil, principalmente nos últimos anos, quando fomos lançados em uma trajetória em que a situação normal é a de uma crise disseminada e crônica, que de tempos em tempos se torna dramática. As pessoas já sabem que é preciso mudar, mas ainda não sabem como e para onde mudar. A necessidade de transformar as circunstâncias vigentes é clara, mas o caminho para isso permanece indefinido. Sem ter sido tomada, a decisão de mudar fica pendente, mas a necessidade de tomá-la não desaparece. Nesse contexto, o pensamento conservador, para se legitimar, precisa acenar com "reformas" que estão sempre incompletas. Lula segue o mesmo caminho. Se seu projeto de governo não for profundamente alterado, sua eleição, vista em perspectiva histórica, terá sido a mais engenhosa operação política realizada pelas elites brasileiras em toda a nossa história. Quem, senão Lula, com sua trajetória de vida e sua credibilidade, poderia, quase sem oposição, aprofundar um modelo falido, destrutivo e repudiado pelo povo brasileiro? Quem, senão o PT, poderia realizar as "reformas" ainda pendentes do projeto neoliberal, reformas que Fernando Henrique tentou e não conseguiu levar adiante, em parte, porque o próprio PT a elas se opunha? São hipóteses perturbadoras. Quanta verdade somos capazes de suportar? Porém, há um momento de inflexão a caminho. Quem sabe, uma janela de oportunidade. Ela ocorrerá, paradoxalmente, depois que os Estados Unidos e a Inglaterra atacarem o Iraque. A conjuntura mundial se tornará mais desfavorável. Lula terá de tomar decisões. Se confirmar e aprofundar a orientação atual, aproveitando os eventos externos para justificar dificuldades internas crescentes, como sempre fez Fernando Henrique Cardoso, cometerá suicídio. Neste caso, o Brasil persistirá em sua trajetória recente, de ajustes passivos ao cenário internacional, esperando obter recompensas ao reiterar sua condição de pedinte bem comportado. A Argentina fez isso, até o fim. O presidente pode, no entanto, reencontrar a melhor tradição brasileira, a de realizar ajustes ativos. As crises internacionais criam dificuldades extremas a países pobres portadores de fragilidades estruturais quase insuperáveis. Países como o Brasil - dotados de grande território, recursos naturais, população, capacidade técnica, base industrial, influência regional - freqüentemente produzem seus próprios saltos qualitativos nessas conjunturas difíceis. Pois, quando o centro do sistema-mundo se torna menos capaz de exercer pressões e acenar com as aparentes facilidades de sempre, esses grandes países periféricos são levados a olhar para si. Reencontram, então, potencialidades que estavam ocultas. Mobilizam forças subutilizadas. Reconstroem caminhos. Ampliam suas margens de manobra. Procuram-se estadistas A grave crise mundial de 1929 desarticulou nossa economia primário- exportadora de café; reagimos, a partir da Revolução de 1930, iniciando a construção de uma moderna economia industrial. Em seguida, na gravíssima crise que antecedeu a eclosão da Segunda Guerra, com o sistema internacional em colapso e a hegemonia mundial em disputa, jogamos com muita habilidade e demos o salto decisivo para a nossa industrialização pesada, com a construção de Volta Redonda, sem a qual o Plano de Metas não teria existido. A primeira crise do petróleo, em 1972, preparou o II PND, que conduziu o processo de substituição de importações até os insumos básicos, fechando um ciclo. Parece que, a curto prazo, teremos guerra, recessão, crise de liquidez e incertezas de todo tipo no mundo. Resta saber se teremos, no governo do PT, políticos que se dedicam, antes de tudo, a governar a si próprios, distribuir cargos e benesses, dizer banalidades a platéias seletas e surfar no marketing. Ou se teremos estadistas capazes de lançar um olhar sincero, confiante e amoroso para o povo brasileiro, mobilizá-lo, reconhecer o potencial do país e antever as novas oportunidades que se abrirão. A depender da resposta, o governo Lula pode acabar brevemente, sem ter sequer começado, passando a existir como um simples espectro. Ou então pode inaugurar-se, para alívio de todos nós. Brevemente saberemos. P.S. Com o artigo pronto, ligo a televisão e vejo o ministro Palocci justificando a alta de juros para 26,5 por cento "por causa de pressões inflacionárias inesperadas". (Inesperadas por quem, cara pálida?) Esse aumento de 1 ponto percentual nos juros, decretado no exato momento em que eu escrevia, representará gastos de mais 5 bilhões de reais na rolagem da dívida interna neste ano, quantia equivalente a quase três Fome Zero. Que mais precisa ser dito? * César Benjamin é autor de A Opção Brasileira (Contraponto Editora, 1998, nona edição) e integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular.
https://www.alainet.org/es/node/107114?language=en
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