Aprendizes de feiticeiro

02/04/2003
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O grupo fundamentalista que governa os Estados Unidos desde o golpe de Estado que levou George W. Bush ao poder lançou-se recentemente em um segundo golpe de Estado, mais abrangente, desta vez dirigido contra o sistema jurídico e político internacional. Sua doutrina, expressa no chamado Project for the New American Century, fala em implantar uma "dominação de espectro amplo", baseada principalmente na consolidação de uma esmagadora superioridade militar e justificada moralmente pela necessidade de expandir para todo o mundo os valores norte-americanos, identificados com o bem. De Bíblia em punho, Bush discursou sobre o "Deus verdadeiro" antes de assinar sua mais recente declaração de guerra. Em apenas três anos no poder, agindo sempre de forma unilateral, esse grupo atentou contra todos os fundamentos, internos e externos, da democracia e da civilização: aboliu direitos civis dentro dos Estados Unidos; boicotou o Protocolo de Kyoto, sobre o clima; retirou-se do Tratado de Mísseis Balísticos; impediu o avanço das negociações para a Convenção contra Armas Biológicas; recusou-se a submeter seus soldados à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, criado para julgar crimes de guerra; não assinou o acordo mundial para banimento das minas terrestres; incrementou a tensão militar entre as duas Coréias e entre China e Formosa; instalou, pela primeira vez, bases militares na América do Sul; apoiou uma política genocida na Palestina; ameaçou intervir em pelo menos meia dúzia de países do chamado "eixo do mal"; humilhou a Organização das Nações Unidas. Na esfera militar, os dados são impressionantes: os gastos dos Estados Unidos com armamentos superam hoje, com folga, a soma de gastos realizada pelos outros catorze países que integram a lista dos quinze mais bem armados do mundo. O sentido de tal acumulação de poder é constituir uma nova ordem internacional, cujos contornos estão claros. Em vez de um mundo regido por regras e instituições, por exemplo, teremos aquilo que Donald Rumsfield, secretário de Defesa, chamou de "coalizões de vontade", ou seja, agrupamentos provisórios, criados para fins específicos. A invasão do Iraque tem sido apresentada como uma espécie de projeto piloto dessa nova postura. Creio que a profundidade da mudança em curso ainda não foi captada. Em última análise, ela nos remete de volta ao mundo pré- moderno, àquela pré-modernidade high tech que Holliwood antecipou em muitos filmes, de gosto duvidoso, feitos nos últimos anos. A constituição dos Estados nacionais modernos – e, depois, a constituição do sistema inter-estatal – foi um fenômeno histórico centrado inicialmente na Europa e decorrente da imperiosa necessidade de pôr fim às guerras religiosas que ensangüentaram o continente durante mais de cem anos. O maior teórico desta transição foi Hobbes: para sair do estado de natureza, caracterizado pela guerra de todos contra todos, e inaugurar o estado civil é necessário instituir um poder – o Leviatã – que, em vez de tentar impor um princípio moral universalmente válido, legitima-se, única e exclusivamente, por sua capacidade de garantir a paz, estabelecendo regras mínimas de convivência entre pessoas e grupos. Por isso, o advento da modernidade ocidental foi marcada pela separação dos eixos bem/mal e paz/guerra, o que correspondeu a uma separação entre moral (remetida à esfera privada) e política (submetida à razão de Estado). Nasceu assim o Estado moderno – cuja primeira forma foi a monarquia absoluta –, que passou a concentrar em si o monopólio da violência legítima dentro de determinado território. Junto com ele, nasceu o conceito de soberania política. (Não é preciso enfatizar que o processo histórico vivido por outras sociedades, inclusive as muçulmanas, foi muito diferente.) A partir de então, no espaço europeu abrangido por essa transformação, a invocação de teologias e leis morais deixou de ser um meio legítimo para estabelecer uma ordem política, dado o risco de reabrir a qualquer momento, com aquela invocação, a guerra de todos contra todos. Vattel estendeu o mesmo princípio às relações inter-estatais, fundando a possibilidade de instaurar a paz com base em regras internacionais de natureza também essencialmente política. Essa idéia acabou ganhando forma duradoura na elaboração do conceito de equilíbrio de poder, amplamente predominante, em diferentes arranjos, desde o Tratado de Viena, de 1815, até o fim da União Soviética, em 1991. Ao misturar novamente os eixos bem/mal e paz/guerra, e ao romper o princípio do equilíbrio de poder, o que o grupo de Bush contesta, em última análise, são os dois pilares fundantes da modernidade política ocidental. Pode parecer estranho que este movimento parta de um Estado republicano e democrático. Com efeito, o projeto de paz perpétua, de Kant, formulado no século XVIII, pressupunha que todo os Estados nacionais assumissem justamente a forma republicana de governo, por ela ser considerada menos propensa a decisões arbitrárias: "Se o consentimento dos cidadãos tiver de ser solicitado para decidir se a guerra deve ser travada ou não, nada mais natural que eles reflitam longamente, antes de iniciar um jogo tão ruim, pois se decidirem promovê-la recairá sobre eles mesmos as calamidades da guerra." A mesma idéia aparecera em Montesquieu. No século XIX, no entanto, Tocqueville já não era tão otimista, afirmando profeticamente que o individualismo e o confinamento das pessoas na esfera privada preparariam as condições para a emergência de um novo tipo de despotismo, que chamou de "despotismo democrático": "Essa espécie de servidão, regulada, doce e pacífica, poderá conjugar-se mais facilmente do que se imagina com algumas das formas exteriores da liberdade, e não será impossível estabelecê-la sem que seja necessário retirar a soberania do povo." Os tempos atuais dão mais razão a Tocqueville que a Kant. Embora, pelo seu pragmatismo, a sociedade norte-americana tenha desenvolvido excepcionalmente a técnica, o chamado "Estados Unidos profundo" – de onde vem toda a equipe de Bush – nunca viveu a experiência do Iluminismo, nem incorporou plenamente o conceito de razão. Sua origem, ao contrário, está em grupos religiosos fechados, messiânicos e dogmáticos que agora fornecem o discurso ideológico legitimador da política desejada pelos grandes monopólios capitalistas em crise. Os dois movimentos que articulam esse discurso são complementares, pois a tarefa de levar os valores norte-americanos a sociedades não ocidentais, sendo a-histórica, exige a construção de um superpoder capaz de agir de fora para dentro das sociedades a serem "ocidentalizadas". Criar esse superpoder é romper o equilíbrio de poder. Estamos diante de um novo Leviatã, desta vez não hobbesiano ou até anti-hobbesiano. Pois ele não se constitui para impor a paz, mas para fazer a guerra. Daí o paralelo possível, sentido intuitivamente pelas pessoas, com a experiência nazista. A existência de um poder desse tipo é uma contradição em termos. Ao buscar para si uma legitimação moral – não importa se fundada em religião, costumes ou raça –, ele recusa a política. Ao fazê-lo, recria as condições da guerra de todos contra todos. Com um agravante: ao contrário de impérios que desfrutaram de supremacia em outros tempos históricos, a única superioridade que os Estados Unidos podem reivindicar para si, com veracidade, é a superioridade militar. Em todas as outras esferas – econômica, política, cultural ou moral, por exemplo – essa superioridade pode ser questionada. Estamos diante de um salto no escuro em direção à pré- modernidade, que pode ser vista também na abolição, pelos mesmos Estados Unidos, do exército de cidadãos e a recriação de um exército de mercenários profissionais. Agora, porém, com armas nucleares. Só uma certeza podemos ter: não vai dar certo. A espantosa resistência do povo iraquiano, neste momento, já é um sinal de luz. Esperemos que o cogumelo atômico não escureça tudo, de vez. * César Benjamin é autor de A Opção Brasileira (Contraponto Editora, 1998, nona edição) e integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular.
https://www.alainet.org/es/node/107243
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