O espetáculo da morte e a morte sem espetáculo

19/08/2003
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O Iraque volta à primeira página de todos os jornais. Mais uma vez, a visão é trágica e estarrecedora: corpos ensangüentados em meio a escombros e nuvens de poeira. O mais chocante são os gritos de socorro dos sepultados vivos entre as ruínas. E mais chocante ainda quando ficamos sabendo que entre eles está o apelo de Sérgio Vieira de Mello, um homem cuja trajetória humana e profissional foi o caminho da paz. É grande a lista de lugares por onde ele passou: África, Kosovo, Timor Leste, Rússia, Afeganistão, Iraque, entre outros. Lugares marcados por enormes feridas de guerra e pela necessidade urgente de construir novas alternativas para a convivência humana pacífica. Mas os olhos do mundo, embaçados pelos estilhaços da explosão, encontram-se ainda mais perplexos ao tomar conhecimento de que o prédio atingido foi a sede da ONU em Bagdá. Justamente a ONU que desde o começo se opôs à intervenção militar dos Estados Unidos e seus aliados! Justamente a ONU que, depois de ter-se manifestado contra a via bélica, vinha contribuindo na imensa tarefa de reconstruir o país! O advogado converteu-se em vítima! Nossa perplexidade sobe de grau quando descobrimos uma anomalia ainda mais espantosa: a de que o verdadeiro réu se transforma em promotor. Não presenciamos, logo em seguida aos fatos, o presidente Bush conclamando o mundo a uma nova guerra da civilização contra a barbárie do terrorismo? Não fomos testemunhas, uma vez mais, de seu cinismo em unir os bons contra os maus? Não vimos o chefe da nação que mais produz, vende e consome armas converter-se em arauto da paz? Não, ninguém em sã consciência pensaria em legitimar a atrocidade dos ataques terroristas como reação justa à ocupação norte-americana. A guerra não justifica o terrorismo, nem vice-versa. Mas é inegável que a atitude belicosa dos Estados Unidos no Iraque, no Oriente Médio e no mundo constitui o pano de fundo para o recrudescimento dessa violência cuja espiral perversa tende sempre a crescer. Evidente que a ganância pelo petróleo, o apoio a Israel, os atentados de 11 de setembro, a guerra a Bin Laden e Sadam Hussein e o ataque de ontem constituem uma cadeia de acontecimentos visivelmente entrelaçados. Vale o velho ditado de que "violência chama violência!" Entretanto, na contramão das principais manchetes de hoje e correndo o risco de sermos acusados de miopia, chamamos a atenção para notícias menos bombásticas, de caráter doméstico, mas que têm sido recorrentes nas últimas semanas. Com variações de estilo de um periódico para outro e em datas nem sempre coincidentes, trata-se do seguinte: "sobe o desemprego, cai a renda média do trabalhador e diminui o consumo". Tal constatação aparece, em geral, em letras modestas, nas páginas internas ou no caderno de economia dos jornais, um dos menos freqüentados. Mas seu impacto sobre a população, embora invisível e silencioso, não deixa de ter os efeitos de uma bomba. Afinal de contas, a morte por fome ou desnutrição não é menos trágica do que o espetáculo devastador da guerra ou dos atentados terroristas. O Brasil está chocado, e com razão, diante do fim violento de um de seus filhos que mais lutou contra a cultura da violência. Mais chocada ainda, e com maior razão, encontra-se a família Vieira de Mello. Por isso aproveitamos a oportunidade para orientar o foco de nossa atenção para as vítimas dessa tragédia insana e, simultaneamente, para as vítimas de outras bombas, silenciosas mas não menos insanas, que a cada dia explodem na casa de milhões de famílias brasileiras. Esse enfoque duplo, ao mesmo tempo que respeita a morte de Sérgio e a dor de sua família, procura alertar para a morte nada espetacular de crianças e jovens aos milhares, não raro sob nossas janelas e portas hermeticamente cerradas. Brasília/DF, 20 de agosto de 2003
https://www.alainet.org/es/node/108143

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