Salvador Allende, "El Chicho"

06/09/2003
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Na última imagem que tenho dele, ele estava enquadrado pela mesma janela do Palácio de La Moneda, de onde costumava dirigir-se ao povo chileno. Só que dessa vez o cenário era muito diferente. O Palácio estava cercado pelas tropas golpistas que lhe haviam dado o ultimato de abandonar o Palácio e render-se ou ser bombardeado. De forma inusual para seu temperamento pacífico, Allende tinha na cabeça um capacete que trabalhadores das minas de cobre lhe haviam presenteado e nas mãos um soviético fuzil AK, que havia recebido de Fidel Castro. Ele defendia, com as armas na mão e com sua vida, a democracia que o havia elegido presidente legal de todos os chilenos. Preferiu imolar-se nos destroços do Palácio presidencial em ruínas, para cumprir sua palavra de que só sairia dali no final do mandato que o povo lhe havia dado ou morto, ao invés de terminar seus dias melancolicamente exilado. Quando lhe foi proposto por forças da resistência chilena tentar resgata-lo do Palácio de la Moneda, ele disse que seu posto era aquele, que seriam outras gerações as que "reabririam as grandes alamedas da democracia no Chile". Encerrava assim uma trajetória límpida de militante socialista, que havia começado sua vida política como Ministro da Saúde do governo chileno de Frente Popular em 1938, de forma coerente com sua profissão de médico e sua dedicação aos temas da saúde pública. Candidato três vezes antes à presidência do país, apoiado pela coalizão socialista-comunista, terminou triunfando quando as outras alternativas – da direita tradicional e do centro democrata- cristão – haviam fracassado, em 1970, para levar à prática, pela primeira vez no mundo, um programa de transformações do capitalismo no socialismo, pela via institucional das eleições. Assumiu o projeto, consciente dos riscos e do potencial que representava. Era um socialista convicto da superioridade das soluções que o socialismo representa para a humanidade e era respeitado como tal. O Che, passando uma vez pelo Chile, havia presenteado a Allende com um livro seu, com a dedicatória: "A Salvador Allende, que luta por outros meios, pelos mesmo fim, o socialismo". Posteriormente, foi Allende quem foi resgatar, na fronteira com a Bolívia, os sobreviventes da guerrilha do Che. Era um dirigente de uma integridade inquestionável, que tinha o respeito dos que na esquerda discordavam dele até mesmo de seus adversários. Vivendo a duas quadras do Palácio de la Moneda, pude vê-lo inúmeras vezes saindo dali para circular pela cidade ou para dirigir-se a alguma reunião em algum outro ministério, da forma mais simples e em contato direto com o povo. Sua frase preferida era tirada de um poema de Antonio Machado: "Caminante, no hay camino, se hace camino al andar", consciente de que estava tentando traçar novos caminhos históricos de construção do socialismo, que não estavam nos manuais. Quando, cercado dentro do aparelho de Estado, pela "Justiça", pelo Parlamento, pelas Forças Armadas, com um plano golpista articulado pelo governo de Nixon/Kissinger, pelo grande empresariado, pela maior parte da mídia interna e assumido pela maior parte da oficialidade das FFAA, Allende se lançou à sua última cartada. O apoio eleitoral da esquerda, apesar da crise de desabastecimento gerada pelo grande empresariado e pelo plano de desestabilização interna articulado pelo governo dos EUA, havia subido de 36% em 1970 para 43% em 1973, mas ainda não contava com a maioria dos chilenos, já que a centrista DC se havia deslocado para a direita, formando um bloco golpista opositor. Allende ia convocar um plebiscito que dividiria a oposição. Esta, sem maioria para um golpe parlamentar, se havia decidido pelo golpe militar. Allende ia se comprometer a abandonar o governo, se derrotado no plebiscito, mas considerava que assim poderia manter a institucionalidade democrática, entregando o governo ao presidente do Senado, o ex-presidente democrata cristão Eduardo Frei, dividindo assim a oposição. Na manhã da terça- feira 11 de setembro, para a tarde da qual Allende havia convocado uma cadeia de rádio e televisão para anunciar o plebiscito, eclodiu o golpe militar, antecipado para evitar essa derradeira manobra de Allende. Acordei com os mesmos ruídos de aviões sobrevoando o Palácio presidencial como haviam feito pouco mais de dois meses antes, no final de junho, quando da primeira tentativa de golpe militar, frustrado naquele momento. Saí e pude ver essa derradeira imagem de Allende – chamado de "Chicho", diminutivo de Salvador no Chile. Ele já havia se dirigido pela última vez ao povo chileno, pela única rádio a que ainda acesso, uma rádio da Central Sindical chilena. Depois foi possível ver, da Universidade do Chile, a poucas quadras dali, o bombardeio do Palácio presidencial, depois que Allende respondeu com sonoros palavrões à proposta dos golpista de que abandonasse a sede de governo. Ruía a democracia de mais longa tradição na América Latina e com ela a possibilidade de que um povo possa optar, pela via institucional pela alternativa socialista. Fica o exemplo de Allende, que engrandece a esquerda, enquanto para a direita sobra o espectro de Pinochet e sua devastadora obra de liquidação da democracia no país do continente onde ela tinha deitado suas mais profundas raízes.
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