Quem tem medo de cuba?
25/09/2003
- Opinión
Escrever sobre Cuba na imprensa brasileira é uma aventura, porque é
argumentar sobre um terreno minado pelo clima de "guerra fria" que essa
imprensa mantêm sobre o tema. Saramago nunca foi tão publicado do que
quando criticou a Cuba, nem seu discurso pelo Nobel foi tão publicado,
republicado e citado como esse artigo. Galeano criticou o governo dos EUA
em grande parte do seu artigo, que não foi publicado pela grande imprensa
brasileira, que apenas citou infindáveis vezes a frase em ele critica
Cuba.
Domingo passado a FSP publicou uma página inteira sobre Cuba. As duas
grandes matérias eram frontalmente críticas a Cuba – a de um opositor ao
regime e outro de Walesa e amigos. Nenhum intelectual cubano favorável ao
regime – que são a grande maioria – foi ouvido. Os leitores ficam sem
saber porque Cuba tem um IDH superior aos do Brasil e do México – dado
publicado sem nenhuma explicação, porque contradiz a versão de que o
regime estaria no seu ocaso, com o povo numa situação miserável. Os
leitores também não sabem porque o regime cubano sobreviveu à queda do
Muro de Berlim e que portanto é diferente dos regimes do leste europeu.
Sua legitimidade, aquela que se expressa nas maiores manifestações de
apoio a um governo no mundo, fica incompreendida, além de escondida pelas
mentiras do silêncio que cercam Cuba na grande imprensa brasileira.
Esse quadro típico da "guerra fria" favorece as posições maniqueistas no
debate sobre Cuba. Antônio Cândido – um dos tantos grandes intelectuais
favoráveis ao socialismo cubano – chega a responder, quando é perguntado
se não têm críticas a Cuba, que prefere falar das coisas favoráveis, já
que quase só se fala coisas ruins de Cuba na imprensa. Quem defende o
direito de Cuba decidir seu destino – da mesma forma que os EUA e todos
os outros países – é acusado de ser favorável à pena de morte. Nesse
clima é impossível se desenvolver um debate aprofundado sobre Cuba. Os
espaços de que dispõe os que manifestam um mínimo de isenção em relação
ao regime cubano bastam minimamente para rebater inverdades.
A visita de Lula a Cuba pode ser uma oportunidade para superar esse
clima, atacando pela raiz o clima de "guerra fria". O Brasil pode
contribuir para isso, assumindo a responsabilidade de convocar
negociações para normalizar as relações entre os governos de Cuba e dos
EUA, fechando mais esse capítulo da "guerra fria".
A condição necessária para essa normalização, isto é, o reconhecimento
diplomático mútuo, é que isto se dê sem condições prévias. Cuba aceita
esse tipo de negociação, apesar de que os EUA mantêm a base militar de
Guantánamo a mais de um século na Ilha, onde detêm a grande quantidade de
presos, em condições desumanas e sem qualquer proteção jurídica. Nem
assim Cuba coloca a retirada das tropas norte-americanas como condição
para a normalização de relações. O governo norte-americano, apesar de ser
o agressor – não apenas pela base naval, mas pelo bloqueio e pelas ações
terroristas de todo tipo originadas no seu território contra Cuba -,
demanda a mudança de regime político em Cuba como condição para
estabelecer relações normais com Havana. É uma forma de ingerência
interna nos assuntos de Cuba e uma forma de bloquear qualquer
possibilidade de diálogo, como seria se Cuba pedisse que o regime norte-
americano fosse alterado.
Além dessa contribuição, a viagem de Lula a Cuba tem na incorporação de
Cuba ao esforço brasileiro de integração continental seu principal
aspecto. Cuba foi marginalizada pelas pressões de Washington, excluída da
OEA e de outros organismos regionais. A reparação dessa ação imperial dos
EUA favorecerá um processo democrático de integração latino-americana em
que o Brasil está tão empenhado.
Espera-se que a imprensa brasileira saiba captar esses aspectos
essenciais da visita de Lula a Cuba e não fique mais uma vez pautada pela
mídia norte-americana, como aconteceu, mais recentemente na viagem de
Fidel à Argentina. Dando destaque a temas do regime cubano, perdeu o
impressionante comício que o dirigente cubano fez nas escadarias da
Universidade de Buenos Aires e o discurso que proferiu, destacado
amplamente pela imprensa argentina e desconhecido pela brasileira.
Aliás, para concluir, o tratamento dado sempre a Fidel Castro como
"ditador", é exclusividade dele. Os ex-ditadores brasileiros Castelo
Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo – para não falar de
ditadores e ex-ditadores de outros países – recebem o tratamento de "ex-
presidentes". Resta perguntar: quem os elegeu? Ou eles se apropriaram do
posto por um golpe militar e ai se mantiveram pela força?
Somente isso serviria para mostrar a necessidade de terminar com a
"guerra fria" também na cobertura de Cuba na imprensa brasileira.
Esperamos que a cobertura da viagem de Lula a Cuba seja um passo nessa
direção.
Emir Sader, 60 anos, coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da
UERJ e autor de A vingança da História (Boitempo)
https://www.alainet.org/es/node/108452
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