Mentalidades

12/12/2003
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A viagem do presidente Lula ao Oriente Médio foi o mais marcante, afirmativo e eficiente gesto do governo brasileiro na configuração da nova política externa do país. Em geral, considerados os limites da correlação de forças internacional, as indispensáveis normas diplomáticas e a particular visão de mundo da força que dirige a transição brasileira, é positivo o saldo da política externa do governo às vésperas de completar um ano. A nova orientação do Ministério das Relações Exteriores levou o Brasil a se firmar como país líder na América Latina, sem soberba nem pretensões hegemonistas. Nunca em nossa história, um chefe de Estado em tão pouco tempo promoveu contato direto e pessoal, como fez Lula, com seus colegas dos países vizinhos, com os quais, independentemente de diferenciações políticas e ideológicas e da disparidade de interesses em muitas áreas, formou opinião comum sobre a unidade e a integração latino-americana, aspiração antiga dos povos do Continente. Nessa mesma linha, o presidente Lula visitou Cuba, dialogou com o comandante da Revolução, Fidel Castro e firmou convênios de cooperação em diferentes setores, num gesto de solidariedade que eleva a um novo patamar as já tradicionais relações de amizade entre o nosso país e a revolucionária ilha. O governo das forças democráticas e progressistas brasileiras marcou pontos positivos no âmbito da OMC e nas negociações da ALCA. Quanto ao primeiro aspecto, o Brasil tomou a iniciativa de formar um grupo de países em desenvolvimento para lutar contra o protecionismo dos países ricos. E quanto à ALCA, a política exterior brasileira alcançou a vitória parcial consistente em restringir até agora a integração comercial das Américas a um âmbito menor e distinto do que pretendiam os imperialistas norte- americanos. É uma batalha ainda em curso, que exige a vigilância e a mobilização do povo brasileiro e dos demais povos latino-americanos, que não devem perder de vista que a proposta de ALCA formulada pelos Estados Unidos tem escopo neocolonialista. Mas, por surpreendente que pareça, foi no posicionamento geral, concernente às questões globais, que o presidente Lula se saiu melhor e se destaca como líder mundial. Primeiro na recusa do caminho belicista do imperialismo norte-americano, na defesa da paz e na afirmação do diálogo e do respeito às normas internacionais como os únicos métodos aceitáveis para promover a segurança coletiva. Segundo, na busca do multilateralismo, propondo que o Brasil se torne parceiro estratégico de outros grandes países em desenvolvimento. A viagem ao Oriente Médio proporcionou a ocasião para a reafirmação de todos esses postulados. Na Síria, o presidente brasileiro assinou documento conjunto reiterando críticas à guerra, deu declarações contra a ocupação do Iraque e no Cairo, em reunião com a Liga Árabe, o presidente brasileiro voltou a dizer que a guerra foi um erro e preconizou um novo papel e formato para a Organização das Nações Unidas. De ressaltar o gesto corajoso de visitar dois países renegados pelos Estados Unidos, a Síria, que os imperialistas indexaram como integrante do eixo do mal, e a Líbia. É insofismável que se está formando no Brasil uma nova mentalidade em política externa, um esforço bem construído, cujo centro são a presidência da República e o Itamarati, no sentido de melhor situar o Brasil no mundo, como nação democrática e soberana, capaz também de dar sua contribuição para a formação de uma nova correlação de forças no âmbito internacional, numa época marcada pelo hegemonismo, o militarismo, o belicismo e a espoliação dos povos e nações. À proporção que se vai afirmando tal política, cria- se no país, no interior do próprio governo, um pólo de forças em luta pelo desenvolvimento nacional, incompatível com a orientação neoliberal da chamada política macroeconômica. Talvez seja esta a razão por que a política externa e seu centro formulador e executor, o Itamarati, estejam sendo colocados na alça de mira de virulentos ataques das forças conservadoras.Os Estados Unidos manifestaram seu desagrado com a última visita presidencial. Em passagem por Genebra, nada menos que o ex-ministro das Relações Exteriores do governo de FHC, Celso Lafer, aquele mesmo que aceitou impassível a exigência de tirar os sapatos numa revista de aeroporto em visita oficial aos Estados Unidos, veio a público com duras críticas à política externa do governo Lula. Em meio aos ataques a essa política, é pitoresco o artigo do enviado da Folha de São Paulo, Fernando Rodrigues, para acompanhar a comitiva presidencial. Na falta de outros argumentos, o repórter resolveu escoimar como "incompetência endêmica" do Itamarati alguns acidentes havidos na tradução para o árabe, nos atos políticos e nas conversações oficiais. O articulista da "Folha" assevera que a improvisação que motivou tais acidentes provém do que os franceses chamam de "mentalité", "cujo significado é mais profundo do que o cognato em português, mentalidade. Tem a ver com a atitude abúlica, tipo jeca-tatu, que assola parte do serviço público brasileiro. Um caso emblemático é o Ministério das Relações Exteriores". Respeito o argumento, mas fico com a sugestão de que em nossa imprensa está a predominar a velha "mentalité" das classes dominantes brasileiras, refletida em duas atitudes: o complexo de vira-lata, que consiste em achar que tudo o que o brasileiro ou o Estado nacional fazem é ruim ou errado e o sentimento de submissão política e econômica ao imperialismo, por suposto incompatível com a nova mentalidade da política externa ativa e soberana do Itamarati. Estamos diante não de uma, mas de duas mentalidades, uma delas presente como atavismo no comportamento das classes dominantes e de seus porta-vozes, mentalidade de país colonizado, subdesenvolvido e submisso à superpotência da ocasião. Outra é a que se vai generalizando no sentimento de orgulho nacional do povo brasileiro, hoje presente em algumas políticas do governo, como na política externa.
https://www.alainet.org/es/node/108988?language=en
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