1964: O golpe do imperialismo
01/04/2004
- Opinión
Um detalhe no caderno especial publicado pelo jornal "O Globo",
edição de domingo, 28 de março, é o suficiente para definir o
golpe militar de 1964: a foto de Ranieri Mazili, presidente da
Câmara dos Deputados, tomando posse como presidente da República,
na esteira da vacância do cargo, decretada pelo presidente do
Senado, Auro Soares de Moura Andrade. Ao lado de Mazili estava
Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil.
Mazili não governou coisa alguma.Quando tentou tomar pé da
situação, num telefonema a Costa e Silva, auto nomeado ministro da
Guerra, ouviu o seguinte: "o senhor cumpre apenas um papel, existe
um conselho revolucionário formado pelos três ministros militares
e o Estado Maior das forças armadas". Desligou e foi cumprir
agenda social.
A presença de Gordon é a prova sobre quem inspirou o golpe de
1964. Quem financiou, quem preparou, quem estava pronto para
intervir em caso de reação das forças leais ao presidente deposto,
João Goulart.
Foi um ato teatral, treinado, ensaiado, para caracterizar como
legal o momento vivido pelo Brasil. Declarado vago o cargo de
presidente, assume o próximo na linha sucessória, o que permitiu
aos Estados Unidos, de imediato, reconhecer o novo governo
brasileiro, com foros de legalidade constitucional.
1964 foi apenas um dos muitos momentos do processo político de
submissão da América Latina aos Estados Unidos. O momento mais
agudo, mais dramático.
O processo democrático entre nós, restabelecido em 1945, quando da
deposição de Vargas e pretensamente consolidado com a Constituição
de 1946, começou a ruir quando Eurico Gaspar Dutra, ex-ministro de
Vargas, partícipe decisivo no golpe fascista de 1937, o Estado
Novo, de saída, colocou na ilegalidade o antigo PCB (Partido
Comunista Brasileiro). Vários constituintes, senadores e
deputados, haviam sido eleitos pelo partido, dentre eles Luís
Carlos Prestes.
Um outro ingrediente apimentava o quadro político brasileiro. A
deposição de Vargas tinha como objetivo o poder para a UDN (União
Democrática Nacional), partido da burguesia urbana.
Pretendiam eleger um militar de peso nos quartéis, fundador da
Força Aérea Brasileira, um dos chamados 19 do Forte, momento
revolucionário na segunda década do século XX e ligado aos
tenentes, na chamada revolução tenentista. Era Eduardo Gomes,
brigadeiro e patrono da Aeronáutica no Brasil.
Perdeu para Dutra, ministro de Vargas, golpista de 37, ligado
umbilicalmente ao espólio de Getúlio. Tornou a perder em 1950, aí
para o próprio ditador que volta ao poder eleito pelo voto
popular, acirrando apetites udenistas, ocasião em que começa,
então, a escalada do golpe de 64. A combinação que se mostraria
perfeita para a barbárie e a violência militares e que acabou se
estendendo a todo o continente latino-americano. Getúlio, imerso
em corrupção, mas com políticas nacionalistas, criou a PETROBRÁS,
a ELETROBRÁS, desagradou e contrariou interesses do capital.
Através de um dos seus principais agentes, um tresloucado líder da
oposição, Carlos Lacerda, udenista, uma crise leva o presidente ao
suicídio e abre as portas para um novo avanço, sempre nos
subterrâneos que acomete processos golpistas.
A morte de Getúlio só fez adiar por 10 anos o golpe. Juscelino
vira presidente, derrota um general udenista, Juarez Távora (fora
companheiro de Prestes na coluna, líder tenentista e nos primeiros
momentos da revolução de 30 ligado a Vargas) e assegura ao já
velho espólio do caudilho gaúcho, PSD (Partido Social Democrático,
representante das oligarquias rurais) e PTB (Partido Trabalhista
Brasileiro, das emergentes lideranças sindicais brasileiras, com
forte penetração nos grandes centros industriais) a continuidade
no governo.
Nesse processo todo uma figura que mais tarde seria central no
golpe. Ou várias, mas ela simbolizando o ódio e os apetites das
classes dominantes no País, tanto quanto do imperialismo norte-
americano: João Goulart, ou Jango, como era chamado.
Um estancieiro gaúcho, escolhido pelo próprio Vargas como seu
sucessor e que, sem ter sido um homem de esquerda, mas encarnando
acuradas preocupações com reformas de base, fora protagonista de
um primeiro lance dos golpistas, ainda no governo Vargas, no
período 1950/54.
Ministro do Trabalho e Previdência Social, dobra o valor do
salário mínimo, num primeiro de maio. Enfurece as elites e, num
manifesto chamado Manifesto dos Coronéis, é afastado na primeira
crise militar e política daquele governo. Dentre os signatários
alguns dos golpistas de primeira hora: Golbery do Couto e Silva,
Cordeiro de Farias, Bizarria Mamede e outros.
A disputa real no Brasil é entre oligarquias. O PSD representando
a burguesia rural, a UDN a urbana. O PTB, criado por Vargas,
começa a ocupar espaços nas grandes cidades, é cooptado em
alianças com o PSD, criado igualmente por Vargas e presidido por
seu genro, Ernani do Amaral Peixoto. A combinação de políticas
populistas sofre uma sacudida que vem a ser decisiva quando JK é
eleito presidente.
Primeiro, as eternas tentativas de golpe da UDN, a banda
lacerdista. Lacerda, inconformado com a derrota de seu partido,
tenta vender a tese da maioria absoluta, não prevista na
Constituição, arma um golpe com militares sobretudo na Aeronáutica
e Marinha, envolve o vice-presidente que virara presidente com a
morte de Vargas, João Café Filho. Mas a manobra é abortada pelo
ministro da Guerra, Henrique Dufles Baptista Teixeira Lott, um
democrata.
Lott garante o respeito ao resultado das urnas e em 11 de novembro
num contragolpe, derruba o presidente Carlos Luz (interino, Café
Filho havia sofrido um enfarte e estava hospitalizado. Nereu
Ramos, do PSD, presidente do Senado assume o governo e dá posse a
Juscelino, em 31 de janeiro de 1956. João Goulart era o vice.
JK inicia uma fase de profundas mudanças no País. O Brasil entra
de cabeça na era industrial, chega a indústria automobilística,
Brasília é construída, mas nem por isso deixa de enfrentar
tentativas de golpe.
Duas revoltas de militares da Aeronáutica, com apoio de Lacerda,
Jacareacanga e Aragarças são frustradas pelo general Lott, que
permanecera no cargo e numa certa medida, era o avalista da
continuidade do processo democrático.
Do ponto de vista dos trabalhadores nada mudava. O Brasil crescia
a partir dos interesses das elites. O latifúndio continuava
intocável e os grandes centros urbanos sob controle do
empresariado industrial emergente. Jango, que na aliança
controlava a Previdência Social, faz política assistencialista, de
clientelismo, muitas vezes com os limites impostos pelo temor que
o herdeiro de Vargas possa ganhar vôo próprio e afetar os
delicados laços que mantêm a chamada democracia.
Chega o ano de 1960 e um demagogo populista, Jânio Quadros, uma
figura caricata, vence as eleições entre um sanduíche de mortadela
e injeções de glicose (quase que um fogo eterno) e anuncia um novo
Brasil. O discurso moralista e burguês da UDN.
Jânio fora eleito com o apoio de Lacerda. Como os vices eram
eleitos separadamente, Jango é reeleito.
Jânio briga com Lacerda, governa por sete meses em clima de
pantomima, discurso para um lado e política econômica para outro
(como faz Lula agora), tenta um golpe renunciando e denunciando
forças ocultas como fatores de impedimento para que possa cumprir
suas promessas. Conta com o povo saindo às ruas para exigir sua
volta, o que implicaria em impor condições, lógico, não tinha
maioria no Congresso, mas os brasileiro já haviam percebido que
foram alguns goles que desceram mal e o presidente beirava as
raias da loucura.
Jango vira presidente em meio a nova tentativa de golpe. Em viagem
para a China, onde fora mandado pelo presidente, em missão de
abrir novos mercados, cumpre um périplo dramático para chegar ao
Brasil e tomar posse, mesmo assim com os limites impostos pelo
parlamentarismo. Emenda de última hora para conciliar golpistas e
legalistas. Surge como figura nacional o então governador do Rio
Grande do Sul, Leonel Brizola, cunhado do presidente e líder do
movimento pela legalidade.
O Brasil vai para as mãos do PTB e a esquerda, por algumas
figuras, chega ao governo. Mas como dizia Prestes: "somos governo,
mas não somos poder". Mas à frente afirmaria que "somos governo,
não somos ainda o poder, mas seremos".
O golpe de 1964 foi só a junção de interesses do imperialismo
norte-americano com o servilismo característico da burguesia
brasileira, aliás, de toda e qualquer burguesia, em relação aos
mais poderosos.
O que se seguiu ao golpe foram anos e anos de terror oficial,
torturas e um projeto político confuso, equivocado, de golpes e
contragolpes dentro dos quartéis, enquanto em toda a América
Latina (nunca é demais lembrar, a exceção de Cuba), o Brasil se
mostrava e agia como centro de ações políticas destinadas a varrer
qualquer vestígio de mínimos obstáculos aos propósitos
colonizadores dos EUA.
Determinados setores da burguesia brasileira e até alguns da
esquerda, tinham como hábito dizer e acreditar que em 1960 éramos
os Estados Unidos de 1900. Bobagem. Do ponto de vista da direita a
confissão que o ideal estava no american way life. Na visão
equivocada de parte da esquerda, a aceitação desse princípio
equivocado e que custou caro em muitas ocasiões.
Jango não era um presidente com um projeto político definido. Se
viu prisioneiro de interesses antagônicos, que iam desde o
peleguismo sindical, a um esquerdismo que confirma a máxima de
Lenine: "...doença infantil do comunismo".
Brizola percebera, de forma instintiva, ou intuitiva, que os
caminhos eram outros. Desprezou, no entanto, ele e todos, o poder
de reação da direita. Imaginou que os 23% de votos obtidos para a
Câmara em 1962, uma votação espantosa no Rio de Janeiro (elegeu
ainda um alagoano, Aurélio Viana, para o Senado e o vice de
Lacerda, Elói Dutra), tinham o caráter de passaporte para um
processo revolucionário um tanto personalista. Vago.
Não houve uma leitura correta da conjuntura internacional, da
realidade das forças conservadoras no Brasil e o que parecia ser
um rumo para o socialismo esvaiu-se numa quartelada típica de
"generalíssimos".
É evidente que figuras íntegras. Mas não os exime de erros. Toda a
esquerda brasileira, num determinado momento, viveu um clima de
oba oba e isso foi fatal.
A ditadura militar teve momentos distintos. Com Castello Branco, a
pretensa solução rápida para a via democrática. Castello queria
fazer do deputado mineiro Bilac Pinto, da UDN, seu sucessor.
Golpeado por Costa e Silva, viu-se na contingência de entregar o
poder a seu ministro da Guerra. Esse, cercado de grupos de
extrema-direita, dentre eles a figura de Jarbas Passarinho, sem a
menor idéia de nada, fraco, manobrável, partiu para o AI 5. É
célebre a frase de Passarinho, hoje deitando falação sobre
democracia, quando da assinatura do documento: "as favas os
escrúpulos".
Médici foi objeto da admiração de Nixon. Eleito presidente dos
Estados Unidos em 1968, o republicano escancarou seu cinismo ao
definir o ditador brasileiro como alguém que ajudava os propósitos
democráticos dos norte-americanos. Falava da operação cone sul, a
chamada operação Condor, posta em prática para eliminar lideranças
latino-americanas que pudessem colocar em risco o processo de
dominação desta parte do mundo.
Registre-se que uma das primeiras manifestações de gratidão dos
militares brasileiros aos norte-americanos, foi o envio de tropas
à República Dominicana para garantir a tal democracia. Em 1961
Juan Bosh fora eleito presidente, de esquerda, deposto alguns
meses depois e em 1964, reagindo ao golpismo, o coronel Camaño só
não tomou o governo e promoveu o reencontro do seu país com a
liberdade, por conta da intervenção da OEA.
O comandante militar brasileira foi o general Meira Mato, parceiro
de Mourão Filho (saiu com ele de Juiz de Fora) e que, entre outros
feitos, fechou o Congresso em 1968. Recebeu as chaves das mãos de
Adauto Lúcio Cardoso, uma das exceções udenistas.
Geisel percebeu que o modelo estava esgotado. As eleições de 1974
haviam sinalizado isso. Já em 70 o número de votos brancos e nulos
foi maior que o de votos válidos. Tratou de presidir uma transição
sem perda do poder militar e escorregou feio ao escolher como
sucessor alguém absolutamente incapaz de compreender o momento:
João Batista Figueiredo.
O modelo econômico posto em prática pelos militares lembrava mais
ou menos a história do sujeito que não sabe qual a perna é a
esquerda, ou qual a direita e, por via das dúvidas, instado a
mostrar uma delas, levanta as duas.
O Brasil sonhava e vivia os efeitos do milagre construído na
propaganda e ia sendo comido pelas beiradas pelo imperialismo
norte-americano. No final do ciclo, o ministro Delfim Neto, hoje
deputado e conselheiro de presidentes, empresários, etc, anunciou
que teríamos que recorrer ao FMI. O maior legado da ditadura nesse
campo foi a dívida externa. O delírio de Brasil potência a partir
de uma burguesia que sonha e compra em Miami e New York, ou joga
em Las Vegas.
Lideranças políticas assassinadas nos porões da repressão.
Tortura. Operações militares conjuntas com as ditaduras dos países
da América do Sul, notadamente Argentina, Chile, Paraguai e
Uruguai, todo o trabalho sujo destinado a sustentar os campos de
influência dos Estados Unidos, na era da guerra fria.
A perfeita compreensão do que aconteceu no Brasil pode ser aferida
em inúmeros trabalhos publicados desde o fim da ditadura. O
entendimento das razões e dos fatores determinantes do golpe está
num livro do padre Joseph Comblin, entre nós editado pela
Civilização Brasileira: "A Doutrina da Segurança Nacional".
Comblin foi expulso do Brasil pela ditadura e seu livro proibido.
O golpe de 1964 foi só uma ação imperialista, determinada pela
crescente insatisfação popular diante do quadro político,
econômico e social do País e que, Jango, de maneira honesta, mas
equivocada, pretendeu mudar. Essa história de patriotismo, de
defesa da democracia, das liberdades, da família, dos valores
cristãos, só fazem, decorridos 40 anos, reforçar duas afirmações,
a de Samuel Johnson, segundo a qual "o patriotismo é o último
refúgio dos canalhas" e a de um primeiro ministro inglês, não sei
se Chamberlain, ou outro, que "a guerra é um negócio muito sério
para ser deixado nas mãos de generais".
Os generais aqui foram agentes do imperialismo norte-americano,
mesmo quando achavam que eram nacionalistas.
* Laerte Braga • Equipe GH
https://www.alainet.org/es/node/109710
Del mismo autor
- A tortura 18/07/2011
- Cesare Battisti – Um ato de soberania 08/06/2011
- Forças ítalo/americanas derrotadas no STF 08/06/2011
- Brasil – Israel – forças armadas: conclusão 07/04/2011
- 1º de abril – o golpe Norte-Americano no Brasil 03/04/2011
- Jornalismo de esgoto (II) 17/09/2010
- Jornalismo de esgoto (I) 16/09/2010
- Uma elite preconceituosa 15/09/2010
- Serra/Globo tentam transformar eleições em festival de baixarias 02/09/2010
- Você sabe falar inglês? 29/08/2010