Descaminhos do setor elétrico, ou o hospício Brasil

04/04/2004
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1. Começamos a escrever este texto. O computador está ligado, a luz acesa, o ventilador de teto ajuda a diminuir o calor. Estamos consumindo energia. Aqui, no Rio de Janeiro, ela é entregue em nossa casa pela Light, uma distribuidora que foi privatizada há cerca de seis anos. A Light precisa comprar energia de uma geradora. Na última vez em que negociou no mercado de geração, encontrou a oferta de Furnas, uma empresa estatal que opera usinas hidrelétricas; Furnas se propôs a entregar energia à Light pelo preço de R$ 50,00 o megawatt-hora (MWh). Encontrou também a oferta da Norte Fluminense, uma empresa privada que opera uma usina termelétrica; para entregar o mesmo megawatt-hora, a Norte Fluminense cobrou R$ 150,00. A Light optou por comprar energia da Norte Fluminense. Primeiro motivo: para ela, essa opção é indiferente, pois as regras da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) permitem que as distribuidoras repassem aos consumidores 100% do preço que pagam às geradoras. Segundo motivo: a Norte Fluminense é do grupo Light. Assim, nós, consumidores, somos forçados a comprar a energia mais cara. 2. Fique calmo, estimado leitor. Você está apenas na porta do hospício. Pois, se neste instante formos visitar a usina termelétrica contratada pela Light, ela estará desligada, entregue às atenções de um sonolento grupo de vigias, entretidos talvez num jogo de damas. A eletricidade que estamos consumindo está sendo colocada na rede por Furnas, por ordem do Operador Nacional do Sistema (ONS), que coordena a operação física do sistema. O ONS tomou essa decisão porque viu que a eletricidade de Furnas é muito mais barata. Furnas, porém, não foi contratada pela Light, de modo que sua energia está sendo remunerada pelo preço do mercado livre, o qual está excepcionalmente baixo – apenas R$ 18,00 –, pois há sobra de energia no país. Quando minha conta de luz chegar, eu pagarei à Light um valor que tem como base aqueles R$ 150,00 que ela contratou da Norte Fluminense, ou seja, de si mesma. A Norte Fluminense, que permaneceu desligada, repassará R$ 18,00 a Furnas, que produziu a energia. A diferença será inteiramente embolsada pelo grupo Light. Além de distribuidor, como se vê, ele é gigolô de energia. Com todo o respeito. 3. Os nomes e números citados acima são reais. A mesma situação repete-se país afora. É assim que funciona hoje o sistema elétrico brasileiro, que já foi referência mundial de segurança e racionalidade. Para conseguirmos entender como chegamos a isso, teremos de ver, muito sucintamente, a história desse sistema, o desastre da privatização feita por Fernando Henrique Cardoso, a situação encontrada pelo governo Lula e as decisões deste governo. É o nosso tema do mês. Preparem o estômago. 4. Quase 90% da capacidade de geração elétrica instalada no Brasil e 99% da energia elétrica consumida se baseiam em duas coisas gratuitas: a água das chuvas e a força da gravidade. Somos um país tropical de grande extensão, com rios caudalosos, com bacias hidrográficas distantes entre si, localizadas em regiões que têm diferentes regimes de chuvas. Por serem rios de planalto, de modo geral sua declividade é suave. Quando barrados, formam grandes lagos. São energia potencial. É só fazer a água cair, passando por uma turbina, que geramos a eletricidade mais barata do mundo, de fonte renovável e não poluente, com recursos e técnicas totalmente brasileiros. Se as barragens forem construídas em seqüência, ao longo do curso de um rio, a mesma gota de água é usada inúmeras vezes antes de se perder no oceano. Os místicos diriam que tudo isso é uma bênção; os técnicos, que é uma enorme vantagem comparativa. Ambos têm razão. A vida útil de uma usina hidrelétrica é ilimitada. A obra de construção civil, em princípio, é eterna como as pirâmides do Egito, e os equipamentos precisam ser substituídos a cada período de mais ou menos setenta anos de uso. O "combustível", como vimos, é gratuito. O custo operacional, portanto, é baixíssimo. Como a quantidade de chuvas varia em cada ano e como no curto prazo o regime de chuvas está sujeito a oscilações imprevistas, fazemos reservatórios. O sistema brasileiro acumula água suficiente para cinco anos de operação, chova ou não chova. Nenhum país do mundo tem tanta energia estocada. Graças a ela, nosso sistema energético sempre funcionou pensando muito na frente. Quando era quase todo estatal, começava-se a construir uma nova usina quando a margem de risco atingia 5% no quinto ano, contado a partir do presente. 5. As chuvas também variam de região para região. Para aproveitar essa variedade, o sistema foi interligado por mais de 4 mil quilômetros de linhas de transmissão, do Rio Grande do Sul ao Maranhão. Um operador central tornou-se capaz de racionalizar o uso da água – e regularizar o curso dos rios – em praticamente todo o país. Os reservatórios situados em diferentes bacias hidrográficas, que não têm nenhuma ligação física entre si, passaram a funcionar como se fossem vasos comunicantes. Se chove pouco na bacia do São Francisco e muito na bacia do Paraná, por exemplo, a usina de Paulo Afonso é orientada a colocar pouca energia na rede, de modo a economizar sua água que se tornou preciosa, e a usina de Itaipu faz a compensação. Ao colocar mais potência na rede, Itaipu cede água do rio Paraná, indiretamente, para o rio São Francisco. Nos lares, escritórios e fábricas, ninguém percebe o inteligente rearranjo que permite otimizar o fornecimento de energia e a distribuição da água no território nacional em cada momento. 6. No Brasil, como se vê, as linhas de transmissão integram o sistema de produção de energia. Não são simplesmente acopladas a ele para fazer a eletricidade escoar até o consumidor. Ligando quase todo o território nacional, elas ajudam a fazer com que a capacidade de geração hidrelétrica brasileira, vista como um todo, seja 25% superior à soma da capacidade das usinas, vistas isoladamente. Para produzir tamanha sinergia necessita-se, é claro, de uma operação coordenada do sistema. Coordenada, primeiro, em cada bacia, pois a decisão de produzir ou economizar energia (ou seja, verter ou represar água), tomada por uma usina situada a montante, define as condições de operação das usinas situadas a jusante. Tal necessidade de coordenação envolve também bacias diferentes, como vimos no exemplo de Itaipu e Paulo Afonso. Mais ainda: a coordenação é necessária não apenas à operação do sistema que já existe, mas também às decisões de investimento para sua expansão, pois a economicidade de uma usina nova depende de suas possibilidades de integração ao conjunto da rede. Tomemos o exemplo de Belomonte, no rio Xingu. Na estação chuvosa essa usina pode produzir 11 mil MWh; na estação seca, 1 mil MWh. Para avaliar se ela será econômica é necessário conhecer suas possibilidades de interação com as usinas da bacia do rio Paraná, que têm outro regime de chuvas. 7. A correta operação do sistema exige, pois, uma visão de conjunto no espaço e um largo horizonte de tempo (uma hidrelétrica leva, em geral, de cinco a sete anos para ser construída). A idéia de operar cada usina isoladamente ou de decidir isoladamente pela realização de um investimento novo não tem sentido no sistema elétrico do Brasil. Esta é uma especificidade nossa. Na maior parte do mundo a natureza não foi tão generosa, de modo que a produção de eletricidade baseia-se principalmente em usinas térmicas que usam carvão, gás ou petróleo. Elas, sim, funcionam isoladamente, sem sinergia. E são muito mais caras. Não acumulam combustível gratuito, pois têm de comprá-lo todos os dias no mercado; gastam muito em manutenção; precisam ser completamente reconstruídas a cada período de 25 anos; poluem o ambiente e emitem gases-estufa. Usinas nucleares têm algumas limitações semelhantes, são perigosas e produzem rejeitos radioativos. (Por precaução, o sistema tradicional brasileiro também contava com usinas térmicas de reserva, para serem usadas em situações excepcionais.) 8. Nós éramos felizes e sabíamos: desde sua implantação, nas décadas de 1950, 1960 e 1970, o sistema brasileiro tornou-se referência mundial. A oferta de energia segura e barata passou a ser uma conhecida vantagem do nosso país. O sistema poderia ser aperfeiçoado, é óbvio, como tudo na vida. Porém, nenhum, rigorosamente nenhum motivo de natureza técnica ou de racionalidade econômica exigiria alterar sua natureza. Foi esse despautério que o governo de Fernando Henrique Cardoso resolveu fazer, sob orientação do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. A existência de um setor energético nacional, estatal, planejado, eficiente, barato e de grande porte, em um país periférico, era uma afronta à modernidade neoliberal. A energia deveria ser tratada como uma mercadoria qualquer – o chuchu, por exemplo – e colocada sob controle do capital privado, o único que pode ser eficiente. De preferência estrangeiro, para que no ato da venda o país recebesse um punhado de dólares. Afinal, o Estado brasileiro estava endividado. Feitas as privatizações da siderurgia, da petroquímica, da Vale do Rio Doce, da Embraer, dos sistemas de telecomunicações e de transportes, entre outras, restavam os ativos do melhor sistema elétrico do mundo para abater uma diminuta fração dessa dívida. E, na medida em que abandonássemos a hidreletricidade, passando a priorizar usinas térmicas, criaríamos um bom mercado para as multinacionais do setor. 9. O sistema cooperativo e planejado, que funcionava muito bem, deveria pois dar lugar a um sistema concorrencial e mercantil. Tomada esta decisão, todos aqueles benefícios e vantagens do sistema brasileiro – o funcionamento em rede, a base hídrica, o horizonte de longo prazo, o papel ativo das linhas de transmissão, o fornecimento de energia barata – tornaram-se dificuldades a superar, pois não se ajustavam bem à lógica de operação do capital privado. Sendo impossível vender o sistema energético em bloco, ele precisava ser esquartejado, dilacerado, separado em pedaços, com se faz nos açougues com nacos de carne. Isso nos conduzia ao limiar da suprema imbecilidade: romper a sinergia do sistema e alterar sua base técnica para multiplicar as usinas térmicas (o Brasil só usou até hoje, no máximo, a metade do seu potencial hidrelétrico). A história do sistema elétrico brasileiro nos últimos anos é a história da luta dos governos brasileiros contra as nossas vantagens comparativas e contra o conhecimento técnico que acumulamos. É a história de uma destruição, a destruição do Brasil. No caso de Fernando Henrique, foi uma luta em campo aberto, que será lembrada como um dos atos mais vis de traição nacional e que só arrefeceu quando seu governo conseguiu conduzir o país ao apagão de 2001. No caso de Lula, é uma marcha hesitante, ambígua, mas que poderá levar ao mesmo resultado. 10. Já contamos a história da reforma, e do subseqüente apagão, em outro artigo ("Foi loucura, mas houve método nela: gênese, dinâmica e sentido da crise energética brasileira", publicado na revista Caros Amigos). Aqui, vamos direto ao que se passou depois. A reforma acabou numa esquizofrenia. Depois de idas e vindas, a operação física do sistema continuou centralizada, uma herança do modelo anterior. Ela é feita pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), que determina quanta energia cada usina colocará na rede em cada momento e a que preço. O ONS não segue, nem respeita, nem sequer conhece os contratos feitos entre distribuidoras e geradoras. Ele toma decisões levando em conta, exclusivamente, a configuração física do sistema em cada momento. Uma empresa privada que compra ou constrói uma geradora não controla sua própria operação e não define quando e quanto vai produzir, nem mesmo se vai produzir. Ela é uma investidora em energia, e não uma operadora de usina. A usina serve apenas para que ela faça contratos, mas os contratos não a obrigam a gerar a energia contratada. (Por isso a Light pode contratar a Norte Fluminense, que permanece desligada, enquanto Furnas, mesmo descontratada, é obrigada pelo ONS a gerar.) 11. A reforma de Fernando Henrique nos prometia aumento de oferta: gerou racionamento. Prometia energia barata: entre 1995 e 2002, as tarifas subiram 182,6% para a energia residencial, 130,3% para a industrial, 130,1% para a comercial e 110,2% para a rural, enquanto a inflação acumulada no período foi de 58,68%. Prometia dinheiro estrangeiro: foi o BNDES que financiou a maior parte dos investimentos privados (ver, sobre isso, "O caso AES", em apêndice a este texto). Prometia transferência de tecnologia num setor em que a tecnologia de ponta era a nossa. Prometia dólares para o Brasil, quando se sabe que geração e distribuição de energia são pagos em reais, de modo que a remessa de lucros das empresas estrangeiras vindas para esse setor passou a sangrar permanentemente as reservas brasileiras de divisas. 12. Tudo resultou, é claro, numa completa desordem física, legal e institucional. Depois de privatizar todas as distribuidoras rentáveis e parte do sistema de geração, a reforma teve de ser interrompida com o apagão de 2001. Estabelecida a emergência, o consumo foi duramente reprimido, com grandes prejuízos para os consumidores e a economia nacional, enquanto mundos e fundos eram oferecidos para o capital privado investir com urgência. Este capital interessa-se muito mais por usinas térmicas do que por hidrelétricas, pois naquelas o investimento e o prazo de conclusão das obras são muito menores. A amortização é mais rápida. (É verdade que a energia gerada é muito mais cara, mas isso é um problema do consumidor.) Fernando Henrique enfrentou, porém, um problema: se, passada a emergência, o mercado brasileiro seria atendido, como sempre fora, pelo sistema hidrelétrico, como abrir espaços para as térmicas desejadas pelo capital privado? A solução encontrada foi ordenar que, a partir de 2003, as geradoras estatais fossem obrigadas a descontratar anualmente 25% de sua energia, que passaria a ser oferecida no mercado livre. Essa regra entrou em vigor já no governo Lula, que a respeitou. (Fica claro, também aqui, que quando os governos brasileiros dizem que respeitarão contratos, referem-se apenas aos contratos que interessam ao capital privado; as estatais de energia foram obrigadas a abrir mão de contratos que lhes garantiam mercado. Furnas, por exemplo, que é capaz de gerar 7.756 MW de energia barata, tem neste momento 3.700 MW descontratados por imposição do governo. O consumidor sai perdendo, pois essa energia barata é substituída nos contratos pela mais cara, embora, como vimos, continue a ser gerada e distribuída pelos preços do mercado livre.) 13. Quando Lula assumiu, em 2003, encontrou o cenário de 2001 invertido: excesso de energia ofertada (pois a chuvas regularizaram a oferta hidrelétrica e várias térmicas começaram a operar) e brutal contração da demanda (pois o consumo nunca retornou aos níveis anteriores e a economia entrou em recessão). Tal contração, da ordem de 25%, é uma anomalia, pois em situação normal, em um país com o nível de desenvolvimento do Brasil, o consumo de energia cresce sempre mais do que o PIB. Mas, graças a ela, parece estar afastada a possibilidade de novo racionamento até, pelo menos, 2007. Com energia sobrando, as térmicas tendem a permanecer desligadas, mas continuam muito lucrativas. Liquidam seus contratos comprando energia das hidrelétricas estatais, a preço vil. 14. O novo governo tinha nessa área um dos seus pontos fortes. A competência do grupo de energia do PT sempre foi reconhecida. Antes das eleições de 2002, ainda trabalhando no âmbito do Instituto da Cidadania, o grupo reafirmou antigos compromissos: recuperar a visão de conjunto, típica de um sistema cooperativo, tratar a energia como serviço público, valorizar a dimensão do planejamento, priorizar a menor tarifa, fortalecer a Eletrobras, e assim por diante. A posição que Fernando Henrique já havia tomado, de interromper o processo de privatização do setor, foi confirmada com mais ênfase e mais clareza pelo novo governo. Ele resolveu, no entanto, não questionar as privatizações já realizadas e respeitar escrupulosamente todos os contratos com o capital privado, mesmo os leoninos. A expectativa era de que este capital cobrisse entre 50% e 60% dos investimentos previstos para os anos seguintes. Além disso, o governo tratou de reconstruir uma arquitetura legal e institucional para o setor, no contexto de um modelo misto, que recentemente começou a ganhar forma final, com a Medida Provisória n. 144, em via de tramitação no Congresso. A posição cautelosa da equipe de transição justificava-se pelos seguintes argumentos: (a) a capacidade de financiamento, por parte do Estado, estava debilitada, não sendo pois de todo ruim que se contasse com um aporte de recursos do setor privado; (b) seria uma temeridade questionar os contratos assinados durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, que envolviam muitos bilhões de dólares, pois isso daria lugar a contenciosos jurídicos que se estenderiam por muito tempo, paralisando os investimentos; (c) o modelo estatal anterior também padecia de falhas, concentrando poder excessivo em mãos da burocracia estatal e das grandes empreiteiras. 15. Tendo como ponto de partida o modelo formulado pelo Instituto da Cidadania, o governo Lula passou um ano negociando com representantes de empresas privadas. Fez muitas concessões. A proposta que consta da MP 144 estabelece as bases de uma legislação de caráter híbrido, ultracomplexa, pouco compreendida e ainda dependente de muita regulamentação posterior (quanto mais híbrido o modelo, mais complexo ele tende a ser). Técnicos com larga experiência na gestão estatal estão confusos, e o setor privado também reclama, dizendo que o "risco regulatório" continua a ser muito grande. Ninguém se sente plenamente atendido. Os chamados "custos de transação", no novo modelo, são muito altos, com a multiplicação de órgãos e instâncias. As equações são complicadíssimas. Cada afirmação feita na nova lei parece ser negada em seguida, seja por outras afirmações, seja por regras excepcionais, inseridas ad hoc. É provável que juristas e advogados tenham muito trabalho. O que se pode entender é que o planejamento da expansão do setor elétrico ficará sob a responsabilidade de um novo órgão federal. Os novos empreendimentos, definidos por este órgão, serão oferecidos, em princípio ao setor privado, em licitações nas quais prevalecerá o critério das menores tarifas. Um agente de comercialização vai gerenciar os contratos, que deixarão de ser individuais e passarão a ser de todas as geradoras com todas as distribuidoras. A Eletrobras continuará a ser tratada como uma empresa a mais, entre as outras, como se fosse privada. A chamada "energia velha" – ou seja, a energia barata, produzida por hidrelétricas já amortizadas, que continuam estatais – será usada para rebaixar as tarifas médias do sistema. E o setor privado permanecerá sendo considerado o principal investidor (o que parece ser uma temeridade, pois ninguém pode garantir que ele resolva mesmo investir, num contexto em que são muito altos os riscos macroeconômicos, inclusive o cambial, e os custos de oportunidade). 16. Entre os técnicos, parece haver consenso de que estamos longe de uma solução para a crise a que o setor foi levado pela irresponsabilidade do governo de Fernando Henrique. Há problemas de vários tipos. Como vimos, hoje sobra energia, mas isso é uma realidade passageira. Já preocupa o fato de que os investimentos – especialmente os do setor privado – estão paralisados. A Eletrobras investiu R$ 3,0 bilhões em 2003, quantia muito insuficiente, e (contando com Itaipu) recolheu cerca de R$ 4,5 bilhões ao Tesouro para engordar o superávit primário. Poderia, pois, investir pelo menos o dobro. O papel da Eletrobras está, no mínimo, confuso. Conforme a visão original do grupo de energia, ela deveria ser uma espécie de "Petrobras da eletricidade", ou seja, uma empresa forte, nacional e estatal, comprometida com o futuro do país, não monopolista, capaz de liderar o setor, estabelecendo parcerias nas situações adequadas. As empresas da holding têm capacidade técnica e financeira, enorme patrimônio e endividamento quase zero. Poderiam alavancar muita coisa. Mas, não é isso o que está ocorrendo. A Eletrobras está enfraquecida, tolhida, sangrada em recursos pelo superávit primário, tratada como se fosse um problema, cheia de micos pretos na mão e proibida de liderar parcerias. Quando pensa em se soltar, é vista com desconfiança. O problema é grave porque, como vimos, investimentos em energia demandam muito tempo. Para afastar o risco de novos apagões depois de 2007 é necessário que as obras se iniciem sem demora. Elas deveriam estar em pleno curso, pelo menos, em 2005. Há investimentos feitos pela Petrobras (em térmicas a gás) e algumas hidrelétricas estão sendo construídas, para uso próprio, por consumidores eletrointensivos. É pouco. O setor privado continua sem corresponder às expectativas que o governo Lula deposita nele. 17. Mas a principal crítica que se pode fazer às ambigüidades do governo no setor de energia é de caráter estratégico. Para discuti-la, usaremos livremente as idéias de Leslie Afrânio Terry, um dos mais brilhantes técnicos do setor. Leslie enviou para um de nós [César Benjamin] um conjunto de notas, reunidas sob o título "Desenvolvimento econômico e energia velha no Brasil". Sua morte súbita e inesperada impediu que debatêssemos essas idéias com ele, como era a intenção, e tampouco sabemos se foram publicadas em algum lugar. Relidas agora, as notas parecem proféticas. Como diz o título, Leslie explora as potencialidades futuras abertas pelo aumento da oferta da chamada "energia velha", que por definição é exclusivamente de origem hidrelétrica. "A produção das usinas hidráulicas já amortizadas", escreveu, "vem sendo designada como 'energia velha'. Sua existência reduz custos de produção (e tarifas) e representa importante vantagem comparativa da sociedade brasileira. (...) A 'energia velha' deve ter sido responsável, nesta virada de século, por uma redução de quase 30% no custo de produção da energia elétrica no Brasil, relativamente ao custo marginal de longo prazo. Este percentual só tenderá a aumentar, na medida em que o crescimento da demanda for se saturando, como decorrência dos estágios superiores de desenvolvimento atingidos. Isso só vale, naturalmente, se o Brasil persistir na opção hidrelétrica. (...) Extrapolando-se o raciocínio ao limite, pode-se vislumbrar, no futuro, o fornecimento exclusivo de 'energia velha' à sociedade brasileira, reduzindo-se então o custo da eletricidade quase que apenas aos custos de transmissão e distribuição." 18. Leslie trabalha em seguida com dados relativos à superfície, demografia, produto nacional bruto, densidade territorial de produção e consumo de energia elétrica, sempre comparando a situação brasileira com a de um grupo de onze países europeus. Admite hipóteses consagradas na literatura especializada, para então verificar o que aconteceria se, em 2050, o Brasil atingisse um padrão de desenvolvimento semelhante ao que os países europeus têm hoje (renda per capita de cerca de US$ 25 mil). A taxa de expansão do consumo de energia segue sendo superior ao crescimento do PIB por um período, mas, como sempre acontece, essa relação começa a se inverter entre 2010 e 2015, quando a economia brasileira atinge novos patamares de desenvolvimento, menos intensivos em energia. É uma hipótese perfeitamente plausível, que corresponde à experiência histórica. Ele verifica então que o consumo per capita de energia elétrica no Brasil, em 2050, se estabilizaria num nível três vezes superior ao atual, demandando uma oferta total que corresponde aproximadamente ao potencial hidrelétrico brasileiro, tal como estimado no Plano 2015 da Eletrobras. A intensidade de energia elétrica na formação do PNB brasileiro seria quase duas vezes e meia menor que a atual. Com bases nesses parâmetros, calcula a evolução, no tempo, do custo médio de produção de energia elétrica, que vai se reduzindo pelo aumento da 'energia velha' disponível. Eis a sua conclusão: "Com as hipóteses feitas, ao atingir em 2050 a população e um nível de desenvolvimento semelhantes ao dos onze países europeus nos dias de hoje, a sociedade brasileira disporia de energia elétrica produzida com custos equivalentes a 20% do seu valor normal. Em mais dez ou quinze anos, os custos atingiriam níveis meramente simbólicos. (...) Para dispor permanentemente de energia elétrica quase gratuita [na quantidade necessária e por tempo indefinido], o Brasil precisará utilizar cerca de 2,1% do seu território na formação de represas e lagos, sendo 70% dessa área localizada na Amazônia. É uma área equivalente à que se costuma desflorestar na Amazônia em apenas uma década, em nome de projetos agropecuários de valor discutível, ou mesmo sem propósito nenhum." 19. Quem financiaria isso? O próprio setor elétrico, responde Leslie. Calculando receitas e despesas do setor – incluindo, no cálculo, o ressarcimento de depreciação contábil anual de 1/30 do capital investido, remuneração anual de 12% ao ano ao capital remanescente, 25% de imposto de renda e 9% de contribuições sociais – ele diz que "o setor teria plena capacidade de autofinanciamento ao longo de todo o tempo, transferindo sempre ao consumidor toda a vantagem da 'energia velha'". "A participação significativa e sempre crescente da 'energia velha' [desde que preservada a opção preferencial pela hidreletricidade, o que implica um modelo com predominância do Estado] parece não ter tido ainda a sua importância devidamente apreciada. (...) A competição em mercado irá elevar o valor de comercialização de toda a produção, incluída aí toda a 'energia velha' ao valor, bem mais elevado, do custo marginal de produção. (...) Não parece haver qualquer razão para subtrair à sociedade brasileira tão importante vantagem comparativa e permitir sua pura e simples apropriação pelos produtores, sem qualquer contrapartida. Em se desejando proporcionar a vantagem de baixos preços de energia elétrica à sociedade brasileira, será necessário garantir que os benefícios da 'energia velha' sejam repassados ao consumidor. Como os mecanismos normais de mercado não se mostram apropriados, isso precisará ser conseguido por meio de regulação." 20. Perdoem as longas citações. Além de constituir uma homenagem a Leslie Terry, elas mostram o extraordinário potencial brasileiro, em energia elétrica, no século XXI. Se fizer as opções corretas, o Brasil poderá ter energia quase gratuita, de forma segura e por tempo indefinido, a partir de meados do século, o que constituiria um extraordinário salto qualitativo em seu processo de desenvolvimento econômico e social. Não nos faltam, para isso, nem dotação natural de fatores, nem capacidade técnica, nem fontes de financiamento. Falta retomar um projeto nacional consistente e sustentá-lo no tempo. Eis aí o problema. Na questão energética, como em tantas outras, o governo Lula está acertando aqui e acolá no varejo, mas errando terrivelmente no atacado. O caminho que escolheu para o setor elétrico – um caminho híbrido e confuso, definido por injunções de curto prazo e completamente permeado pelos interesses privados – não configura uma estratégia de longo prazo no rumo acertado. Anexo O caso AES Resumimos no texto abaixo as principais informações sobre a venda da Eletropaulo ao grupo norte-americano AES. Trata-se de magnífico exemplo de como foram feitas as privatizações no Brasil. Mostra também uma ação acertada do governo Lula. Que os parlamentares e o Ministério Público prestem atenção. 1. Em 3 de julho de 1997, com a presença do presidente Luiz Carlos Mendonça de Barros e do vice-presidente José Pio Borges de Castro Filho, a diretoria do BNDES aprovou uma decisão sobre o financiamento à aquisição de ações de companhias estaduais a serem privatizadas. Cinco condições básicas foram então definidas: (a) o Banco emprestaria, ao comprador, até 50% do preço mínimo do leilão, (b) cobrando encargos de 2,5% ao ano, (c) com taxa de risco também de 2,5%, (d) com prazo de operação entre cinco e oito anos, (e) com prazo de carência entre um e dois anos. Além disso, a diretoria aprovou que, como garantia dos empréstimos, o Banco aceitaria a caução de ações das próprias empresas vendidas, além de uma simples carta dos novos acionistas controladores, prometendo a adequada administração das companhias e o cumprimento das obrigações financeiras assumidas. Tal decisão, com validade de doze meses, abriu caminho para que a operação Eletropaulo-AES tramitasse seguindo regras próprias, estranhas às regras normais de cautela que presidem qualquer outra operação feita pelo BNDES. 2. A Eletropaulo foi privatizada em 15 de abril de 1998, pelo preço mínimo de R$ 2 bilhões (equivalentes na época a US$ 1,776 bilhão), dentro pois do prazo de validade da decisão acima descrita. Nesse momento, a empresa era responsável pelo atendimento a 6,4 milhões de consumidores em 79 municípios, localizados na Região Metropolitana de São Paulo, no Vale do Paraíba, na Baixada Santista, no Alto do Tietê (Guarulhos, Suzano, Mogi das Cruzes etc) e no Oeste Paulista (eixo Sorocaba / Jundiaí). Em 1997, último ano antes da privatização, a Eletropaulo comercializou 58.183 GWh de energia, correspondentes a 64% do mercado do estado de São Paulo e 21% de todo o mercado brasileiro. Concessionária dos serviços em uma área que abriga o coração industrial do país, a renda per capita mais elevada e uma densidade demográfica de 1.066 habitantes por km2 (contra apenas 20,25 habitantes por km2 na média brasileira), a Eletropaulo era a mais importante e mais rentável companhia distribuidora de energia da América Latina. 3. Em 16 de abril de 1998, dia seguinte ao leilão de privatização, a Lightgás (atual AES Elpa) recebeu do BNDES um financiamento no valor aproximado de R$ 1 bilhão (equivalentes na época a US$ 890 milhões) para efetuar a compra das ações que lhe garantiriam o controle acionário da companhia. O BNDES aceitou que a operação tivesse como garantia as próprias ações transacionadas, aplicando assim a decisão descrita no item 1. Ficou estabelecido que a amortização desse financiamento seria feita em nove parcelas semestrais, com vencimento entre abril de 1999 e abril de 2003. 4. Após essa operação, a Eletropaulo tornou-se o principal ativo do grupo AES no Brasil. Sua aquisição, no entanto, não envolveu capital próprio do grupo. Além do aporte do BNDES, correspondente a 50% da compra, os recursos faltantes foram integralmente captados em instituições financeiras internacionais. O grupo AES usou a compra da Eletropaulo menos para dedicar- se à distribuição de energia, stricto sensu, e mais para sustentar processos de alavancagem financeira. Isso fica nítido quando se verifica o perfil da dívida da empresa, que começa a se deteriorar já no primeiro ano da privatização: em 1997, ainda estatal, a empresa devia R$ 1,1 bilhão, 31% dos quais sendo dívida de curto prazo; em fins de 1998 (primeiro ano da privatização e antes da crise cambial brasileira), a dívida crescera 34%, com 80% dela vencendo no curto prazo. Grande parte dessa nova dívida foi denominada em dólar, sem que a empresa tomasse medidas de proteção contra uma desvalorização cambial que então se tornava cada vez mais provável. 5. Tal desvalorização, como se sabe, ocorreu com força em janeiro de 1999. O Brasil foi levado a alterar seu regime cambial, e as dívidas denominadas em moeda estrangeira aumentaram, quando calculadas em moeda nacional. Essa situação, como é óbvio, não atingiu apenas as operações da AES, mas também as do BNDES e de todas as demais empresas que, operando no Brasil, estavam expostas ao risco cambial. No mês seguinte, fevereiro de 1999, o BNDES aceitou prorrogar por dois anos a primeira parcela dos pagamentos da AES Elpa, descritos no item 3, que passou a vencer em abril de 2001. Assim, mesmo sem realizar-se o pagamento previsto, não se caracterizou formalmente nenhuma inadimplência. 6. Mesmo diante da grave deterioração dos indicadores econômico- financeiros da Eletropaulo e do brutal crescimento da sua dívida com o próprio BNDES, o Banco, estranhamente, optou por aumentar o financiamento à multinacional. Em janeiro e em maio de 2000, o BNDESPAR realizou duas operações de venda a termo de ações preferenciais da Eletropaulo para a AES Transgás, totalizando US$ 872 milhões. Os pagamentos, também vinculados à variação do dólar, seriam feitos em quatro parcelas, sempre em janeiro, entre os anos 2000 (parcela correspondente ao pagamento à vista da primeira venda) e 2003. Como no caso anterior, já descrito, o BNDES aceitou que as operações tivessem como garantia as próprias ações transacionadas. 7. Entre 1999 e 2001 a receita bruta da Eletropaulo (em reais) cresceu 43%, passando de R$ 5,12 bilhões para R$ 7,32 bilhões, refletindo o aumento no preço da energia elétrica cobrada aos consumidores brasileiros, bem acima da inflação. Porém, a posição da empresa continuou a deteriorar-se, por força de seu endividamento em dólar, não só com o BNDES, mas com credores internacionais. 8. Em janeiro de 2001 a AES Transgás efetuou normalmente o pagamento da segunda parcela do empréstimo que havia contraído com o BNDES. Em abril a AES Elpa também pagou a primeira parcela do seu empréstimo (item 5). Em fins de maio, diante da possibilidade de um colapso na oferta de energia elétrica na maior parte do território nacional, o governo federal instituiu medidas emergenciais, logrando obter, nos sete meses seguintes, uma redução de 16% no consumo nacional de eletricidade. Essa circunstância também afetou a área de concessão da Eletropaulo e tornou irrealistas as projeções anteriores de desempenho e de lucratividade da empresa. 9. Em outubro de 2001 a AES Elpa pagou a segunda parcela do empréstimo descrito no item 3. Em janeiro de 2002, porém, a AES Transgás pediu prorrogação por dois anos da parcela que deveria ser paga ao BNDESPAR (item 6), que aderiu parcialmente à proposta, recebendo US$ 40 milhões dos US$ 218 milhões previstos. Em abril foi a vez da AES Elpa, que obteve do BNDES nova prorrogação, até 15 de outubro, de uma parcela de US$ 203,9 milhões. Nessa altura era visível a fragilização da Eletropaulo, cujo valor de mercado caíra de R$ 4,89 bilhões em 1999 para R$ 960 milhões no terceiro trimestre de 2002. A estrutura de capital da empresa já era composta de 75% de recursos de terceiros e apenas 25% de recursos próprios, revelando um elevado grau de alavancagem. 10. Em 25 de setembro de 2002, pouco antes do vencimento do prazo acima descrito (15 de outubro), o grupo AES solicitou ao BNDES a reestruturação das dívidas da AES Elpa e da AES Trangás, alegando dificuldades para honrar os pagamentos previstos. A diretoria do BNDES, mais uma vez, decidiu sustar todas as cobranças – principal e encargos – que venceriam entre 15 e 28 de outubro. Reabriu negociações e aceitou manter os pagamentos suspensos até 16 de dezembro. O Banco fez duas exigências: a AES deveria pagar US$ 17 milhões e formalizar o compromisso de emitir debêntures (transformáveis em ações) de outras empresas do grupo (AES Sul e AES Tietê), a serem entregues ao BNDES. Além disso, o Banco admitiu incluir nas negociações ativos não operacionais do grupo AES. Em 15 de outubro a AES informou ao BNDES que não efetuaria o pagamento solicitado e não poderia emitir as debêntures, pois a AES Sul e a AES Tietê estavam oneradas a outros credores, no exterior, os quais haviam proibido qualquer negociação desse tipo. Em 28 de outubro e em 14 de novembro o BNDES aceitou manter suspensas até 20 de dezembro as cobranças das dívidas da AES Elpa e da AES Transgás, respectivamente. Em 11 de dezembro o BNDES foi informado de que a AES Corporation havia incluído a venda da AES Tietê em uma negociação com seus credores nos Estados Unidos. Também foi informado de que um dos ativos não operacionais mais valorizados do grupo no Brasil – o prédio denominado JK – estava em processo avançado de alienação, que incluíra o pagamento de uma primeira parcela (sinal) pelo comprador, à revelia das negociações com o Banco. 11. Até o segundo trimestre de 2002, segundo informações da própria AES, a Eletropaulo pagara dividendos de R$ 781 milhões e remetera lucros no montante de US$ 111 milhões à matriz norte- americana. Os pagamentos não honrados pela AES com o BNDES ultrapassavam US$ 1,15 bilhão em dezembro desse ano, sendo US$ 547 milhões das operações com a AES Elpa e US$ 603 milhões das operações com a AES Transgás. Mesmo assim, nenhuma declaração de inadimplência havia sido feita pelo Banco. 12. Foi esta a situação encontrada pela diretoria do BNDES que tomou posse em janeiro de 2003. Com os seguintes agravantes: (a) Todas as operações da AES Coporation com o BNDES foram feitas através de subsidiárias instaladas no paraíso fiscal das Ilhas Cayman, que controlam a AES Elpa e a AES Transgás. Constituiu-se assim uma eficiente blindagem que impedia qualquer ação do Banco contra a matriz da empresa. (b) As garantias obtidas pelo BNDES nas operações eram fictícias. As ações caucionadas não podiam ser retomadas pelo Banco, pois a legislação brasileira não permite que o credor se aposse dos bens dados em garantia. Havendo inadimplência – como era o caso – o BNDES podia iniciar uma litigância judicial que na melhor das hipóteses levaria a Justiça a determinar o leilão público das ações, depois de procedimentos cujos prazos foram estimados em pelo menos sete anos (para as ações ordinárias envolvidas nas operações com a AES Elpa) e pelo menos três anos (para as ações preferenciais envolvidas nas operações com a AES Transgás). É fácil perceber que um processo judicial desse tipo, com esses prazos, produziria a devastação patrimonial da Eletropaulo, pela suspensão de investimentos em uma empresa sub judice, com graves riscos para a oferta de energia ao coração industrial do Brasil, densamente urbanizado. Além disso, a provável retomada da concessão pela Aneel reduziria a zero o valor das ações da Eletropaulo dadas em garantia ao BNDES. 13. Foi neste contexto que a nova diretoria teve de tomar decisões, que podem ser assim sintetizadas: (a) O BNDES declarou pela primeira vez a inadimplência do grupo AES. Ao agir assim, o Banco teve de caracterizar no seu balanço, também pela primeira vez, que tinha em sua carteira essas "operações de curso problemático". Tal decisão causou o prejuízo recorde apresentado pelo BNDES em 30 de junho de 2003. Até então, a real situação ficava escondida pelas sucessivas repactuações – sem pagamentos – dos empréstimos vencidos. (b) A partir dessa decisão, o BNDES abriu nova rodada de negociações com a AES, chegando a um novo acordo, que prevê a criação de uma nova empresa, chamada Brasiliana. O novo acordo contém as seguintes vantagens: 1. Foi firmado diretamente com a AES Corporation, com sede nos Estados Unidos, eliminando-se as numerosas "papers companies" sediadas em paraísos fiscais que faziam a blindagem da empresa norte-americana. 2. A Brasiliana recebeu outros ativos do Grupo AES no Brasil, como a AES Tietê e a AES Sul, aumentando as garantias reais da operação. A AES Corporation teve de desonerar essas empresas de quaisquer compromissos em relação aos seus outros credores internacionais. 3. O BNDES não fez nenhum aporte de capital e converteu US$ 600 milhões em 50% menos uma ação da Brasiliana; recebeu à vista US$ 60 milhões e mais US$ 25 milhões depois de um ano; o saldo (US$ 515 milhões) será pago com os dividendos da nova empresa que couberem à AES. 4. Todas as parcelas futuras de pagamentos serão objeto de emissão de séries específicas de debêntures conversíveis, de modo que qualquer nova inadimplência dará ao BNDES o controle automático da Brasiliana – e, por extensão, da Eletropaulo, da AES Tietê e da AES Sul –, por conversão das debêntures em ações, sem necessidade de litigâncias judiciais. 5. Os juros de mora foram objeto de uma confissão de dívida por parte da AES, e no final da operação, se ela for plenamente exitosa, com todos os pagamentos sendo feitos em dia, serão objeto de um waver por parte do BNDES. 6. Com o acordo firmado, o BNDES pôde desconstituir as provisões que teve de fazer por conta da declaração de inadimplência da AES. Assim, houve uma reversão da ordem de pouco mais de US$ 1 bilhão, convertendo o prejuízo do primeiro semestre de 2003 em um lucro compatível com o desempenho histórico do Banco. 14. Resumidamente. O estado de São Paulo era proprietário, até abril de 1998, da maior e mais rentável empresa latino-americana de distribuição de energia elétrica, a Eletropaulo, totalmente construída com recursos dos contribuintes brasileiros. A venda da empresa para uma subsidiária de uma multinacional dos Estados Unidos, blindada através de filiais com sede nas Ilhas Cayman, foi feita com recursos do BNDES (50%) e com dívida externa (50%), sem aporte de dinheiro pela nova controladora, o grupo AES. O pagamento desses empréstimos seria feito com a receita da própria Eletropaulo. A situação econômico-financeira da empresa se deteriorou gravemente no período seguinte. Os recursos do BNDES não foram devolvidos e a dívida externa correspondente cresceu com a desvalorização cambial ocorrida a partir de janeiro de 1999. Como a empresa só presta serviços no território brasileiro, todos os seus recursos são auferidos em reais. Tornando-se filial de uma multinacional, passou a ter obrigações permanentes em dólares, onerando o balanço de pagamentos do Brasil. As garantias oferecidas como contrapartida aos empréstimos do BNDES – ações da própria empresa – não podiam ser recuperadas na Justiça. Um processo judicial para isso, além de ineficaz, produziria em pouco tempo o colapso da oferta de energia na maior parte do estado de São Paulo. Surpreendentemente, ninguém foi preso. * César Benjamín, Economia e política econômica
Projeto de Análise da Conjuntura Brasileira
Laboratório de Políticas Públicas da UERJ
Fundação Rosa Luxemburgo
Página na internet: www.outrobrasil.net
https://www.alainet.org/es/node/109767
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