Descaminhos do setor elétrico, ou o hospício Brasil
04/04/2004
- Opinión
1. Começamos a escrever este texto. O computador está ligado, a
luz acesa, o ventilador de teto ajuda a diminuir o calor. Estamos
consumindo energia. Aqui, no Rio de Janeiro, ela é entregue em
nossa casa pela Light, uma distribuidora que foi privatizada há
cerca de seis anos. A Light precisa comprar energia de uma
geradora. Na última vez em que negociou no mercado de geração,
encontrou a oferta de Furnas, uma empresa estatal que opera
usinas hidrelétricas; Furnas se propôs a entregar energia à Light
pelo preço de R$ 50,00 o megawatt-hora (MWh). Encontrou também a
oferta da Norte Fluminense, uma empresa privada que opera uma
usina termelétrica; para entregar o mesmo megawatt-hora, a Norte
Fluminense cobrou R$ 150,00.
A Light optou por comprar energia da Norte Fluminense.
Primeiro motivo: para ela, essa opção é indiferente, pois as
regras da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) permitem
que as distribuidoras repassem aos consumidores 100% do preço que
pagam às geradoras. Segundo motivo: a Norte Fluminense é do grupo
Light. Assim, nós, consumidores, somos forçados a comprar a
energia mais cara.
2. Fique calmo, estimado leitor. Você está apenas na porta do
hospício. Pois, se neste instante formos visitar a usina
termelétrica contratada pela Light, ela estará desligada,
entregue às atenções de um sonolento grupo de vigias, entretidos
talvez num jogo de damas. A eletricidade que estamos consumindo
está sendo colocada na rede por Furnas, por ordem do Operador
Nacional do Sistema (ONS), que coordena a operação física do
sistema. O ONS tomou essa decisão porque viu que a eletricidade
de Furnas é muito mais barata. Furnas, porém, não foi contratada
pela Light, de modo que sua energia está sendo remunerada pelo
preço do mercado livre, o qual está excepcionalmente baixo –
apenas R$ 18,00 –, pois há sobra de energia no país.
Quando minha conta de luz chegar, eu pagarei à Light um valor
que tem como base aqueles R$ 150,00 que ela contratou da Norte
Fluminense, ou seja, de si mesma. A Norte Fluminense, que
permaneceu desligada, repassará R$ 18,00 a Furnas, que produziu a
energia. A diferença será inteiramente embolsada pelo grupo
Light. Além de distribuidor, como se vê, ele é gigolô de energia.
Com todo o respeito.
3. Os nomes e números citados acima são reais. A mesma situação
repete-se país afora. É assim que funciona hoje o sistema
elétrico brasileiro, que já foi referência mundial de segurança e
racionalidade. Para conseguirmos entender como chegamos a isso,
teremos de ver, muito sucintamente, a história desse sistema, o
desastre da privatização feita por Fernando Henrique Cardoso, a
situação encontrada pelo governo Lula e as decisões deste
governo. É o nosso tema do mês. Preparem o estômago.
4. Quase 90% da capacidade de geração elétrica instalada no
Brasil e 99% da energia elétrica consumida se baseiam em duas
coisas gratuitas: a água das chuvas e a força da gravidade. Somos
um país tropical de grande extensão, com rios caudalosos, com
bacias hidrográficas distantes entre si, localizadas em regiões
que têm diferentes regimes de chuvas. Por serem rios de planalto,
de modo geral sua declividade é suave. Quando barrados, formam
grandes lagos. São energia potencial. É só fazer a água cair,
passando por uma turbina, que geramos a eletricidade mais barata
do mundo, de fonte renovável e não poluente, com recursos e
técnicas totalmente brasileiros. Se as barragens forem
construídas em seqüência, ao longo do curso de um rio, a mesma
gota de água é usada inúmeras vezes antes de se perder no oceano.
Os místicos diriam que tudo isso é uma bênção; os técnicos,
que é uma enorme vantagem comparativa. Ambos têm razão. A vida
útil de uma usina hidrelétrica é ilimitada. A obra de construção
civil, em princípio, é eterna como as pirâmides do Egito, e os
equipamentos precisam ser substituídos a cada período de mais ou
menos setenta anos de uso. O "combustível", como vimos, é
gratuito. O custo operacional, portanto, é baixíssimo. Como a
quantidade de chuvas varia em cada ano e como no curto prazo o
regime de chuvas está sujeito a oscilações imprevistas, fazemos
reservatórios. O sistema brasileiro acumula água suficiente para
cinco anos de operação, chova ou não chova. Nenhum país do mundo
tem tanta energia estocada. Graças a ela, nosso sistema
energético sempre funcionou pensando muito na frente. Quando era
quase todo estatal, começava-se a construir uma nova usina quando
a margem de risco atingia 5% no quinto ano, contado a partir do
presente.
5. As chuvas também variam de região para região. Para aproveitar
essa variedade, o sistema foi interligado por mais de 4 mil
quilômetros de linhas de transmissão, do Rio Grande do Sul ao
Maranhão. Um operador central tornou-se capaz de racionalizar o
uso da água – e regularizar o curso dos rios – em praticamente
todo o país. Os reservatórios situados em diferentes bacias
hidrográficas, que não têm nenhuma ligação física entre si,
passaram a funcionar como se fossem vasos comunicantes. Se chove
pouco na bacia do São Francisco e muito na bacia do Paraná, por
exemplo, a usina de Paulo Afonso é orientada a colocar pouca
energia na rede, de modo a economizar sua água que se tornou
preciosa, e a usina de Itaipu faz a compensação. Ao colocar mais
potência na rede, Itaipu cede água do rio Paraná, indiretamente,
para o rio São Francisco. Nos lares, escritórios e fábricas,
ninguém percebe o inteligente rearranjo que permite otimizar o
fornecimento de energia e a distribuição da água no território
nacional em cada momento.
6. No Brasil, como se vê, as linhas de transmissão integram o
sistema de produção de energia. Não são simplesmente acopladas a
ele para fazer a eletricidade escoar até o consumidor. Ligando
quase todo o território nacional, elas ajudam a fazer com que a
capacidade de geração hidrelétrica brasileira, vista como um
todo, seja 25% superior à soma da capacidade das usinas, vistas
isoladamente.
Para produzir tamanha sinergia necessita-se, é claro, de uma
operação coordenada do sistema. Coordenada, primeiro, em cada
bacia, pois a decisão de produzir ou economizar energia (ou seja,
verter ou represar água), tomada por uma usina situada a
montante, define as condições de operação das usinas situadas a
jusante. Tal necessidade de coordenação envolve também bacias
diferentes, como vimos no exemplo de Itaipu e Paulo Afonso. Mais
ainda: a coordenação é necessária não apenas à operação do
sistema que já existe, mas também às decisões de investimento
para sua expansão, pois a economicidade de uma usina nova depende
de suas possibilidades de integração ao conjunto da rede. Tomemos
o exemplo de Belomonte, no rio Xingu. Na estação chuvosa essa
usina pode produzir 11 mil MWh; na estação seca, 1 mil MWh. Para
avaliar se ela será econômica é necessário conhecer suas
possibilidades de interação com as usinas da bacia do rio Paraná,
que têm outro regime de chuvas.
7. A correta operação do sistema exige, pois, uma visão de
conjunto no espaço e um largo horizonte de tempo (uma
hidrelétrica leva, em geral, de cinco a sete anos para ser
construída). A idéia de operar cada usina isoladamente ou de
decidir isoladamente pela realização de um investimento novo não
tem sentido no sistema elétrico do Brasil. Esta é uma
especificidade nossa. Na maior parte do mundo a natureza não foi
tão generosa, de modo que a produção de eletricidade baseia-se
principalmente em usinas térmicas que usam carvão, gás ou
petróleo. Elas, sim, funcionam isoladamente, sem sinergia. E são
muito mais caras. Não acumulam combustível gratuito, pois têm de
comprá-lo todos os dias no mercado; gastam muito em manutenção;
precisam ser completamente reconstruídas a cada período de 25
anos; poluem o ambiente e emitem gases-estufa. Usinas nucleares
têm algumas limitações semelhantes, são perigosas e produzem
rejeitos radioativos. (Por precaução, o sistema tradicional
brasileiro também contava com usinas térmicas de reserva, para
serem usadas em situações excepcionais.)
8. Nós éramos felizes e sabíamos: desde sua implantação, nas
décadas de 1950, 1960 e 1970, o sistema brasileiro tornou-se
referência mundial. A oferta de energia segura e barata passou a
ser uma conhecida vantagem do nosso país. O sistema poderia ser
aperfeiçoado, é óbvio, como tudo na vida. Porém, nenhum,
rigorosamente nenhum motivo de natureza técnica ou de
racionalidade econômica exigiria alterar sua natureza.
Foi esse despautério que o governo de Fernando Henrique
Cardoso resolveu fazer, sob orientação do Banco Mundial e do
Fundo Monetário Internacional. A existência de um setor
energético nacional, estatal, planejado, eficiente, barato e de
grande porte, em um país periférico, era uma afronta à
modernidade neoliberal. A energia deveria ser tratada como uma
mercadoria qualquer – o chuchu, por exemplo – e colocada sob
controle do capital privado, o único que pode ser eficiente. De
preferência estrangeiro, para que no ato da venda o país
recebesse um punhado de dólares. Afinal, o Estado brasileiro
estava endividado. Feitas as privatizações da siderurgia, da
petroquímica, da Vale do Rio Doce, da Embraer, dos sistemas de
telecomunicações e de transportes, entre outras, restavam os
ativos do melhor sistema elétrico do mundo para abater uma
diminuta fração dessa dívida. E, na medida em que abandonássemos
a hidreletricidade, passando a priorizar usinas térmicas,
criaríamos um bom mercado para as multinacionais do setor.
9. O sistema cooperativo e planejado, que funcionava muito bem,
deveria pois dar lugar a um sistema concorrencial e mercantil.
Tomada esta decisão, todos aqueles benefícios e vantagens do
sistema brasileiro – o funcionamento em rede, a base hídrica, o
horizonte de longo prazo, o papel ativo das linhas de
transmissão, o fornecimento de energia barata – tornaram-se
dificuldades a superar, pois não se ajustavam bem à lógica de
operação do capital privado. Sendo impossível vender o sistema
energético em bloco, ele precisava ser esquartejado, dilacerado,
separado em pedaços, com se faz nos açougues com nacos de carne.
Isso nos conduzia ao limiar da suprema imbecilidade: romper a
sinergia do sistema e alterar sua base técnica para multiplicar
as usinas térmicas (o Brasil só usou até hoje, no máximo, a
metade do seu potencial hidrelétrico).
A história do sistema elétrico brasileiro nos últimos anos é
a história da luta dos governos brasileiros contra as nossas
vantagens comparativas e contra o conhecimento técnico que
acumulamos. É a história de uma destruição, a destruição do
Brasil. No caso de Fernando Henrique, foi uma luta em campo
aberto, que será lembrada como um dos atos mais vis de traição
nacional e que só arrefeceu quando seu governo conseguiu conduzir
o país ao apagão de 2001. No caso de Lula, é uma marcha
hesitante, ambígua, mas que poderá levar ao mesmo resultado.
10. Já contamos a história da reforma, e do subseqüente apagão,
em outro artigo ("Foi loucura, mas houve método nela: gênese,
dinâmica e sentido da crise energética brasileira", publicado na
revista Caros Amigos). Aqui, vamos direto ao que se passou
depois. A reforma acabou numa esquizofrenia. Depois de idas e
vindas, a operação física do sistema continuou centralizada, uma
herança do modelo anterior. Ela é feita pelo Operador Nacional do
Sistema (ONS), que determina quanta energia cada usina colocará
na rede em cada momento e a que preço. O ONS não segue, nem
respeita, nem sequer conhece os contratos feitos entre
distribuidoras e geradoras. Ele toma decisões levando em conta,
exclusivamente, a configuração física do sistema em cada momento.
Uma empresa privada que compra ou constrói uma geradora não
controla sua própria operação e não define quando e quanto vai
produzir, nem mesmo se vai produzir. Ela é uma investidora em
energia, e não uma operadora de usina. A usina serve apenas para
que ela faça contratos, mas os contratos não a obrigam a gerar a
energia contratada. (Por isso a Light pode contratar a Norte
Fluminense, que permanece desligada, enquanto Furnas, mesmo
descontratada, é obrigada pelo ONS a gerar.)
11. A reforma de Fernando Henrique nos prometia aumento de
oferta: gerou racionamento. Prometia energia barata: entre 1995 e
2002, as tarifas subiram 182,6% para a energia residencial,
130,3% para a industrial, 130,1% para a comercial e 110,2% para a
rural, enquanto a inflação acumulada no período foi de 58,68%.
Prometia dinheiro estrangeiro: foi o BNDES que financiou a maior
parte dos investimentos privados (ver, sobre isso, "O caso AES",
em apêndice a este texto). Prometia transferência de tecnologia
num setor em que a tecnologia de ponta era a nossa. Prometia
dólares para o Brasil, quando se sabe que geração e distribuição
de energia são pagos em reais, de modo que a remessa de lucros
das empresas estrangeiras vindas para esse setor passou a sangrar
permanentemente as reservas brasileiras de divisas.
12. Tudo resultou, é claro, numa completa desordem física, legal
e institucional. Depois de privatizar todas as distribuidoras
rentáveis e parte do sistema de geração, a reforma teve de ser
interrompida com o apagão de 2001. Estabelecida a emergência, o
consumo foi duramente reprimido, com grandes prejuízos para os
consumidores e a economia nacional, enquanto mundos e fundos eram
oferecidos para o capital privado investir com urgência. Este
capital interessa-se muito mais por usinas térmicas do que por
hidrelétricas, pois naquelas o investimento e o prazo de
conclusão das obras são muito menores. A amortização é mais
rápida. (É verdade que a energia gerada é muito mais cara, mas
isso é um problema do consumidor.)
Fernando Henrique enfrentou, porém, um problema: se, passada
a emergência, o mercado brasileiro seria atendido, como sempre
fora, pelo sistema hidrelétrico, como abrir espaços para as
térmicas desejadas pelo capital privado? A solução encontrada foi
ordenar que, a partir de 2003, as geradoras estatais fossem
obrigadas a descontratar anualmente 25% de sua energia, que
passaria a ser oferecida no mercado livre. Essa regra entrou em
vigor já no governo Lula, que a respeitou. (Fica claro, também
aqui, que quando os governos brasileiros dizem que respeitarão
contratos, referem-se apenas aos contratos que interessam ao
capital privado; as estatais de energia foram obrigadas a abrir
mão de contratos que lhes garantiam mercado. Furnas, por exemplo,
que é capaz de gerar 7.756 MW de energia barata, tem neste
momento 3.700 MW descontratados por imposição do governo. O
consumidor sai perdendo, pois essa energia barata é substituída
nos contratos pela mais cara, embora, como vimos, continue a ser
gerada e distribuída pelos preços do mercado livre.)
13. Quando Lula assumiu, em 2003, encontrou o cenário de 2001
invertido: excesso de energia ofertada (pois a chuvas
regularizaram a oferta hidrelétrica e várias térmicas começaram a
operar) e brutal contração da demanda (pois o consumo nunca
retornou aos níveis anteriores e a economia entrou em recessão).
Tal contração, da ordem de 25%, é uma anomalia, pois em situação
normal, em um país com o nível de desenvolvimento do Brasil, o
consumo de energia cresce sempre mais do que o PIB. Mas, graças a
ela, parece estar afastada a possibilidade de novo racionamento
até, pelo menos, 2007. Com energia sobrando, as térmicas tendem a
permanecer desligadas, mas continuam muito lucrativas. Liquidam
seus contratos comprando energia das hidrelétricas estatais, a
preço vil.
14. O novo governo tinha nessa área um dos seus pontos fortes. A
competência do grupo de energia do PT sempre foi reconhecida.
Antes das eleições de 2002, ainda trabalhando no âmbito do
Instituto da Cidadania, o grupo reafirmou antigos compromissos:
recuperar a visão de conjunto, típica de um sistema cooperativo,
tratar a energia como serviço público, valorizar a dimensão do
planejamento, priorizar a menor tarifa, fortalecer a Eletrobras,
e assim por diante. A posição que Fernando Henrique já havia
tomado, de interromper o processo de privatização do setor, foi
confirmada com mais ênfase e mais clareza pelo novo governo. Ele
resolveu, no entanto, não questionar as privatizações já
realizadas e respeitar escrupulosamente todos os contratos com o
capital privado, mesmo os leoninos. A expectativa era de que este
capital cobrisse entre 50% e 60% dos investimentos previstos para
os anos seguintes. Além disso, o governo tratou de reconstruir
uma arquitetura legal e institucional para o setor, no contexto
de um modelo misto, que recentemente começou a ganhar forma
final, com a Medida Provisória n. 144, em via de tramitação no
Congresso.
A posição cautelosa da equipe de transição justificava-se
pelos seguintes argumentos: (a) a capacidade de financiamento,
por parte do Estado, estava debilitada, não sendo pois de todo
ruim que se contasse com um aporte de recursos do setor privado;
(b) seria uma temeridade questionar os contratos assinados
durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, que envolviam
muitos bilhões de dólares, pois isso daria lugar a contenciosos
jurídicos que se estenderiam por muito tempo, paralisando os
investimentos; (c) o modelo estatal anterior também padecia de
falhas, concentrando poder excessivo em mãos da burocracia
estatal e das grandes empreiteiras.
15. Tendo como ponto de partida o modelo formulado pelo Instituto
da Cidadania, o governo Lula passou um ano negociando com
representantes de empresas privadas. Fez muitas concessões. A
proposta que consta da MP 144 estabelece as bases de uma
legislação de caráter híbrido, ultracomplexa, pouco compreendida
e ainda dependente de muita regulamentação posterior (quanto mais
híbrido o modelo, mais complexo ele tende a ser). Técnicos com
larga experiência na gestão estatal estão confusos, e o setor
privado também reclama, dizendo que o "risco regulatório"
continua a ser muito grande. Ninguém se sente plenamente
atendido. Os chamados "custos de transação", no novo modelo, são
muito altos, com a multiplicação de órgãos e instâncias. As
equações são complicadíssimas. Cada afirmação feita na nova lei
parece ser negada em seguida, seja por outras afirmações, seja
por regras excepcionais, inseridas ad hoc. É provável que
juristas e advogados tenham muito trabalho.
O que se pode entender é que o planejamento da expansão do
setor elétrico ficará sob a responsabilidade de um novo órgão
federal. Os novos empreendimentos, definidos por este órgão,
serão oferecidos, em princípio ao setor privado, em licitações
nas quais prevalecerá o critério das menores tarifas. Um agente
de comercialização vai gerenciar os contratos, que deixarão de
ser individuais e passarão a ser de todas as geradoras com todas
as distribuidoras. A Eletrobras continuará a ser tratada como uma
empresa a mais, entre as outras, como se fosse privada. A chamada
"energia velha" – ou seja, a energia barata, produzida por
hidrelétricas já amortizadas, que continuam estatais – será usada
para rebaixar as tarifas médias do sistema. E o setor privado
permanecerá sendo considerado o principal investidor (o que
parece ser uma temeridade, pois ninguém pode garantir que ele
resolva mesmo investir, num contexto em que são muito altos os
riscos macroeconômicos, inclusive o cambial, e os custos de
oportunidade).
16. Entre os técnicos, parece haver consenso de que estamos longe
de uma solução para a crise a que o setor foi levado pela
irresponsabilidade do governo de Fernando Henrique. Há problemas
de vários tipos. Como vimos, hoje sobra energia, mas isso é uma
realidade passageira. Já preocupa o fato de que os investimentos
– especialmente os do setor privado – estão paralisados. A
Eletrobras investiu R$ 3,0 bilhões em 2003, quantia muito
insuficiente, e (contando com Itaipu) recolheu cerca de R$ 4,5
bilhões ao Tesouro para engordar o superávit primário. Poderia,
pois, investir pelo menos o dobro.
O papel da Eletrobras está, no mínimo, confuso. Conforme a
visão original do grupo de energia, ela deveria ser uma espécie
de "Petrobras da eletricidade", ou seja, uma empresa forte,
nacional e estatal, comprometida com o futuro do país, não
monopolista, capaz de liderar o setor, estabelecendo parcerias
nas situações adequadas. As empresas da holding têm capacidade
técnica e financeira, enorme patrimônio e endividamento quase
zero. Poderiam alavancar muita coisa. Mas, não é isso o que está
ocorrendo. A Eletrobras está enfraquecida, tolhida, sangrada em
recursos pelo superávit primário, tratada como se fosse um
problema, cheia de micos pretos na mão e proibida de liderar
parcerias. Quando pensa em se soltar, é vista com desconfiança.
O problema é grave porque, como vimos, investimentos em
energia demandam muito tempo. Para afastar o risco de novos
apagões depois de 2007 é necessário que as obras se iniciem sem
demora. Elas deveriam estar em pleno curso, pelo menos, em 2005.
Há investimentos feitos pela Petrobras (em térmicas a gás) e
algumas hidrelétricas estão sendo construídas, para uso próprio,
por consumidores eletrointensivos. É pouco. O setor privado
continua sem corresponder às expectativas que o governo Lula
deposita nele.
17. Mas a principal crítica que se pode fazer às ambigüidades do
governo no setor de energia é de caráter estratégico. Para
discuti-la, usaremos livremente as idéias de Leslie Afrânio
Terry, um dos mais brilhantes técnicos do setor. Leslie enviou
para um de nós [César Benjamin] um conjunto de notas, reunidas
sob o título "Desenvolvimento econômico e energia velha no
Brasil". Sua morte súbita e inesperada impediu que debatêssemos
essas idéias com ele, como era a intenção, e tampouco sabemos se
foram publicadas em algum lugar. Relidas agora, as notas parecem
proféticas.
Como diz o título, Leslie explora as potencialidades futuras
abertas pelo aumento da oferta da chamada "energia velha", que
por definição é exclusivamente de origem hidrelétrica. "A
produção das usinas hidráulicas já amortizadas", escreveu, "vem
sendo designada como 'energia velha'. Sua existência reduz custos
de produção (e tarifas) e representa importante vantagem
comparativa da sociedade brasileira. (...) A 'energia velha' deve
ter sido responsável, nesta virada de século, por uma redução de
quase 30% no custo de produção da energia elétrica no Brasil,
relativamente ao custo marginal de longo prazo. Este percentual
só tenderá a aumentar, na medida em que o crescimento da demanda
for se saturando, como decorrência dos estágios superiores de
desenvolvimento atingidos. Isso só vale, naturalmente, se o
Brasil persistir na opção hidrelétrica. (...) Extrapolando-se o
raciocínio ao limite, pode-se vislumbrar, no futuro, o
fornecimento exclusivo de 'energia velha' à sociedade brasileira,
reduzindo-se então o custo da eletricidade quase que apenas aos
custos de transmissão e distribuição."
18. Leslie trabalha em seguida com dados relativos à superfície,
demografia, produto nacional bruto, densidade territorial de
produção e consumo de energia elétrica, sempre comparando a
situação brasileira com a de um grupo de onze países europeus.
Admite hipóteses consagradas na literatura especializada, para
então verificar o que aconteceria se, em 2050, o Brasil atingisse
um padrão de desenvolvimento semelhante ao que os países europeus
têm hoje (renda per capita de cerca de US$ 25 mil). A taxa de
expansão do consumo de energia segue sendo superior ao
crescimento do PIB por um período, mas, como sempre acontece,
essa relação começa a se inverter entre 2010 e 2015, quando a
economia brasileira atinge novos patamares de desenvolvimento,
menos intensivos em energia. É uma hipótese perfeitamente
plausível, que corresponde à experiência histórica.
Ele verifica então que o consumo per capita de energia
elétrica no Brasil, em 2050, se estabilizaria num nível três
vezes superior ao atual, demandando uma oferta total que
corresponde aproximadamente ao potencial hidrelétrico brasileiro,
tal como estimado no Plano 2015 da Eletrobras. A intensidade de
energia elétrica na formação do PNB brasileiro seria quase duas
vezes e meia menor que a atual. Com bases nesses parâmetros,
calcula a evolução, no tempo, do custo médio de produção de
energia elétrica, que vai se reduzindo pelo aumento da 'energia
velha' disponível. Eis a sua conclusão: "Com as hipóteses feitas,
ao atingir em 2050 a população e um nível de desenvolvimento
semelhantes ao dos onze países europeus nos dias de hoje, a
sociedade brasileira disporia de energia elétrica produzida com
custos equivalentes a 20% do seu valor normal. Em mais dez ou
quinze anos, os custos atingiriam níveis meramente simbólicos.
(...) Para dispor permanentemente de energia elétrica quase
gratuita [na quantidade necessária e por tempo indefinido], o
Brasil precisará utilizar cerca de 2,1% do seu território na
formação de represas e lagos, sendo 70% dessa área localizada na
Amazônia. É uma área equivalente à que se costuma desflorestar na
Amazônia em apenas uma década, em nome de projetos agropecuários
de valor discutível, ou mesmo sem propósito nenhum."
19. Quem financiaria isso? O próprio setor elétrico, responde
Leslie. Calculando receitas e despesas do setor – incluindo, no
cálculo, o ressarcimento de depreciação contábil anual de 1/30 do
capital investido, remuneração anual de 12% ao ano ao capital
remanescente, 25% de imposto de renda e 9% de contribuições
sociais – ele diz que "o setor teria plena capacidade de
autofinanciamento ao longo de todo o tempo, transferindo sempre
ao consumidor toda a vantagem da 'energia velha'". "A
participação significativa e sempre crescente da 'energia velha'
[desde que preservada a opção preferencial pela hidreletricidade,
o que implica um modelo com predominância do Estado] parece não
ter tido ainda a sua importância devidamente apreciada. (...) A
competição em mercado irá elevar o valor de comercialização de
toda a produção, incluída aí toda a 'energia velha' ao valor, bem
mais elevado, do custo marginal de produção. (...) Não parece
haver qualquer razão para subtrair à sociedade brasileira tão
importante vantagem comparativa e permitir sua pura e simples
apropriação pelos produtores, sem qualquer contrapartida. Em se
desejando proporcionar a vantagem de baixos preços de energia
elétrica à sociedade brasileira, será necessário garantir que os
benefícios da 'energia velha' sejam repassados ao consumidor.
Como os mecanismos normais de mercado não se mostram apropriados,
isso precisará ser conseguido por meio de regulação."
20. Perdoem as longas citações. Além de constituir uma homenagem
a Leslie Terry, elas mostram o extraordinário potencial
brasileiro, em energia elétrica, no século XXI. Se fizer as
opções corretas, o Brasil poderá ter energia quase gratuita, de
forma segura e por tempo indefinido, a partir de meados do
século, o que constituiria um extraordinário salto qualitativo em
seu processo de desenvolvimento econômico e social. Não nos
faltam, para isso, nem dotação natural de fatores, nem capacidade
técnica, nem fontes de financiamento. Falta retomar um projeto
nacional consistente e sustentá-lo no tempo. Eis aí o problema.
Na questão energética, como em tantas outras, o governo Lula está
acertando aqui e acolá no varejo, mas errando terrivelmente no
atacado. O caminho que escolheu para o setor elétrico – um
caminho híbrido e confuso, definido por injunções de curto prazo
e completamente permeado pelos interesses privados – não
configura uma estratégia de longo prazo no rumo acertado.
Anexo
O caso AES
Resumimos no texto abaixo as principais informações sobre a venda
da Eletropaulo ao grupo norte-americano AES. Trata-se de
magnífico exemplo de como foram feitas as privatizações no
Brasil. Mostra também uma ação acertada do governo Lula. Que os
parlamentares e o Ministério Público prestem atenção.
1. Em 3 de julho de 1997, com a presença do presidente Luiz
Carlos Mendonça de Barros e do vice-presidente José Pio Borges de
Castro Filho, a diretoria do BNDES aprovou uma decisão sobre o
financiamento à aquisição de ações de companhias estaduais a
serem privatizadas. Cinco condições básicas foram então
definidas: (a) o Banco emprestaria, ao comprador, até 50% do
preço mínimo do leilão, (b) cobrando encargos de 2,5% ao ano, (c)
com taxa de risco também de 2,5%, (d) com prazo de operação entre
cinco e oito anos, (e) com prazo de carência entre um e dois
anos.
Além disso, a diretoria aprovou que, como garantia dos
empréstimos, o Banco aceitaria a caução de ações das próprias
empresas vendidas, além de uma simples carta dos novos acionistas
controladores, prometendo a adequada administração das companhias
e o cumprimento das obrigações financeiras assumidas. Tal
decisão, com validade de doze meses, abriu caminho para que a
operação Eletropaulo-AES tramitasse seguindo regras próprias,
estranhas às regras normais de cautela que presidem qualquer
outra operação feita pelo BNDES.
2. A Eletropaulo foi privatizada em 15 de abril de 1998, pelo
preço mínimo de R$ 2 bilhões (equivalentes na época a US$ 1,776
bilhão), dentro pois do prazo de validade da decisão acima
descrita. Nesse momento, a empresa era responsável pelo
atendimento a 6,4 milhões de consumidores em 79 municípios,
localizados na Região Metropolitana de São Paulo, no Vale do
Paraíba, na Baixada Santista, no Alto do Tietê (Guarulhos,
Suzano, Mogi das Cruzes etc) e no Oeste Paulista (eixo Sorocaba /
Jundiaí). Em 1997, último ano antes da privatização, a
Eletropaulo comercializou 58.183 GWh de energia, correspondentes
a 64% do mercado do estado de São Paulo e 21% de todo o mercado
brasileiro.
Concessionária dos serviços em uma área que abriga o coração
industrial do país, a renda per capita mais elevada e uma
densidade demográfica de 1.066 habitantes por km2 (contra apenas
20,25 habitantes por km2 na média brasileira), a Eletropaulo era
a mais importante e mais rentável companhia distribuidora de
energia da América Latina.
3. Em 16 de abril de 1998, dia seguinte ao leilão de
privatização, a Lightgás (atual AES Elpa) recebeu do BNDES um
financiamento no valor aproximado de R$ 1 bilhão (equivalentes na
época a US$ 890 milhões) para efetuar a compra das ações que lhe
garantiriam o controle acionário da companhia. O BNDES aceitou
que a operação tivesse como garantia as próprias ações
transacionadas, aplicando assim a decisão descrita no item 1.
Ficou estabelecido que a amortização desse financiamento seria
feita em nove parcelas semestrais, com vencimento entre abril de
1999 e abril de 2003.
4. Após essa operação, a Eletropaulo tornou-se o principal ativo
do grupo AES no Brasil. Sua aquisição, no entanto, não envolveu
capital próprio do grupo. Além do aporte do BNDES, correspondente
a 50% da compra, os recursos faltantes foram integralmente
captados em instituições financeiras internacionais.
O grupo AES usou a compra da Eletropaulo menos para dedicar-
se à distribuição de energia, stricto sensu, e mais para
sustentar processos de alavancagem financeira. Isso fica nítido
quando se verifica o perfil da dívida da empresa, que começa a se
deteriorar já no primeiro ano da privatização: em 1997, ainda
estatal, a empresa devia R$ 1,1 bilhão, 31% dos quais sendo
dívida de curto prazo; em fins de 1998 (primeiro ano da
privatização e antes da crise cambial brasileira), a dívida
crescera 34%, com 80% dela vencendo no curto prazo. Grande parte
dessa nova dívida foi denominada em dólar, sem que a empresa
tomasse medidas de proteção contra uma desvalorização cambial que
então se tornava cada vez mais provável.
5. Tal desvalorização, como se sabe, ocorreu com força em janeiro
de 1999. O Brasil foi levado a alterar seu regime cambial, e as
dívidas denominadas em moeda estrangeira aumentaram, quando
calculadas em moeda nacional. Essa situação, como é óbvio, não
atingiu apenas as operações da AES, mas também as do BNDES e de
todas as demais empresas que, operando no Brasil, estavam
expostas ao risco cambial.
No mês seguinte, fevereiro de 1999, o BNDES aceitou
prorrogar por dois anos a primeira parcela dos pagamentos da AES
Elpa, descritos no item 3, que passou a vencer em abril de 2001.
Assim, mesmo sem realizar-se o pagamento previsto, não se
caracterizou formalmente nenhuma inadimplência.
6. Mesmo diante da grave deterioração dos indicadores econômico-
financeiros da Eletropaulo e do brutal crescimento da sua dívida
com o próprio BNDES, o Banco, estranhamente, optou por aumentar o
financiamento à multinacional. Em janeiro e em maio de 2000, o
BNDESPAR realizou duas operações de venda a termo de ações
preferenciais da Eletropaulo para a AES Transgás, totalizando US$
872 milhões. Os pagamentos, também vinculados à variação do
dólar, seriam feitos em quatro parcelas, sempre em janeiro, entre
os anos 2000 (parcela correspondente ao pagamento à vista da
primeira venda) e 2003. Como no caso anterior, já descrito, o
BNDES aceitou que as operações tivessem como garantia as próprias
ações transacionadas.
7. Entre 1999 e 2001 a receita bruta da Eletropaulo (em reais)
cresceu 43%, passando de R$ 5,12 bilhões para R$ 7,32 bilhões,
refletindo o aumento no preço da energia elétrica cobrada aos
consumidores brasileiros, bem acima da inflação. Porém, a posição
da empresa continuou a deteriorar-se, por força de seu
endividamento em dólar, não só com o BNDES, mas com credores
internacionais.
8. Em janeiro de 2001 a AES Transgás efetuou normalmente o
pagamento da segunda parcela do empréstimo que havia contraído
com o BNDES. Em abril a AES Elpa também pagou a primeira parcela
do seu empréstimo (item 5). Em fins de maio, diante da
possibilidade de um colapso na oferta de energia elétrica na
maior parte do território nacional, o governo federal instituiu
medidas emergenciais, logrando obter, nos sete meses seguintes,
uma redução de 16% no consumo nacional de eletricidade. Essa
circunstância também afetou a área de concessão da Eletropaulo e
tornou irrealistas as projeções anteriores de desempenho e de
lucratividade da empresa.
9. Em outubro de 2001 a AES Elpa pagou a segunda parcela do
empréstimo descrito no item 3. Em janeiro de 2002, porém, a AES
Transgás pediu prorrogação por dois anos da parcela que deveria
ser paga ao BNDESPAR (item 6), que aderiu parcialmente à
proposta, recebendo US$ 40 milhões dos US$ 218 milhões previstos.
Em abril foi a vez da AES Elpa, que obteve do BNDES nova
prorrogação, até 15 de outubro, de uma parcela de US$ 203,9
milhões.
Nessa altura era visível a fragilização da Eletropaulo, cujo
valor de mercado caíra de R$ 4,89 bilhões em 1999 para R$ 960
milhões no terceiro trimestre de 2002. A estrutura de capital da
empresa já era composta de 75% de recursos de terceiros e apenas
25% de recursos próprios, revelando um elevado grau de
alavancagem.
10. Em 25 de setembro de 2002, pouco antes do vencimento do prazo
acima descrito (15 de outubro), o grupo AES solicitou ao BNDES a
reestruturação das dívidas da AES Elpa e da AES Trangás, alegando
dificuldades para honrar os pagamentos previstos. A diretoria do
BNDES, mais uma vez, decidiu sustar todas as cobranças –
principal e encargos – que venceriam entre 15 e 28 de outubro.
Reabriu negociações e aceitou manter os pagamentos suspensos até
16 de dezembro.
O Banco fez duas exigências: a AES deveria pagar US$ 17
milhões e formalizar o compromisso de emitir debêntures
(transformáveis em ações) de outras empresas do grupo (AES Sul e
AES Tietê), a serem entregues ao BNDES. Além disso, o Banco
admitiu incluir nas negociações ativos não operacionais do grupo
AES.
Em 15 de outubro a AES informou ao BNDES que não efetuaria o
pagamento solicitado e não poderia emitir as debêntures, pois a
AES Sul e a AES Tietê estavam oneradas a outros credores, no
exterior, os quais haviam proibido qualquer negociação desse
tipo.
Em 28 de outubro e em 14 de novembro o BNDES aceitou manter
suspensas até 20 de dezembro as cobranças das dívidas da AES Elpa
e da AES Transgás, respectivamente.
Em 11 de dezembro o BNDES foi informado de que a AES
Corporation havia incluído a venda da AES Tietê em uma negociação
com seus credores nos Estados Unidos. Também foi informado de que
um dos ativos não operacionais mais valorizados do grupo no
Brasil – o prédio denominado JK – estava em processo avançado de
alienação, que incluíra o pagamento de uma primeira parcela
(sinal) pelo comprador, à revelia das negociações com o Banco.
11. Até o segundo trimestre de 2002, segundo informações da
própria AES, a Eletropaulo pagara dividendos de R$ 781 milhões e
remetera lucros no montante de US$ 111 milhões à matriz norte-
americana. Os pagamentos não honrados pela AES com o BNDES
ultrapassavam US$ 1,15 bilhão em dezembro desse ano, sendo US$
547 milhões das operações com a AES Elpa e US$ 603 milhões das
operações com a AES Transgás. Mesmo assim, nenhuma declaração de
inadimplência havia sido feita pelo Banco.
12. Foi esta a situação encontrada pela diretoria do BNDES que
tomou posse em janeiro de 2003. Com os seguintes agravantes:
(a) Todas as operações da AES Coporation com o BNDES foram feitas
através de subsidiárias instaladas no paraíso fiscal das Ilhas
Cayman, que controlam a AES Elpa e a AES Transgás. Constituiu-se
assim uma eficiente blindagem que impedia qualquer ação do Banco
contra a matriz da empresa.
(b) As garantias obtidas pelo BNDES nas operações eram fictícias.
As ações caucionadas não podiam ser retomadas pelo Banco, pois a
legislação brasileira não permite que o credor se aposse dos bens
dados em garantia. Havendo inadimplência – como era o caso – o
BNDES podia iniciar uma litigância judicial que na melhor das
hipóteses levaria a Justiça a determinar o leilão público das
ações, depois de procedimentos cujos prazos foram estimados em
pelo menos sete anos (para as ações ordinárias envolvidas nas
operações com a AES Elpa) e pelo menos três anos (para as ações
preferenciais envolvidas nas operações com a AES Transgás).
É fácil perceber que um processo judicial desse tipo, com
esses prazos, produziria a devastação patrimonial da Eletropaulo,
pela suspensão de investimentos em uma empresa sub judice, com
graves riscos para a oferta de energia ao coração industrial do
Brasil, densamente urbanizado. Além disso, a provável retomada da
concessão pela Aneel reduziria a zero o valor das ações da
Eletropaulo dadas em garantia ao BNDES.
13. Foi neste contexto que a nova diretoria teve de tomar
decisões, que podem ser assim sintetizadas:
(a) O BNDES declarou pela primeira vez a inadimplência do grupo
AES. Ao agir assim, o Banco teve de caracterizar no seu balanço,
também pela primeira vez, que tinha em sua carteira essas
"operações de curso problemático". Tal decisão causou o prejuízo
recorde apresentado pelo BNDES em 30 de junho de 2003. Até então,
a real situação ficava escondida pelas sucessivas repactuações –
sem pagamentos – dos empréstimos vencidos.
(b) A partir dessa decisão, o BNDES abriu nova rodada de
negociações com a AES, chegando a um novo acordo, que prevê a
criação de uma nova empresa, chamada Brasiliana. O novo acordo
contém as seguintes vantagens:
1. Foi firmado diretamente com a AES Corporation, com sede
nos Estados Unidos, eliminando-se as numerosas "papers companies"
sediadas em paraísos fiscais que faziam a blindagem da empresa
norte-americana.
2. A Brasiliana recebeu outros ativos do Grupo AES no
Brasil, como a AES Tietê e a AES Sul, aumentando as garantias
reais da operação. A AES Corporation teve de desonerar essas
empresas de quaisquer compromissos em relação aos seus outros
credores internacionais.
3. O BNDES não fez nenhum aporte de capital e converteu US$
600 milhões em 50% menos uma ação da Brasiliana; recebeu à vista
US$ 60 milhões e mais US$ 25 milhões depois de um ano; o saldo
(US$ 515 milhões) será pago com os dividendos da nova empresa que
couberem à AES.
4. Todas as parcelas futuras de pagamentos serão objeto de
emissão de séries específicas de debêntures conversíveis, de modo
que qualquer nova inadimplência dará ao BNDES o controle
automático da Brasiliana – e, por extensão, da Eletropaulo, da
AES Tietê e da AES Sul –, por conversão das debêntures em ações,
sem necessidade de litigâncias judiciais.
5. Os juros de mora foram objeto de uma confissão de dívida
por parte da AES, e no final da operação, se ela for plenamente
exitosa, com todos os pagamentos sendo feitos em dia, serão
objeto de um waver por parte do BNDES.
6. Com o acordo firmado, o BNDES pôde desconstituir as
provisões que teve de fazer por conta da declaração de
inadimplência da AES. Assim, houve uma reversão da ordem de pouco
mais de US$ 1 bilhão, convertendo o prejuízo do primeiro semestre
de 2003 em um lucro compatível com o desempenho histórico do
Banco.
14. Resumidamente. O estado de São Paulo era proprietário, até
abril de 1998, da maior e mais rentável empresa latino-americana
de distribuição de energia elétrica, a Eletropaulo, totalmente
construída com recursos dos contribuintes brasileiros.
A venda da empresa para uma subsidiária de uma multinacional
dos Estados Unidos, blindada através de filiais com sede nas
Ilhas Cayman, foi feita com recursos do BNDES (50%) e com dívida
externa (50%), sem aporte de dinheiro pela nova controladora, o
grupo AES. O pagamento desses empréstimos seria feito com a
receita da própria Eletropaulo.
A situação econômico-financeira da empresa se deteriorou
gravemente no período seguinte. Os recursos do BNDES não foram
devolvidos e a dívida externa correspondente cresceu com a
desvalorização cambial ocorrida a partir de janeiro de 1999.
Como a empresa só presta serviços no território brasileiro,
todos os seus recursos são auferidos em reais. Tornando-se filial
de uma multinacional, passou a ter obrigações permanentes em
dólares, onerando o balanço de pagamentos do Brasil.
As garantias oferecidas como contrapartida aos empréstimos
do BNDES – ações da própria empresa – não podiam ser recuperadas
na Justiça. Um processo judicial para isso, além de ineficaz,
produziria em pouco tempo o colapso da oferta de energia na maior
parte do estado de São Paulo.
Surpreendentemente, ninguém foi preso.
* César Benjamín, Economia e política econômica
Projeto de Análise da Conjuntura Brasileira
Laboratório de Políticas Públicas da UERJ
Fundação Rosa Luxemburgo
Página na internet: www.outrobrasil.net
Projeto de Análise da Conjuntura Brasileira
Laboratório de Políticas Públicas da UERJ
Fundação Rosa Luxemburgo
Página na internet: www.outrobrasil.net
https://www.alainet.org/es/node/109767
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