Psicologia do cardápio
16/05/2004
- Opinión
Senta-se à mesa de um restaurante e nunca se encontra o cardápio. É como se fosse uma jóia preciosa a ser exposta depois que o cliente passou pelo crivo do maitre. Mesmo assim o cardápio não chega. Vem o garçom que, solícito, indaga o que se deseja beber. O cliente não sabe. Está inseguro. Talvez uma caipirinha. Ou uma cerveja. Qual cerveja há? Se preferir vinho, vem a carta. Para vinho, carta; para comida, cardápio. Palavra que vem do latim "charta", papel, acrescido de "dapum", genitivo de "dapes", iguarias.
Sem que o comensal peça, vem o couvert. Isso quando o restaurante é chique. Nos demais, é entrada mesmo. Ou antepasto. Custa os olhos da cara e deveria ter a finalidade de abrir o apetite. Acaba por aplacá-lo, sobretudo quando acompanhado de pães, manteiga e pastas. Ou de rabanete, que deveria vir ao fim da refeição, pois já no ano 70 de nossa era os cozinheiros gregos propagavam-lhe a propriedade de facilitar a digestão.
Nada do cardápio aparecer. Como se ficasse trancado no cofre do restaurante. Se este encontra-se lotado, há que ter paciência para que o bendito pouse à mesa. Após muita espera e insistência, ei-lo. Revestido de couro, plastificado ou em cartão. Um para cada dois ou três comensais. E, ao lado, o maitre de olho. Como se temesse que fossem roubar a lista de iguarias. O cliente, pressionado pelo olhar inquiritivo do maitre, afobado em passar o cardápio ao acompanhante, mal escolhe o que vai comer. Faz o pedido, o maitre anota e, antes de retirar-se, recolhe o cardápio. A preciosidade não pode ficar à mesa. Deve retornar ao nicho no qual é guardada com todo zelo.
Por que os cardápios não são como folhetos ilustrados de lojas de departamento que, aos domingos, recheiam os jornais? Ignoro. Tivesse eu um restaurante, panfletaria o cardápio. Em cada mesa de quatro pessoas, poria uns dez. Primeiro, para ajudar a abrir o apetite dos comensais. Nada melhor do que ler o nome dos pratos e saborear as suas fotos. Tem-se, inclusive, uma idéia da quantidade. Depois, para que o cliente enfie no bolso e leve, divulgando o restaurante. O que os olhos não vêemŠ
Talvez os restaurantes prefiram não distribuir cardápios para não se comprometerem com a estabilidade dos preços. Ora, se a inflação pressiona, por que não imprimi-los com a advertência de que os preços são válidos até tal data? Caso o dragão não acorde, melhor ainda. O valor dos pratos, vencida a data prevista, terá um gostinho de promoção.
Nada melhor para estragar o apetite do que tomar em mãos um cardápio besuntado de gordura. Em rodízio de carne esse problema não existe, pois costuma não haver cardápio. Já se prevê que o pasto da fazenda transfere-se, pedaço a pedaço, à mesa. Mas já que o preço é fixo, para reduzir o consumo de peças nobres - alcatra, maminha, picanha - serve-se, primeiro, o que enche o bucho: linguiça, torresmo, frango com pele e outros espetos gordurentos. Na hora do bem-bom, cadê apetite? Quem preserva a saúde já começa pelos finalmentes.
Comer é uma arte, assim como é preciso ter ouvido para apreciar a boa música. Servir comida é dirigir uma sinfônica. Qualquer nota fora do tom estraga tudo. Não precisa haver sofisticação. Prova disso é que os melhores restaurantes têm incluído o picadinho em seus cardápios. Mas fica uma pergunta no ar: se nunca falta arroz, por que o companheiro inseparável dele no dia-a-dia doméstico, o feijão, só aparece quando há feijoada?
Há muitos critérios para se avaliar um restaurante, além do fator principal, os preços, só ignorado por uma elite que paga além do que pesa. Uns preferem partir da carta de vinhos, outros da alvura das toalhas, e há quem seja atraído por um dos pratos. Há ainda os que transformam determinado restaurante em extensão de sua casa. Ficam amigos do dono, do maitre, dos garçons. A amizade garante qualidade. O único risco é o proprietário dar aquela de "deixa que eu escolho" e errar no prato e acelerar no preço.
Para a minha avaliação, importa a higiene. E costumo conferi-la, não visitando a cozinha, mas o banheiro. Se ele não se encontra em estado impecável, desconfio da qualidade da comida.
* Frei Betto é escritor, autor de "Comer como um frade - divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca" (José Olympio), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/109935?language=es
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