Ler um vídeo (Terceira parte): três ombros
03/09/2004
- Opinión
A lua apareceu no ombro da noite, mas foi só por um
momento. As nuvens se afastaram, como abrindo uma
cortina, e então o corpo noturno fez brilhar sua pegada
de luz. Sim, como a marca deixada por um dente no ombro
quando, no vôo do desejo, não se sabe se cai ou se
levanta.
Há 20 anos, depois de subir trabalhosamente a primeira
encosta para entrar nas montanhas do sudeste mexicano,
sentei num canto do caminho. A hora? Não lembro
exatamente, mas era essa na qual a noite diz que já-
foi-bom-de-grilos-melhor-ir-dormir, e nada do sol se
levantar. Ou seja, era de madrugada.
Enquanto tratava de acalmar a respiração e as batidas
do coração, pensava na conveniência de optar por uma
profissão mais sossegada. Afinal, estas montanhas
haviam passado muito bem sem a minha chegada, e não
sentiriam a minha falta.
Devo dizer que não acendi o cachimbo. E tem mais, nem
sequer me mexi. E não por disciplina militar, mas sim
porque o meu formoso corpo estava todo dolorido.
Iniciando um costume que mantenho até agora (com uma
férrea autodisciplina) comecei a amaldiçoar a minha
habilidade para me meter em encrencas.
Estava nisso, ou seja, no esporte da queixa-queixa-
queixa, quando vi passar, morro acima, um senhor com um
fardo de milho nas costas. Vulto visivelmente cansado,
o homem caminhava curvado. Haviam me tirado a carga no
meio da encosta para não atrasar a marca, mas o que me
pesava era a vida, não a mochila. Enfim, não sei quanto
fiquei aí sentado, mas, de repente, o senhor passou de
novo, agora morro abaixo e já sem a carga. Mas o homem
continuava caminhando curvado. "Xiii!", pensei (e esta
era a única coisa que podia fazer sem que me doesse
tudo), "é assim que vou ficar com o tempo, minha
postura varonil vai se arruinar e o meu futuro como
símbolo sexual será como as eleições, uma fraude".
De fato, há alguns meses caminhava como um ponto de
interrogação. Mas não pelo peso da mochila, mas tão
somente para não enroscar o nariz nos galhos e nos
cipós.
Um ano depois encontrei o Velho Antonio. Numa madrugada
fui até à sua choça pegar tostadas e pinole.[1] Naquela
época não nos mostrávamos ao povo e só alguns indígenas
sabiam de nós. O Velho Antonio se ofereceu para
acompanhar-me até o acampamento, de tal forma que
dividiu a carga em dois fardos e, no dele, colocou o
mecapal.[2] Eu coloquei o fardo na mochila porque não
me dava com o mecapal. Fizemos a caminhada com uma
lanterna até chegar na beirada do potreiro, onde
começavam as árvores. Paramos diante de um riacho,
esperando amanhecer.
Não lembro bem de onde veio a conversa, mas o Velho
Antonio me explicou que os indígenas caminham sempre
curvados, mesmo que não carreguem nada, porque levam
sobre os ombros o bem do outro.
Perguntei como é que era isso, e o Velho Antonio me
contou que os primeiros deuses, os que deram origem ao
mundo, fizeram os homens e as mulheres de milho de
maneira tal que eles caminhassem sempre coletivamente.
E me contou que caminhar coletivamente quer dizer
pensar também no outro, no companheiro. "Por isso, os
indígenas caminham curvados", disse o Velho Antonio,
"porque carregam sobre os ombros o seu coração e o
coração de todos".
Então eu pensei que para esse peso não bastavam dois
ombros.
O tempo passou e, com ele, aconteceu o que aconteceu.
Preparamo-nos para combater e nossa primeira derrota
foi diante destes indígenas. Eles e nós caminhávamos
curvados, mas nós pelo peso da soberba, e eles porque
carregavam também a nós (mesmo que não nos déssemos
conta). Então, nós nos fizemos eles, e eles se fizeram
nós. Juntos, começamos a caminhar, curvados, mas
sabendo que não bastavam dois ombros para este peso.
Assim, nos levantamos em armas no dia primeiro de
janeiro de 1994... para procurar outro ombro que nos
ajudasse a caminhar, ou seja, a ser.
O terceiro ombro.
Como na origem da Nação Mexicana, a história
contemporânea das comunidades indígenas zapatistas terá
também sua lenda da fundação: aqueles que moram nestas
terras têm agora três ombros.
Aos dois ombros que os seres humanos comuns costumam
ter, os zapatistas acrescentaram um terceiro: o das
"sociedades civis" nacionais e internacionais.
Nas próximas duas partes deste vídeo "raro" falarei dos
avanços conseguidos nas comunidades zapatistas. Então,
se verá que são grandes, de um tamanho que sequer
havíamos imaginado.
Mas agora quero dizer-lhes que isso tem sido possível
porque alguém nos deu o ombro.
Achamos que tivemos sorte. Desde o início, o nosso
movimento contou com o apoio e a simpatia de centenas
de milhares de pessoas nos cinco continentes. Esta
simpatia e este apoio não se resignaram diante das
limitações pessoais, das distâncias, das diferenças
culturais e de idioma, das fronteiras e dos
passaportes, das diferenças na concepção política, dos
obstáculos colocados pelos governos federal e
estaduais, dos postos de controles, das hostilidades e
dos ataques militares, das ameaças e agressões de
grupos paramilitares, da nossa desconfiança, da nossa
falta de cortesia, da nossa incompreensão para com o
outro, da nossa grosseria.
Não, acima disso tudo (e de muitas outras coisas que
cada um conhece), as "sociedades civis" do México e do
mundo têm trabalhado por, para e conosco.
E têm feito isso não por caridade, não por pena, não
por uma moda política, não por afã publicitário, mas
sim porque, de uma forma ou de outra, têm feito sua uma
causa que continua ficando grande só para nós: a
construção de um mundo onde caibam muitos mundos, ou
seja, de um mundo que carregue o coração de todos.
Dos lugares mais insuspeitos do México e do mundo, das
ilhotas que agüentam apesar do furacão neoliberal, para
visitar os caracóis e falar com as Juntas de Bom
Governo (para projetos, doações, esclarecimentos ou
simplesmente para conhecer o processo de construção da
autonomia), em um ano chegaram pessoas de, pelo menos,
43 países, incluindo o nosso, que é o México.
Homens e mulheres, como indivíduos e como organizações,
da Espanha, Alemanha, País Basco, Eslovênia, Itália,
Suíça, Escócia, Estados Unidos, Dinamarca, Bélgica,
Finlândia, Austrália, Argentina, França, Canadá,
Polônia, Suécia, Holanda, Noruega, Brasil, Guatemala,
Turquia, Chile, Colômbia, El Salvador, Peru, Grécia,
Portugal, Japão, Norte da África (está assim no
informe, não sei qual é o país), Nicarágua, Inglaterra,
Uruguai, Bolívia, Áustria, Nova Zelândia, Israel, Irã,
República Tcheca e de todos os Estados da República
Mexicana, colocaram seu ombro junto aos dois das
comunidades para começar a alterar radicalmente as
condições de vida dos indígenas zapatistas.
Assim, em um ano, os caracóis e as Juntas de Bom
Governo (JBG) têm chegado (às vezes com projetos
produtivos, às vezes com donativos, às vezes com o
ouvido atento e respeitoso, às vezes com a palavra
irmã, às vezes com a curiosidade, às vezes com o afã
científico e às vezes com o desejo de resolver
problemas através do diálogo respeitoso e do acordo
entre iguais), milhares de pessoas, como indivíduos,
como organizações sociais, como organizações não-
governamentais, como organizações de ajuda humanitária,
como organizações defensoras dos direitos humanos, como
cooperativas, como autoridades de municípios de outros
Estados do México e de outras partes do mundo, como
corpo diplomático de outras nações, como pesquisadores,
como artistas, como músicos, como intelectuais, como
religiosos, como pequenos proprietários, como
empregados, como operários, como donas ou "donos" de
casa, como trabalhadores e trabalhadoras do sexo, como
locatários de mercado, como vendedores ambulantes, como
jogadores de futebol, como estudantes, como
professores, como médicos, como enfermeiras, como
empresários, como empreiteiros, como autoridades
estaduais e como muitas coisas mais.
Só em Oventic, o caracol relata ter atendido, em um
ano, 2 mil 921 pessoas de outros países e mil 537 do
México, sem contar os companheiros e companheiras bases
de apoio zapatistas que procuram a Junta para tratar de
vários problemas.
O terceiro ombro da luta zapatista tem muitas cores,
fala muitas línguas, vê com muitos olhares e caminha
com muitos. Falamos e queremos bem a eles e elas, além
de agradecer, vamos entregar-lhes...
A prestação de contas.
Bom, é a hora da prestação de contas. Peço-lhes
paciência, porque me coube rever as contas de todas as
Juntas para elaborar esta espécie de informe, e cada
uma tem seu "jeito" de decidir o que coloca nas somas e
o que põe nas subtrações. Enfim, não tem sido fácil,
mas, seja como for, os detalhes disso tudo poderão ser
consultados em cada caracol a partir do dia 16 de
setembro deste ano.
Em conjunto, as cinco Juntas de Bom Governo que
funcionam em território zapatista registraram entradas
de quase 12 milhões e meio de Pesos [aproximadamente,
R$ 3.300.000,00], saídas de cerca de 10 milhões
[aproximadamente, R$ 2.530.000,00] e um saldo que anda
por volta dos 2 milhões e meio de Pesos [R$
770.000,00].[3]
Há diferenças significativas nas contas administradas
pelas JBG em cada caso. É assim porque algumas das
Juntas registram todo o dinheiro de que tiveram
conhecimento, ou seja, incluem na conta o que receberam
diretamente e o que foi recebido pelos Municípios
Autônomos Rebeldes Zapatistas (Marez) com a aprovação
da Junta de Bom Governo. Outras Juntas só relatam o que
foi administrado diretamente, sem incluir o que foi
recebido pelos Marez.
Há também diferenças significativas no que entrou nas
JBG; em alguns casos, se deve ao fato de que há Juntas
(como a de Los Altos e a da Selva região de Fronteira)
que cobrem um território muito grande; em outros,
porque suas sedes são mais conhecidas pelas "sociedades
civis" (Oventic e La Realidad), e, em alguns outros,
porque a diferença de desenvolvimento organizativo
entre as regiões é ainda muito grande.
Mesmo que aproximadamente (e arredondando, porque os
companheiros registram cada centavo), são estes os
dados relatados por cada junta no exercício de um ano:
JBG -/- Entradas anuais -/- Saídas anuais
R. Barrios -/- Um milhão e 600 mil Pesos [R$
416.000,00] -/- Um milhão de Pesos [R$ 260.000,00]
Morelia -/- Um milhão e 50 mil Pesos [R$ 273.000,00] -
/- 900 mil Pesos [R$ 234.000,00]
La Garrucha -/- 600 mil Pesos [R$ 156.000,00] -/- 300
mil Pesos [R$ 78.000,00]
Oventic -/- 4 milhões e meio de Pesos [R$ 1.170.000,00]
-/- 3 milhões e meio de Pesos [R$ 910.000,00]
La Realidad -/- 5 milhões de Pesos [R$ 1.300.000,00] -
/- 4 milhões de Pesos [R$ 1.040.000,00]
O que foi feito com esse dinheiro? Bom, já vai chegar
sua vez de prestar conta. Por enquanto só adianto que
não foi nada em proveito individual de ninguém.
As autoridades autônomas que se revezaram na direção
das Juntas de Bom Governo garantem suas necessidades
pessoais, nos dias em que despacham nos caracóis,
através de ajudas dos povoados ou com o apoio do EZLN.
Por dia, o gasto médio (sem contar o da passagem de sua
comunidade ao caracol e o retorno) de um membro da
Junta de La Garrucha, por exemplo, é de menos de oito
Pesos [R$ 2,08] (em outros lugares sobe um pouco mais).
No caso de Oventic é de zero Pesos, porque as
autoridades levam suas tostadas seu feijão e seu café,
quando o tem (senão vão de chá de capim).
Compare isso com, por exemplo, o que ganha no México um
diretor do IMSS (que cobra para desmantelar as
conquistas dos trabalhadores deste instituto), ou, por
exemplo, com o que custam as toalhas na residência
presidencial do nosso país, ou, por exemplo, com o que
se paga por alguns colchões na casa de um funcionário
do governo Fox no exterior, ou com o que ganha um
deputado ou um senador.[4]
É claro que nossas autoridades não usam guarda-costas,
não pagam assessores, nem compram carros do ano para
si, nem comem em restaurantes de luxo, nem nomeiam seus
familiares.
Ou seja, governar não tem porque ser oneroso.
O ombro da aniversariante.
A menção do "terceiro ombro" não seria completa se não
mencionasse aqueles que, mesmo com o silêncio sugerindo
perda de rumo, desordem, disputas internas,
desaparecimento ou o barulho que agora está na moda,
têm continuado atentos e dispostos a tratar de entender
as razões pelas quais aqui se luta (e os métodos e os
tempos com os quais se luta).
Ouvir o que o outro fala e, sobretudo, o que cala, só é
possível entre aqueles que partilham o caminho e, às
vezes, a carga.
E me refiro àqueles que, tendo com certeza coisas mais
importantes a fazer, reservam o tempo e a atenção
necessários para ouvir e ver aqueles que não se costuma
ouvir e nem ver (ou só quando há eventos
"importantes").
Como eu, aqueles dos quais estou falando, completarão
20 anos neste mês de setembro. Mencionei-os só de
passagem na primeira parte porque, para nós, não são só
um meio de comunicação. Já sabem então que falo e penso
naqueles que dirigem e trabalham no jornal mexicano La
Jornada.
Como muitos homens e mulheres que apóiam a luta dos
povos indígenas (e por isso a dos zapatistas), os
"jornadeiros" não olham ou escutam os povos zapatistas
por moda ou por cálculo da mídia. Seu passo vai além da
ação jornalística, tem a ver com o que alguns chamam de
"ética do compromisso" e se inscreve no afã de uma
mudança real e justa, e não no afã dos ganhos
econômicos e/ou políticos. Não quero ser injusto
dizendo só que os "jornadeiros" têm sido generosos, no
lugar disso direi que têm sido coerentes e são poucas,
muito poucas, as pessoas que podem dizer e manter isso
por 20 anos.
Sei que estou me adiantando, mas é quase certo de que
nesse dia, no dia da aniversariante, La Jornada apareça
cheia de mensagens felicitando-a por seu vigésimo
aniversário e dificilmente haverá lugar para a
felicitação que nós, os menores de seus irmãos, lhe
enviamos.
Por isso, nos adiantamos, e neste seu "não aniversário"
enviamos um abraço a todos e a todas, só um, mas um
desses que só se dão entre irmãos e que dizem coisas
que não se podem dizer. Vai também o meu abraço
pessoal, na espera de podê-lo dar pessoalmente (tomara
que não seja post mortem), a tod@s e cada um@ d@s
jornadei@s.
E como "pra quem madruga mais vale um pássaro na mão"
(não é assim?, perdão, é que a incoerência do gabinete
contagia), pedimos o mesmo na hora de repartir o bolo
que, como sabemos, por maior que seja, nunca será do
tamanho do coração que carregam.
Resumindo, sejam muito felizes pelo aniversário (não
levantem muito o cotovelo, porque logo vão acontecer
coisas que precisarão de ouvidos e olhares honestos).
E a todos e a todas, "sociedades civis", parabéns pelos
aniversários dos caracóis e das Juntas de Bom Governo.
E obrigado pelo terceiro ombro.
Valeu. Saúde e se o pote dos doces a ser estourado
tiver a cara do Bush, peço a minha vez.
(a continuar...)
Das montanhas do Sudeste Mexicano.
Subcomandante Insurgente Marcos.
México, agosto de 2004, 20 e 10. P. S. A minha festa de aniversário será de leve a moderada, terá pozól azedo e não porque eu goste, mas sim porque os companheiros gostam de dar uma de engraçadinhos.[5] ------ [1] Pinole: farinha de milho tostado e adoçada com açúcar. [2] Mecapal: tira de couro ou de pano grosso que se apóia na testa e ajuda a transportar a carga nas costas. [3] A conversão para a nossa moeda foi feita tendo como base a cotação do Peso Novo Mexicano de 24/08/2004. [4] IMSS: Instituto Mexicano de Seguridade Social. [5] Pozól: bebida feita de milho e açúcar.
Subcomandante Insurgente Marcos.
México, agosto de 2004, 20 e 10. P. S. A minha festa de aniversário será de leve a moderada, terá pozól azedo e não porque eu goste, mas sim porque os companheiros gostam de dar uma de engraçadinhos.[5] ------ [1] Pinole: farinha de milho tostado e adoçada com açúcar. [2] Mecapal: tira de couro ou de pano grosso que se apóia na testa e ajuda a transportar a carga nas costas. [3] A conversão para a nossa moeda foi feita tendo como base a cotação do Peso Novo Mexicano de 24/08/2004. [4] IMSS: Instituto Mexicano de Seguridade Social. [5] Pozól: bebida feita de milho e açúcar.
https://www.alainet.org/es/node/110501
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