Ler um vídeo (Primeira parte): uma ilhota
24/08/2004
- Opinión
Com a proteção da chuva, o Sombraluz caminha em
espiral, esboçando um caracol com seus passos. Entra?
Sai? Vai saber. Parece que fala ou escreve a quem não
está. Vejamos...
A festa acabou. Os músicos foram embora, mesmo que
ainda haja um pouco de confusão. Amanhã o dia será como
costuma ser neste mês: sol de vez em quando, como se,
de tempos em tempos, se aproximasse só para ver o que
fazemos, com as nuvens e a chuva nos escondendo de
repente, como que fazendo "bolinha" sobre o mundo. Mas
ainda falta para que o sol suba com seu pijama de
nuvens e também falta para que estas expressem suas
saudades e suspiros sobre as sombras e luzes de baixo.
A festa se apaga aos pouquinhos, como quem se desculpa,
como se o ruído (o blá, blá da música na lama) desse o
"quem está aí" e o silêncio, calando, dissesse, "sou
eu". Aos pouquinhos também se acendem os grilos. Assim
como quem ainda espera, deixa sua cintura no meu braço
mais um momento. Olha para a desordem de estrelas
dispersas, o céu lavando-se o rosto moreno de sombra e
a lua piscando sua luz entre as nuvens. Você escuta? Já
há só a serragem da noite, alguma gota de chuva
chegando com evidente atraso aos telhados de zinco, um
cachorro imitando a eco do seu latido com a
cumplicidade de outros. Vem, caminhemos de novo,
façamos do olhar um testemunho. Acende a mente, vê o
que se vê e o que não se vê. Atenção! Já aparecem as
primeiras letras.
Supõe-se que deveria ser uma tela, com imagem, som e um
controle remoto. Supõe-se, mas não...No lugar da tela e
do controle remoto aparece uma cartolina onde se lê:
O SISTEMA ZAPATISTA DE TELEVISÃO INTERGALÁTICA
APRESENTA...
UM VÍDEO MUUUUIIITO ESPECIAAAAAL!
O Sombraluz troca a cartolina por outra na qual se lê,
agora em letras escritas a mão:
A AUSÊNCIA DE SOM E IMAGEM NESTE VÍDEO NÃO É POR FALTA
DE TECNOLOGIA, MAS SIM PELA QUE SE CHAMA DE "TECNOLOGIA
DA RESISTÊNCIA".
Mmmh, quer dizer que é um vídeo sem imagens e som... A
partir deste momento, o "vídeo alternativo" será
apresentado em sucessivas cartolinas, com letras de
diferentes tipos, tamanhos e cores. Acomode-se onde e
como puder, e leia...
Naquele tempo, havia... um país chamado México
Provavelmente, as futuras gerações de mexicanos não
saberão disso (graças a uma criminosa reforma do
sistema educativo do segundo grau), mas a lenda
cultural da fundação que dá origem à Nação Mexicana não
tem nada a ver com a mestiçagem. Tampouco se relaciona
com a brutal conquista espanhola, nem com as guerras
invasoras, abertas ou disfarçadas, dos vários nomes da
estupidez imperial ao longo da história: Estados Unidos
da América do Norte, França, Inglaterra, Alemanha.
Muito menos está associada ao estúpido decreto (cada
mudança de governo) do fim da história num nome:
Agustín de Iturbide, Antonio López de Santa Anna,
Maximiliano de Habsburgo, Carlos Salinas de Gortari (ou
o nome que venha a receber o "tenho nome, mas me
conhecem como a plenitude dos tempos").
Não, o referencial histórico, cultural e simbólico
desta nação tem a ver com o indígena: sobre uma ilhota,
uma águia devora uma serpente e um cacto lhe serve de
pedestal. Esta imagem será escudo, bandeira, sinônimo,
espelho coletivo e âncora cultural dos mexicanos desde
o século XIX até este amanhecer do século XXI.
Segundo a lenda, os mexicas fundam Tenochtitlán no
lugar onde encontram este sinal. O deus Huitzilpochtli
(chamado também de "céu azul" e representado por um
sol) teria derrotado Copil. O coração do vencido é
enterrado e se transforma em cacto. Os mexicas,
procedentes de Aztlán ("O Lugar das Garças), serão
conhecidos então como "astecas" e, com o passar do
tempo, este nome será sinônimo de "mexicanos".
Assim que hoje, quando o vigésimo primeiro século
ensaia os primeiros passos, em meio ao caos, os
símbolos nos lembram que o México é fundado sobre uma
ilhota. E, sobre uma ilhota, como foi ao longo de toda
a sua história como nação, a mexicana enfrenta uma nova
tentativa de destruição, agora com a desculpa da
"modernidade". E, como em toda a guerra, o poderoso
ataca primeiro os dois objetivos principais: a
verdade... e o calendário.
Uma retomada rápida das principais imagens da "vida
nacional" apresentadas pelos meios de comunicação
(particularmente pela televisão) provoca uma sensação
de caos, anacronismo e injustiça. O calendário em vigor
marca a metade do ano de 2004, mas a programação às
vezes parece estar na metade do século XIX, e, às
vezes, na metade do ano de 2006.
A diferença entre esquerda e direita está no fato de
que uns saem em vídeo e outros não.
Alguns saldos da questão Ahumada: não só se fortalecem
as qualidades histriônicas de dirigentes do Partido da
Revolução Democrática (PRD), seu provincianismo fazendo
fila para subir no avião privado do corruptor de
maiores, sua decadência artesanal (priistas e panistas
se burlavam das ligas, das bolsas - as de plástico e as
do paletó - e as carteiras, como se não existissem,
dizem, as finanças cibernéticas e as contas bancárias
nas Ilhas Caimãs) e o método infalível de ocultar um
escândalo com outro maior (o complô - à luz do sol,
claro - como lavatórios da mídia).
Também devemos a Ahumada o fato de exibir um governo, o
federal, preferindo o escândalo na mídia no lugar da
via jurídica; estabelecer a verdadeira estatura
política (de anãos) da "dupla dinâmica" (Creel e
Derbez), e mostrar a fragilidade do Estado mexicano ao
levar o seu governo a uma crise internacional com o
governo de Cuba.
E o mais importante: o caso Ahumada foi só um tira-
gosto da longa amostra com a qual a classe política
destrói o calendário: 2006 será o ano mais longo da
história, pois começou em janeiro de 2004. Não foi o
afã de justiça ou a busca da verdade a motivar a saída
à luz pública das tramóias de Carlos Ahumada, "produtor
de vídeos de vocação" (disse Monsiváis). A razão foi a
de atingir a imagem pública de López Obrador.
No que diz respeito à corrupção, as cenas exibidas e
ocultadas pelo Partido Revolucionário Institucional
(PRI) não ficariam atrás no rating. No chamado
Pemexgate abundam as provas jurídicas, mas falta o
vídeo. Na guerra suja de Díaz Ordaz-Echeverría-López
Portillo-De la Madrid-Salinas de Gortari-Zedillo há
evidências incriminatórias, mas a justiça determinou
que passasse antes do horário nobre. Nas fraudes
eleitorais há certezas, mas não há réu no banco dos
acusados. Na corrupção transformada em governo há
seguranças legais, mas não podem ser usadas como slogan
eleitoral.
E o Partido da Ação Nacional (PAN) disputa o seu lugar
na programação. O de Vamos México, a Loteria Nacional e
o desvio de fundos públicos para a Provida, foram, nos
esclarecem apressados, um problema de relações públicas
e de "imprensa má".
Muito a contragosto, os três principais partidos
políticos do México disputam entre si o papel de
protagonista no escândalo com a mesma força com a qual
antes disputavam os votos. Parece que ninguém faz o
favor de informá-los, mas a crise do estado mexicano é
também, e, sobretudo, a crise da classe política. Se a
disputa eleitoral de 2006 foi adiantada para 2004 não é
pelas urgências nacionais, é porque o verbo "madrugar"
não se conjuga só nas intermináveis coletivas de
imprensa.
A diferença entre o passado e o futuro está no fato de
que o primeiro já foi ao confessionário.
Se, às vezes, a luta pelo poder nos coloca anos
adiante, a direita realmente existente cumpre sua
tarefa e nos situa décadas e séculos atrás.
Campeã da dupla moral, a direita pretende impor à
sociedade mexicana um sistema de valores baseado no
sectarismo no lugar da inclusão, na filosofia das
telenovelas no lugar do conhecimento científico, na
intolerância no lugar do respeito ao diferente, no
racismo no lugar dos valores humanos, na esmola no
lugar da justiça, no closet no lugar da liberdade
manifesta, na hipocrisia no lugar da honestidade. Em
suma: na Idade Média, mas com Internet e televisão de
alta definição.
Se alguém acha que a direita só tem o âmbito cultural
como espaço de ação política, e que aí ela não fez
outra coisa a não ser colher derrotas (qualquer evento
ou ato que seja vetado pela direita confessional tem
sucesso garantido), ou que só se encontram no PAN e nas
hierarquias retrógradas da Igreja católica, não deixa
de ser ingênuo... e irresponsável.
Dos Legionários de Cristo ao Yunque, passando por Opus
Dei e Provida, a direita não se contenta em conquistar
"corações e mentes". Conquista espaços de poder,
recruta e treina grupos paramilitares, e dirige (às
vezes com cinismo e às vezes às escondidas) setores
políticos, empresariais, de mídia e sociais.
Em suma, a direita cresce, se reproduz e não morre.
E isso não é tudo. A direita faz reviver, com a
cumplicidade desse ilustre oportunista que é o reitor
da Universidade Nacional Autônoma do México, UNAM, (e
pré-candidato à presidência da República), Juan Ramón
de la Fuente, os grupos de bate-paus da universidade.
No recente assassinato do jovem estudante da UNAM, Noel
Pavel González, a mão ensangüentada do grupo direitista
Yunque só consegue se esconder pela cumplicidade da
Procuradoria Geral de Justiça do Distrito Federal (de
filiação perredista e supostamente de esquerda) que,
além de sair diariamente no rádio, na televisão e nos
jornais, distribui "suicídios" como se fossem boletins
de imprensa.
Junto a Pavel e sua família, esperam também Digna Ochoa
e seus próximos. Enfrentam amargamente o que muitos
calam: a alquimia que apresenta mentiras como verdades
jurídicas.
Vendo as ações dos governantes, pode-se ver que se
antes a luta entre os partidos era pelo "centro", agora
disputam a direita sem reserva nenhuma.
Claro que, além da tendência à corrupção e ao
autoritarismo, os políticos partilham outra coisa: o
culto à mídia.
A diferença entre a democracia e o rating está
na...na...na... há diferença?
As mudanças políticas no México do final do século XX e
início do século XXI podem ser apreciadas na relação
entre o governo e os meios de comunicação. Na época
"dourada" do priismo (a "pré-modernidade", dizem
alguns) o então partido único, além do mais, governava.
A "modernidade" trouxe algumas mudanças à mídia, e foi
preciso governar COM os meios de comunicação. Em pouco
tempo, a importância da comunicação cresceu e o poder
político passou a ser governado PELA mídia. E agora,
com a "pós-modernidade", SÃO os meios de comunicação
que governam e os políticos são só o elenco que não só
se sujeita às regras do espetáculo, mas também aos
temas que são definidos pela televisão, pelo rádio e
pela imprensa escrita (nesta ordem e neste horário).
Uma obviedade: a agenda nacional (que é o que importa e
urge na Nação, como se deve expor, como se deve
resolver, com que método, com que hierarquia e em que
tempo, enfim, a agenda dos principais problemas
nacionais) já não é decidida nos círculos exclusivos da
classe política (que é aonde se fazia), nem muito menos
lá em baixo, na população (que é aonde não tem sido
feito e se deveria fazer), mas sim nas direções das
grandes empresas de comunicação.
Se antes a imprensa televisiva, radiofônica e escrita
estava majoritariamente sujeita aos grilhões de um
sistema político autoritário, agora, pelas lutas
sociais e pelo próprio mérito do grêmio jornalístico,
existe uma relativa liberdade (atacada de tal forma que
a do jornalista deveria ser qualificada como uma
profissão "de alto risco") para abordar temas que antes
nem dava pra pensar, e para fazer isso com
criatividade, engenhosidade, espírito crítico e
profundidade (mesmo que não freqüente). Porque temos
que saudar o jornalismo comprometido (que existe) que
não titubeia em enfrentar o poder ao dar uma notícia,
fazer uma reportagem ou elaborar uma crônica.
Contudo, este jornalismo comprometido, ao elevar sua
importância e sua autoridade moral, atrai o olhar do
poder. Os políticos procuraram cativá-lo com galanteios
mais ou menos sofisticados. Mas, à diferença dos
políticos, os jornalistas não são bobos e perceberam
logo que os políticos não faziam nem idéia do que
estava acontecendo na realidade. Houve assim aqueles
que se mantiveram e se mantêm diante do poder, e outros
que se puseram e se põe no poder. São estes últimos que
se autodefinem "porta-vozes da sociedade".
A "opinião pública" é o disfarce com o qual os meios de
comunicação apresentam seus critérios particulares e de
grupo como se fossem de toda a população.
Paulatinamente, os noticiários e as "mesas dos
comentaristas" foram substituindo a democracia (governo
do povo, para o povo e pelo povo), incluindo a
eleitoral. Em breve, os cargos que dependem de eleição
popular serão decididos por chamadas de auditório e não
pelos votos (no lugar do bolo, do refrigerante e do
gorro ou da camiseta da carreata pré-moderna, se
imprimirá 40 vezes a sua ficha para participar de uma
visita guiada ao circo de San Lázaro).
Não se trata de um ato perverso, um bom número de
jornalistas, colunistas políticos e comentaristas são
de gente honesta, com visão crítica e realmente
preocupada com os problemas sociais. Por alguma coisa
ganham o respeito dos expectadores, ouvintes e
leitores. Ma há aqueles que nem são jornalistas, e sua
visão é a de um grupo pequeno, em situação privilegiada
e que vê o problema de fora... e de cima.
Numa situação na qual o governo não governa, a
crescente importância do jornalista o põe a caminhar na
estreita linha que separa a ética do cinismo. Diante do
espelho, cada um sabe quem é.
O papel transcendente do jornalismo tem sido
"seqüestrado" pelos monopólios da mídia. O rating dos
meios de comunicação, conseguido por seus jornalistas e
não pelos anunciantes, é colocado a serviço do
marketing político, sobretudo nos períodos eleitorais
(e agora todo o calendário é eleitoral, até mesmo
quando não há eleições). Desta forma, a imagem
publicitária substitui os princípios e os programas
políticos, se transforma no aspecto mais relevante e,
não poucas vezes, "puxa" todo o partido político, que
se "veste" com a roupa do "mais popular" (o PAN fez
isso com Fox, o PRD faz o mesmo com López Obrador, e o
PRI...o PRI...bom, vai logo encontrar alguém).
Resumindo: a diferença entre a "pré-modernidade" e a
"pós-modernidade" está no fato de que na primeira os
políticos tinham quem lhes escrevesse os discursos, e
na segunda têm quem lhes faz as inserções
publicitárias.
Contudo, o abraço da mídia e da classe política pode
ser mortal... para os meios de comunicação. Embriagados
pela interlocução privilegiada que têm com o poder
político, os jornalistas o tomam como único
destinatário e esquecem sua ação social. Não vai
demorar o tempo em que os noticiários serão só vistos,
ouvidos ou lidos por outros jornalistas (lamento
informar-lhes que os políticos não vêem, não lêem e nem
escutam as notícias, eles têm um encarregado ou
encarregada de lhes fazer um resumo). Como os políticos
prescindem dos governados, os meios de comunicação
prescindirão do auditório. Tanto uns quanto outros se
felicitarão e, vendo-se no espelho do outro, se dirão
"Como somos importantes!".
A diferença entre um meio de comunicação progressista e
um fascista está em como falam de eu, mim, me,
comigo...
A Marcha contra a Delinqüência, chamada por muitos de
"histórica" (mesmo mantendo esta honra só por alguns
dias, porque a renúncia de Durazo a mandou, como
dizemos nós jornalistas, "para as páginas internas"),
provocou uma espécie de debate (na realidade, foi uma
intensa troca de adjetivos) sobre o papel dos meios de
comunicação.
Depois de ameaçar com a insurreição popular o que
considera abertamente injusto, arbitrário e ilegal
processo de afastamento contra López Obrador, o PRD e
os setores afins se sentiram indignados pela convocação
da chamada "Marcha do Silêncio". E mais ainda, quando a
mobilização foi um sucesso no que se refere à
participação... da classe acomodada. Tanto tempo
cortejando este setor (Giuliani, os "segundos andares",
o Centro Histórico da Cidade do México, o auge
urbanístico em Santa Fé, a "Houston" do ocidente do DF)
e acontece que o ingrato se mobiliza para protestar
pela insegurança.
A marcha acontece e a direita, sempre pronta a
capitalizar o que a esquerda abandona, monta nela (sem
frutos, como se viu depois). Os meios de comunicação se
unem. De fato, a imensa maioria dos participantes se
faz presente convocada pela televisão, pelo rádio, pela
imprensa escrita. Há meios de comunicação que fazem
isso porque entendem que é um tour de force contra
López Obrador e querem "domá-lo", e há outros que fazem
isso simplesmente por coerência, e tomam como
destinatários os governos federal, estaduais e
municipais.
Boa parte dos participantes pertencia aos setores
privilegiados da sociedade mexicana (as ruas próximas à
Reforma e no Centro Histórico cheias de carros com
motoristas e guarda-costas aborrecendo-se na espera,
dezenas de ônibus de escolas particulares estacionados,
restaurantes de luxo repletos antes, durante e depois
da marcha; como alguém me disse: "era um centro
comercial, mas tamanho gigante"). Claro que também ouve
esta tradição muito mexicana que se chama carreata e
"passar a lista" (as grandes lojas de departamentos dos
centros comerciais "exortaram" seus empregados a
participarem). Mas, quanto às reivindicações, ficou
muito longe de ser uma marcha de direita. Não se
mobilizaram contra as expropriações de empresas
privadas, ou contra os impostos sobre os artigos de
luxo, ou contra leis que obriguem as empresas a pagarem
salários justos, ou contra o fato de apoiar com o
petróleo o governo de Cuba, ou para derrubar um governo
"vermelhinho". Manifestaram-se porque sofrem pela
criminalidade. Não era exatamente o populacho, mas,
então?, que os assaltem, seqüestrem e que os matem por
serem bonitos(as)?
Durante anos o PRD temeu as ruas. Toda manifestação que
não fosse de apoio ao seu partido ou a seus dirigentes
era vista com receio. A satanização do movimento
estudantil da UNAM em 1999 (porque não o dirigia), e
anos e anos desmantelando organizações sociais, e
acontece que a rua é tomada por esses que se tratou de
adular: os que têm e podem.
Por sua vez, os meios de comunicação foram os primeiros
a se surpreender pelo sucesso da marcha. Televisa só se
atinou a fazer uma mesa redonda com o tema "E o que vem
depois da marcha?", e a pedir aos três porquinhos
(Fernández de Cevallos, Jackson e Ortega) que se
comprometessem a fazer acordos para resolver o problema
da falta de segurança. A estas alturas do partido
esperar algo dessa gente! É como acreditar nos óvnis...
Não são poucas as vezes em que a mídia tem entrado em
confrontação com o governo da Cidade do México. A
divulgação dos vídeos do caso Ahumada e as reportagens
sobre o tema da insegurança são alguns exemplos. A
"Marcha do Silêncio" serviu para exacerbar os ânimos.
Daí a chamar alguns meios de comunicação, sobretudo a
Televisa, como "a negra mão do fascismo", era só um
passo...e este foi dado de imediato.
Contudo, uma leitura atenta de alguns meios de
comunicação serve para traçar as dimensões: Crônica, o
jornal "preferido" de López Obrador, vem insistindo há
pelo menos dois mandatos no que agora é o PRI a
reivindicar: que não se brigue nos meios de
comunicação, mas sim nos tribunais. Reforma, outro
jornal muito "apreciado" pela AMLO, tem documentado a
corrupção de todo o espectro político, não só do PRD.
El Universal mantém um quadro digno de repórteres e
comentaristas. La Jornada não abandona seu compromisso
popular (que já completa quase 20 anos) e é o meio de
comunicação mais consultado pela audiência cibernética.
Nos dias após a marcha, Televisa, em seus noticiários,
seguiu e abundou nas denúncias de López Obrador contra
as vendas do Banamex e do Bancomer. Semanas depois,
repórteres da Televisa investigaram o desvio de
recursos, originalmente destinados ao combate da AIDS,
para a organização direitista Provida, e documentaram a
prática de abortos clandestinos em clínicas desta
organização que, supostamente, é contra o aborto. E há
mais casos do que espaço.
No outro extremo, Televisa fez uma reportagem grosseira
e ridícula do casamento da jornalista Letizia com um
membro da realeza espanhola (perdão, não lembro do
nome, talvez na latrina...), usando meios que não
dedicou aos atentados do 11 de março. Ou se fez eco ao
conto para boi dormir dos óvnis supostamente avistados
pela Força Aérea Mexicana. Além disso, num de seus
especiais dedicados aos flanelinhas, encabeçou a moda
perigosa de incriminar a pobreza. Aí os flanelinhas,
limpadores de pára-brisas e vendedores dos cruzamentos
foram apresentados como se a maioria ou todos fossem
seqüestradores e assaltantes. Claro que, acusando ter
recebido o recado, o senhor Ebrard (que, se não me
engano, é chefe de polícia da "Cidade da Esperança")
dedica agora seus esforços a perseguir e penalizar a
pobreza. Passa-se então do combate à delinqüência a
combater os pobres...e mais uma vez a adular um setor.
Assim não parece nem uma coisa nem outra. Nem a
Televisa e os demais meios eletrônicos e impressos
representam o avanço do fascismo no México, como
denuncia o PRD. Nem tampouco a Televisa e os demais
meios eletrônicos e impressos são a "vanguarda da
democratização" social e da mídia, como se
autodenominam locutores, comentaristas e editores. Da
mesma forma, o governo de López Obrador se debate entre
o apoio aos que menos têm, com programas sociais e
iniciativas culturais elogiáveis, por um lado, e, por
outro, o autoritarismo e a perseguição à pobreza com
operações policiais cujas imagens remetem às do Iraque
ocupado pelas tropas inglesas e norte-americanas.
Não, uns e outros estão se acomodando, se definindo.
Não só em bater insistentemente no fato de que pobreza
é sinônimo de delinqüência, é aonde os meios de
comunicação e os políticos se encontram. Dia após dia,
se sucedem escândalos políticos e financeiros que não
têm nenhuma sanção penal, e tudo se reduz a uma
condenação moral. Já não se discute se algo foi
moralmente mal feito, mas sim se é legal ou não. O
sistema jurídico mexicano, junto com todo o Estado,
encontra-se mergulhado na lagoa da podridão na qual se
avalizam, com leis e juízes, crimes de lesa humanidade.
Desaparecimentos forçados e repressão (como as que
foram protagonizadas, entre outros, por Echeverría),
fraudes (como as da Loteria Nacional), desvios de
recursos (como os do PAN para Provida), roubos
disfarçados de acordos legislativos (como o perpetrado
contra os trabalhadores do Seguro Social) e o que vier
a se juntar na programação de hoje, é tudo permitido
pelo "império da lei", mas se cultiva, com
irresponsabilidade, o rancor social.
Enquanto ocorre tudo isso, por trás da agenda da mídia
avança outra agenda, a da destruição do Estado
mexicano...
Uma programação diferente?
Fora desta programação há indivíduos, coletivos,
grupos, povoados que entendem que por trás destas
suposta "agenda nacional" há outra, a real, a
verdadeira, que consiste, grosso modo, na destruição do
México enquanto Nação. Eles e elas sabem que o
desmantelamento frenético e implacável do Estado
nacional, levado adiante por uma classe política sem
utilidade e sem vergonha (e acompanhada em não poucos
casos por alguns meios de comunicação e por todo o
sistema jurídico), levará a um caos e a um pesadelo que
nem a programação estelar de terror e suspense poderia
igualar.
Como se naufragasse no mar neoliberal, a Nação Mexicana
afunda cada vez mais e a cada dia se parece menos com
si mesmo e mais com nada. O país cuja história das
origens remete a uma ilhota em meio a uma lagoa, se
afoga em águas que não são suas.
Mas há mexicanos e mexicanas que resistem. Não sem
dificuldades, com os tropeços e aflições do dever, vão
construindo pequenos espaços, ilhotas em cima das quais
se sonha, se luta, se trabalha. Ilhotas nas quais,
amanhã, o México será o México, talvez um pouco melhor,
talvez um pouco mais bom, mas o México.
Falaremos de uma dessas ilhotas de resistência, não a
melhor nem a única, e de autonomia nas comunidades
indígenas zapatistas. Falaremos dos caracóis e das
Juntas de Bom Governo, de nossas falhas, erros e do que
foi conseguido, sem outra imagem a não ser o olhar
capaz de acolher nossa palavra, e sem outro áudio a não
ser o que nos for outorgado pelo ouvido e o coração
daqueles que, sem estar aqui, estão conosco.
(a continuar...)
Das montanhas do Sudeste Mexicano.
Subcomandante Insurgente Marcos.
México, agosto de 2004, 20 e 10.
Subcomandante Insurgente Marcos.
México, agosto de 2004, 20 e 10.
https://www.alainet.org/es/node/110503
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