Ler um vídeo (Primeira parte): uma ilhota

24/08/2004
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Com a proteção da chuva, o Sombraluz caminha em espiral, esboçando um caracol com seus passos. Entra? Sai? Vai saber. Parece que fala ou escreve a quem não está. Vejamos... A festa acabou. Os músicos foram embora, mesmo que ainda haja um pouco de confusão. Amanhã o dia será como costuma ser neste mês: sol de vez em quando, como se, de tempos em tempos, se aproximasse só para ver o que fazemos, com as nuvens e a chuva nos escondendo de repente, como que fazendo "bolinha" sobre o mundo. Mas ainda falta para que o sol suba com seu pijama de nuvens e também falta para que estas expressem suas saudades e suspiros sobre as sombras e luzes de baixo. A festa se apaga aos pouquinhos, como quem se desculpa, como se o ruído (o blá, blá da música na lama) desse o "quem está aí" e o silêncio, calando, dissesse, "sou eu". Aos pouquinhos também se acendem os grilos. Assim como quem ainda espera, deixa sua cintura no meu braço mais um momento. Olha para a desordem de estrelas dispersas, o céu lavando-se o rosto moreno de sombra e a lua piscando sua luz entre as nuvens. Você escuta? Já há só a serragem da noite, alguma gota de chuva chegando com evidente atraso aos telhados de zinco, um cachorro imitando a eco do seu latido com a cumplicidade de outros. Vem, caminhemos de novo, façamos do olhar um testemunho. Acende a mente, vê o que se vê e o que não se vê. Atenção! Já aparecem as primeiras letras. Supõe-se que deveria ser uma tela, com imagem, som e um controle remoto. Supõe-se, mas não...No lugar da tela e do controle remoto aparece uma cartolina onde se lê: O SISTEMA ZAPATISTA DE TELEVISÃO INTERGALÁTICA APRESENTA... UM VÍDEO MUUUUIIITO ESPECIAAAAAL! O Sombraluz troca a cartolina por outra na qual se lê, agora em letras escritas a mão: A AUSÊNCIA DE SOM E IMAGEM NESTE VÍDEO NÃO É POR FALTA DE TECNOLOGIA, MAS SIM PELA QUE SE CHAMA DE "TECNOLOGIA DA RESISTÊNCIA". Mmmh, quer dizer que é um vídeo sem imagens e som... A partir deste momento, o "vídeo alternativo" será apresentado em sucessivas cartolinas, com letras de diferentes tipos, tamanhos e cores. Acomode-se onde e como puder, e leia... Naquele tempo, havia... um país chamado México Provavelmente, as futuras gerações de mexicanos não saberão disso (graças a uma criminosa reforma do sistema educativo do segundo grau), mas a lenda cultural da fundação que dá origem à Nação Mexicana não tem nada a ver com a mestiçagem. Tampouco se relaciona com a brutal conquista espanhola, nem com as guerras invasoras, abertas ou disfarçadas, dos vários nomes da estupidez imperial ao longo da história: Estados Unidos da América do Norte, França, Inglaterra, Alemanha. Muito menos está associada ao estúpido decreto (cada mudança de governo) do fim da história num nome: Agustín de Iturbide, Antonio López de Santa Anna, Maximiliano de Habsburgo, Carlos Salinas de Gortari (ou o nome que venha a receber o "tenho nome, mas me conhecem como a plenitude dos tempos"). Não, o referencial histórico, cultural e simbólico desta nação tem a ver com o indígena: sobre uma ilhota, uma águia devora uma serpente e um cacto lhe serve de pedestal. Esta imagem será escudo, bandeira, sinônimo, espelho coletivo e âncora cultural dos mexicanos desde o século XIX até este amanhecer do século XXI. Segundo a lenda, os mexicas fundam Tenochtitlán no lugar onde encontram este sinal. O deus Huitzilpochtli (chamado também de "céu azul" e representado por um sol) teria derrotado Copil. O coração do vencido é enterrado e se transforma em cacto. Os mexicas, procedentes de Aztlán ("O Lugar das Garças), serão conhecidos então como "astecas" e, com o passar do tempo, este nome será sinônimo de "mexicanos". Assim que hoje, quando o vigésimo primeiro século ensaia os primeiros passos, em meio ao caos, os símbolos nos lembram que o México é fundado sobre uma ilhota. E, sobre uma ilhota, como foi ao longo de toda a sua história como nação, a mexicana enfrenta uma nova tentativa de destruição, agora com a desculpa da "modernidade". E, como em toda a guerra, o poderoso ataca primeiro os dois objetivos principais: a verdade... e o calendário. Uma retomada rápida das principais imagens da "vida nacional" apresentadas pelos meios de comunicação (particularmente pela televisão) provoca uma sensação de caos, anacronismo e injustiça. O calendário em vigor marca a metade do ano de 2004, mas a programação às vezes parece estar na metade do século XIX, e, às vezes, na metade do ano de 2006. A diferença entre esquerda e direita está no fato de que uns saem em vídeo e outros não. Alguns saldos da questão Ahumada: não só se fortalecem as qualidades histriônicas de dirigentes do Partido da Revolução Democrática (PRD), seu provincianismo fazendo fila para subir no avião privado do corruptor de maiores, sua decadência artesanal (priistas e panistas se burlavam das ligas, das bolsas - as de plástico e as do paletó - e as carteiras, como se não existissem, dizem, as finanças cibernéticas e as contas bancárias nas Ilhas Caimãs) e o método infalível de ocultar um escândalo com outro maior (o complô - à luz do sol, claro - como lavatórios da mídia). Também devemos a Ahumada o fato de exibir um governo, o federal, preferindo o escândalo na mídia no lugar da via jurídica; estabelecer a verdadeira estatura política (de anãos) da "dupla dinâmica" (Creel e Derbez), e mostrar a fragilidade do Estado mexicano ao levar o seu governo a uma crise internacional com o governo de Cuba. E o mais importante: o caso Ahumada foi só um tira- gosto da longa amostra com a qual a classe política destrói o calendário: 2006 será o ano mais longo da história, pois começou em janeiro de 2004. Não foi o afã de justiça ou a busca da verdade a motivar a saída à luz pública das tramóias de Carlos Ahumada, "produtor de vídeos de vocação" (disse Monsiváis). A razão foi a de atingir a imagem pública de López Obrador. No que diz respeito à corrupção, as cenas exibidas e ocultadas pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI) não ficariam atrás no rating. No chamado Pemexgate abundam as provas jurídicas, mas falta o vídeo. Na guerra suja de Díaz Ordaz-Echeverría-López Portillo-De la Madrid-Salinas de Gortari-Zedillo há evidências incriminatórias, mas a justiça determinou que passasse antes do horário nobre. Nas fraudes eleitorais há certezas, mas não há réu no banco dos acusados. Na corrupção transformada em governo há seguranças legais, mas não podem ser usadas como slogan eleitoral. E o Partido da Ação Nacional (PAN) disputa o seu lugar na programação. O de Vamos México, a Loteria Nacional e o desvio de fundos públicos para a Provida, foram, nos esclarecem apressados, um problema de relações públicas e de "imprensa má". Muito a contragosto, os três principais partidos políticos do México disputam entre si o papel de protagonista no escândalo com a mesma força com a qual antes disputavam os votos. Parece que ninguém faz o favor de informá-los, mas a crise do estado mexicano é também, e, sobretudo, a crise da classe política. Se a disputa eleitoral de 2006 foi adiantada para 2004 não é pelas urgências nacionais, é porque o verbo "madrugar" não se conjuga só nas intermináveis coletivas de imprensa. A diferença entre o passado e o futuro está no fato de que o primeiro já foi ao confessionário. Se, às vezes, a luta pelo poder nos coloca anos adiante, a direita realmente existente cumpre sua tarefa e nos situa décadas e séculos atrás. Campeã da dupla moral, a direita pretende impor à sociedade mexicana um sistema de valores baseado no sectarismo no lugar da inclusão, na filosofia das telenovelas no lugar do conhecimento científico, na intolerância no lugar do respeito ao diferente, no racismo no lugar dos valores humanos, na esmola no lugar da justiça, no closet no lugar da liberdade manifesta, na hipocrisia no lugar da honestidade. Em suma: na Idade Média, mas com Internet e televisão de alta definição. Se alguém acha que a direita só tem o âmbito cultural como espaço de ação política, e que aí ela não fez outra coisa a não ser colher derrotas (qualquer evento ou ato que seja vetado pela direita confessional tem sucesso garantido), ou que só se encontram no PAN e nas hierarquias retrógradas da Igreja católica, não deixa de ser ingênuo... e irresponsável. Dos Legionários de Cristo ao Yunque, passando por Opus Dei e Provida, a direita não se contenta em conquistar "corações e mentes". Conquista espaços de poder, recruta e treina grupos paramilitares, e dirige (às vezes com cinismo e às vezes às escondidas) setores políticos, empresariais, de mídia e sociais. Em suma, a direita cresce, se reproduz e não morre. E isso não é tudo. A direita faz reviver, com a cumplicidade desse ilustre oportunista que é o reitor da Universidade Nacional Autônoma do México, UNAM, (e pré-candidato à presidência da República), Juan Ramón de la Fuente, os grupos de bate-paus da universidade. No recente assassinato do jovem estudante da UNAM, Noel Pavel González, a mão ensangüentada do grupo direitista Yunque só consegue se esconder pela cumplicidade da Procuradoria Geral de Justiça do Distrito Federal (de filiação perredista e supostamente de esquerda) que, além de sair diariamente no rádio, na televisão e nos jornais, distribui "suicídios" como se fossem boletins de imprensa. Junto a Pavel e sua família, esperam também Digna Ochoa e seus próximos. Enfrentam amargamente o que muitos calam: a alquimia que apresenta mentiras como verdades jurídicas. Vendo as ações dos governantes, pode-se ver que se antes a luta entre os partidos era pelo "centro", agora disputam a direita sem reserva nenhuma. Claro que, além da tendência à corrupção e ao autoritarismo, os políticos partilham outra coisa: o culto à mídia. A diferença entre a democracia e o rating está na...na...na... há diferença? As mudanças políticas no México do final do século XX e início do século XXI podem ser apreciadas na relação entre o governo e os meios de comunicação. Na época "dourada" do priismo (a "pré-modernidade", dizem alguns) o então partido único, além do mais, governava. A "modernidade" trouxe algumas mudanças à mídia, e foi preciso governar COM os meios de comunicação. Em pouco tempo, a importância da comunicação cresceu e o poder político passou a ser governado PELA mídia. E agora, com a "pós-modernidade", SÃO os meios de comunicação que governam e os políticos são só o elenco que não só se sujeita às regras do espetáculo, mas também aos temas que são definidos pela televisão, pelo rádio e pela imprensa escrita (nesta ordem e neste horário). Uma obviedade: a agenda nacional (que é o que importa e urge na Nação, como se deve expor, como se deve resolver, com que método, com que hierarquia e em que tempo, enfim, a agenda dos principais problemas nacionais) já não é decidida nos círculos exclusivos da classe política (que é aonde se fazia), nem muito menos lá em baixo, na população (que é aonde não tem sido feito e se deveria fazer), mas sim nas direções das grandes empresas de comunicação. Se antes a imprensa televisiva, radiofônica e escrita estava majoritariamente sujeita aos grilhões de um sistema político autoritário, agora, pelas lutas sociais e pelo próprio mérito do grêmio jornalístico, existe uma relativa liberdade (atacada de tal forma que a do jornalista deveria ser qualificada como uma profissão "de alto risco") para abordar temas que antes nem dava pra pensar, e para fazer isso com criatividade, engenhosidade, espírito crítico e profundidade (mesmo que não freqüente). Porque temos que saudar o jornalismo comprometido (que existe) que não titubeia em enfrentar o poder ao dar uma notícia, fazer uma reportagem ou elaborar uma crônica. Contudo, este jornalismo comprometido, ao elevar sua importância e sua autoridade moral, atrai o olhar do poder. Os políticos procuraram cativá-lo com galanteios mais ou menos sofisticados. Mas, à diferença dos políticos, os jornalistas não são bobos e perceberam logo que os políticos não faziam nem idéia do que estava acontecendo na realidade. Houve assim aqueles que se mantiveram e se mantêm diante do poder, e outros que se puseram e se põe no poder. São estes últimos que se autodefinem "porta-vozes da sociedade". A "opinião pública" é o disfarce com o qual os meios de comunicação apresentam seus critérios particulares e de grupo como se fossem de toda a população. Paulatinamente, os noticiários e as "mesas dos comentaristas" foram substituindo a democracia (governo do povo, para o povo e pelo povo), incluindo a eleitoral. Em breve, os cargos que dependem de eleição popular serão decididos por chamadas de auditório e não pelos votos (no lugar do bolo, do refrigerante e do gorro ou da camiseta da carreata pré-moderna, se imprimirá 40 vezes a sua ficha para participar de uma visita guiada ao circo de San Lázaro). Não se trata de um ato perverso, um bom número de jornalistas, colunistas políticos e comentaristas são de gente honesta, com visão crítica e realmente preocupada com os problemas sociais. Por alguma coisa ganham o respeito dos expectadores, ouvintes e leitores. Ma há aqueles que nem são jornalistas, e sua visão é a de um grupo pequeno, em situação privilegiada e que vê o problema de fora... e de cima. Numa situação na qual o governo não governa, a crescente importância do jornalista o põe a caminhar na estreita linha que separa a ética do cinismo. Diante do espelho, cada um sabe quem é. O papel transcendente do jornalismo tem sido "seqüestrado" pelos monopólios da mídia. O rating dos meios de comunicação, conseguido por seus jornalistas e não pelos anunciantes, é colocado a serviço do marketing político, sobretudo nos períodos eleitorais (e agora todo o calendário é eleitoral, até mesmo quando não há eleições). Desta forma, a imagem publicitária substitui os princípios e os programas políticos, se transforma no aspecto mais relevante e, não poucas vezes, "puxa" todo o partido político, que se "veste" com a roupa do "mais popular" (o PAN fez isso com Fox, o PRD faz o mesmo com López Obrador, e o PRI...o PRI...bom, vai logo encontrar alguém). Resumindo: a diferença entre a "pré-modernidade" e a "pós-modernidade" está no fato de que na primeira os políticos tinham quem lhes escrevesse os discursos, e na segunda têm quem lhes faz as inserções publicitárias. Contudo, o abraço da mídia e da classe política pode ser mortal... para os meios de comunicação. Embriagados pela interlocução privilegiada que têm com o poder político, os jornalistas o tomam como único destinatário e esquecem sua ação social. Não vai demorar o tempo em que os noticiários serão só vistos, ouvidos ou lidos por outros jornalistas (lamento informar-lhes que os políticos não vêem, não lêem e nem escutam as notícias, eles têm um encarregado ou encarregada de lhes fazer um resumo). Como os políticos prescindem dos governados, os meios de comunicação prescindirão do auditório. Tanto uns quanto outros se felicitarão e, vendo-se no espelho do outro, se dirão "Como somos importantes!". A diferença entre um meio de comunicação progressista e um fascista está em como falam de eu, mim, me, comigo... A Marcha contra a Delinqüência, chamada por muitos de "histórica" (mesmo mantendo esta honra só por alguns dias, porque a renúncia de Durazo a mandou, como dizemos nós jornalistas, "para as páginas internas"), provocou uma espécie de debate (na realidade, foi uma intensa troca de adjetivos) sobre o papel dos meios de comunicação. Depois de ameaçar com a insurreição popular o que considera abertamente injusto, arbitrário e ilegal processo de afastamento contra López Obrador, o PRD e os setores afins se sentiram indignados pela convocação da chamada "Marcha do Silêncio". E mais ainda, quando a mobilização foi um sucesso no que se refere à participação... da classe acomodada. Tanto tempo cortejando este setor (Giuliani, os "segundos andares", o Centro Histórico da Cidade do México, o auge urbanístico em Santa Fé, a "Houston" do ocidente do DF) e acontece que o ingrato se mobiliza para protestar pela insegurança. A marcha acontece e a direita, sempre pronta a capitalizar o que a esquerda abandona, monta nela (sem frutos, como se viu depois). Os meios de comunicação se unem. De fato, a imensa maioria dos participantes se faz presente convocada pela televisão, pelo rádio, pela imprensa escrita. Há meios de comunicação que fazem isso porque entendem que é um tour de force contra López Obrador e querem "domá-lo", e há outros que fazem isso simplesmente por coerência, e tomam como destinatários os governos federal, estaduais e municipais. Boa parte dos participantes pertencia aos setores privilegiados da sociedade mexicana (as ruas próximas à Reforma e no Centro Histórico cheias de carros com motoristas e guarda-costas aborrecendo-se na espera, dezenas de ônibus de escolas particulares estacionados, restaurantes de luxo repletos antes, durante e depois da marcha; como alguém me disse: "era um centro comercial, mas tamanho gigante"). Claro que também ouve esta tradição muito mexicana que se chama carreata e "passar a lista" (as grandes lojas de departamentos dos centros comerciais "exortaram" seus empregados a participarem). Mas, quanto às reivindicações, ficou muito longe de ser uma marcha de direita. Não se mobilizaram contra as expropriações de empresas privadas, ou contra os impostos sobre os artigos de luxo, ou contra leis que obriguem as empresas a pagarem salários justos, ou contra o fato de apoiar com o petróleo o governo de Cuba, ou para derrubar um governo "vermelhinho". Manifestaram-se porque sofrem pela criminalidade. Não era exatamente o populacho, mas, então?, que os assaltem, seqüestrem e que os matem por serem bonitos(as)? Durante anos o PRD temeu as ruas. Toda manifestação que não fosse de apoio ao seu partido ou a seus dirigentes era vista com receio. A satanização do movimento estudantil da UNAM em 1999 (porque não o dirigia), e anos e anos desmantelando organizações sociais, e acontece que a rua é tomada por esses que se tratou de adular: os que têm e podem. Por sua vez, os meios de comunicação foram os primeiros a se surpreender pelo sucesso da marcha. Televisa só se atinou a fazer uma mesa redonda com o tema "E o que vem depois da marcha?", e a pedir aos três porquinhos (Fernández de Cevallos, Jackson e Ortega) que se comprometessem a fazer acordos para resolver o problema da falta de segurança. A estas alturas do partido esperar algo dessa gente! É como acreditar nos óvnis... Não são poucas as vezes em que a mídia tem entrado em confrontação com o governo da Cidade do México. A divulgação dos vídeos do caso Ahumada e as reportagens sobre o tema da insegurança são alguns exemplos. A "Marcha do Silêncio" serviu para exacerbar os ânimos. Daí a chamar alguns meios de comunicação, sobretudo a Televisa, como "a negra mão do fascismo", era só um passo...e este foi dado de imediato. Contudo, uma leitura atenta de alguns meios de comunicação serve para traçar as dimensões: Crônica, o jornal "preferido" de López Obrador, vem insistindo há pelo menos dois mandatos no que agora é o PRI a reivindicar: que não se brigue nos meios de comunicação, mas sim nos tribunais. Reforma, outro jornal muito "apreciado" pela AMLO, tem documentado a corrupção de todo o espectro político, não só do PRD. El Universal mantém um quadro digno de repórteres e comentaristas. La Jornada não abandona seu compromisso popular (que já completa quase 20 anos) e é o meio de comunicação mais consultado pela audiência cibernética. Nos dias após a marcha, Televisa, em seus noticiários, seguiu e abundou nas denúncias de López Obrador contra as vendas do Banamex e do Bancomer. Semanas depois, repórteres da Televisa investigaram o desvio de recursos, originalmente destinados ao combate da AIDS, para a organização direitista Provida, e documentaram a prática de abortos clandestinos em clínicas desta organização que, supostamente, é contra o aborto. E há mais casos do que espaço. No outro extremo, Televisa fez uma reportagem grosseira e ridícula do casamento da jornalista Letizia com um membro da realeza espanhola (perdão, não lembro do nome, talvez na latrina...), usando meios que não dedicou aos atentados do 11 de março. Ou se fez eco ao conto para boi dormir dos óvnis supostamente avistados pela Força Aérea Mexicana. Além disso, num de seus especiais dedicados aos flanelinhas, encabeçou a moda perigosa de incriminar a pobreza. Aí os flanelinhas, limpadores de pára-brisas e vendedores dos cruzamentos foram apresentados como se a maioria ou todos fossem seqüestradores e assaltantes. Claro que, acusando ter recebido o recado, o senhor Ebrard (que, se não me engano, é chefe de polícia da "Cidade da Esperança") dedica agora seus esforços a perseguir e penalizar a pobreza. Passa-se então do combate à delinqüência a combater os pobres...e mais uma vez a adular um setor. Assim não parece nem uma coisa nem outra. Nem a Televisa e os demais meios eletrônicos e impressos representam o avanço do fascismo no México, como denuncia o PRD. Nem tampouco a Televisa e os demais meios eletrônicos e impressos são a "vanguarda da democratização" social e da mídia, como se autodenominam locutores, comentaristas e editores. Da mesma forma, o governo de López Obrador se debate entre o apoio aos que menos têm, com programas sociais e iniciativas culturais elogiáveis, por um lado, e, por outro, o autoritarismo e a perseguição à pobreza com operações policiais cujas imagens remetem às do Iraque ocupado pelas tropas inglesas e norte-americanas. Não, uns e outros estão se acomodando, se definindo. Não só em bater insistentemente no fato de que pobreza é sinônimo de delinqüência, é aonde os meios de comunicação e os políticos se encontram. Dia após dia, se sucedem escândalos políticos e financeiros que não têm nenhuma sanção penal, e tudo se reduz a uma condenação moral. Já não se discute se algo foi moralmente mal feito, mas sim se é legal ou não. O sistema jurídico mexicano, junto com todo o Estado, encontra-se mergulhado na lagoa da podridão na qual se avalizam, com leis e juízes, crimes de lesa humanidade. Desaparecimentos forçados e repressão (como as que foram protagonizadas, entre outros, por Echeverría), fraudes (como as da Loteria Nacional), desvios de recursos (como os do PAN para Provida), roubos disfarçados de acordos legislativos (como o perpetrado contra os trabalhadores do Seguro Social) e o que vier a se juntar na programação de hoje, é tudo permitido pelo "império da lei", mas se cultiva, com irresponsabilidade, o rancor social. Enquanto ocorre tudo isso, por trás da agenda da mídia avança outra agenda, a da destruição do Estado mexicano... Uma programação diferente? Fora desta programação há indivíduos, coletivos, grupos, povoados que entendem que por trás destas suposta "agenda nacional" há outra, a real, a verdadeira, que consiste, grosso modo, na destruição do México enquanto Nação. Eles e elas sabem que o desmantelamento frenético e implacável do Estado nacional, levado adiante por uma classe política sem utilidade e sem vergonha (e acompanhada em não poucos casos por alguns meios de comunicação e por todo o sistema jurídico), levará a um caos e a um pesadelo que nem a programação estelar de terror e suspense poderia igualar. Como se naufragasse no mar neoliberal, a Nação Mexicana afunda cada vez mais e a cada dia se parece menos com si mesmo e mais com nada. O país cuja história das origens remete a uma ilhota em meio a uma lagoa, se afoga em águas que não são suas. Mas há mexicanos e mexicanas que resistem. Não sem dificuldades, com os tropeços e aflições do dever, vão construindo pequenos espaços, ilhotas em cima das quais se sonha, se luta, se trabalha. Ilhotas nas quais, amanhã, o México será o México, talvez um pouco melhor, talvez um pouco mais bom, mas o México. Falaremos de uma dessas ilhotas de resistência, não a melhor nem a única, e de autonomia nas comunidades indígenas zapatistas. Falaremos dos caracóis e das Juntas de Bom Governo, de nossas falhas, erros e do que foi conseguido, sem outra imagem a não ser o olhar capaz de acolher nossa palavra, e sem outro áudio a não ser o que nos for outorgado pelo ouvido e o coração daqueles que, sem estar aqui, estão conosco. (a continuar...) Das montanhas do Sudeste Mexicano.
Subcomandante Insurgente Marcos.
México, agosto de 2004, 20 e 10.
https://www.alainet.org/es/node/110503
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